Analise das Medidas Provisórias 1108 e 1109. As medidas que reduzem os salários
Por Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho – GEPT, da Universidade de Brasilía (Coordenador: Sadi Dal Rosso)
Introdução
As Medidas Provisórias 1.108 e 1.109, ambas de 25 de março de 2022, foram editadas em um momento em que tanto o trabalho quanto o capital precisam definir as relações que vigorarão entre si ante os impactos da ciência e da tecnologia nos processos de trabalho. Pode ser tomado como exemplo dessas novas relações o teletrabalho ou o trabalho remoto. O teletrabalho não é um trabalho apenas nacional, brasileiro; é, antes de tudo, internacional. As regulações tendem a ser feitas país por país e a Organização Internacional do Trabalho ainda não conseguiu fazer aparecer o seu papel e a sua força neste respeito.
No Brasil, as decisões tomadas para regular as condições destes trabalhos nos governos Temer e Bolsonaro são vergonhosamente favoráveis ao capital. Já na composição dos grupos de assessores organizados para preparar as medidas regulatórias – tal como o GAEP – simplesmente foram constituídos mediante a exclusão de representantes de trabalhadores/as, de sindicatos e de qualquer forma de organização associativa sindical. E mais, a contra- ou retro-forma trabalhista visava dar um golpe no movimento sindical, vetando a arrecadação do imposto sindical por compulsório e dificultando a própria contribuição espontânea.
O cerne da intervenção estatal a favor do capital não reside, em nosso entendimento, na arrecadação compulsória do imposto sindical e sim nas novas relações de trabalho que colocam em disputa a produção do valor e nas mãos de quem fica acumulada a mais-valia produzida. Com efeito, o teletrabalho é apenas um exemplo dessas novas relações que colocam frente a frente trabalho e capital. Autores de diversos países põem-se a decifrar as novas formas do enigma do capital. Por exemplo, Ursula Huws (2014) trabalha com a categoria de comodificação e suas variantes, decomodificação, recomodificação, sendo estas últimas muito adequadas para a análise do teletrabalho. Não é nossa intenção aprofundar esta discussão teórica neste momento e sim avançar no contexto e sentido na qual foram editadas as duas Medidas Provisórias.
Em tal clima e conjuntura anti-laboral passamos a analisar as MPs 1.108/22 e 1.109/22, embora não se saiba se chegarão a ser aprovadas pelo Congresso Nacional, o que parece, entretanto, muito provável, dada a composição da atual legislatura parlamentar.
É raro encontrar análises das citadas Medidas Provisórias. Diante de tal constatação, o GEPT (Grupo de Estudos e Pesquisas para o Trabalho dp Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília) propõe-se a contribuir trazendo uma avaliação detalhada das duas MPs em questão, sempre dando destaque ao sentido político subjacente às medidas propostas.
Contexto e sentido das MPs 1.108 e 1.109
Desde o golpe de 2016 a sociedade brasileira presencia um intenso movimento de mudanças regulatórias na relação capital/trabalho, chamado comumente de contra reforma trabalhista, cujo sentido geral é conformar a extração de mais valia ao padrão de desenvolvimento capitalista brasileiro dos últimos anos, calcado no aumento da presença de capital estrangeiro, aceleração do processo de desindustrialização, aumento da dependência da exportação de commodities, desenvolvimento do setor financeiro, mudança na composição setorial da força de trabalho, elevação na desigualdade de renda e avanço da privatização de serviços sociais, dentre outros elementos.
Tal conformação pode ser teorizada como um novo período histórico na superexploração do trabalho, na qual os mecanismos de mais valia absoluta, mais valia relativa e de pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor estão sendo mobilizados simultaneamente e em várias dimensões na contra reforma trabalhista.
A análise das MPs 1.108 e 1.109 sugere que as mesmas não apenas não trazem quebra ou divergência com o sentido geral da contra reforma iniciada em 2016, mas avançam em elementos objeto de disputas e embates anteriores, como é o caso do teletrabalho. Regulamentado inicialmente em 2011 pela Lei nº 12.551/2011, que alterou a redação do Art.6° da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), para incluir essa modalidade, sofreu nova regulamentação em 2017, na contra reforma de Temer, introduzindo um novo conceito legal de teletrabalho com vistas a estabelecer limites à sua aplicação, regulamentar sua forma de adesão e Indicar os meios tecnológicos envolvidos neste processo. Em 2020, a MP 927/2020 estabeleceu normas para o enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do cenário pandêmico promovido pela propagação da COVID 19 (coronavírus), trazendo também que o regime de teletrabalho deveria constar expressamente no contrato individual do trabalhador, bem como trazer as atividades que deveriam ser realizadas pelo trabalhador, além de rezar que a alteração do trabalho presencial para o teletrabalho era possível mediante acordo mútuo com o empregador e deveria ser registrado aditivo contratual. As MP´s 1.108 e 1.109 vieram agregar mais um capítulo nesta regulamentação, como a própria delimitação do teletrabalho.
Um aspecto interessante é que a MP 1.109 reapresenta um conjunto de medidas já adotadas nos momentos de maiores taxas de circulação do coronavírus, como no 2º trimestre de 2020 e no 1º trimestre de 2021. O teletrabalho fora adotado como regra geral por muitas empresas e os governos tiveram de lançar mão de expedientes para reduzir a circulação de pessoas, como adiantamento de férias e antecipação de feriados. A pandemia no Brasil, ainda que demande continuidade da vacinação, cuidado e medidas não farmacológicas (como uso de máscaras e passaporte vacinal), não se encontra mais nesses estágios mais duros. Ou seja, no atual contexto, a reedição de medidas originalmente adotadas no auge pandêmico não tem mais relação com o objeto e motivação de outrora, mas sim com a questão do custo salarial, como veremos a seguir.
Outro importante aspecto é que, ao falar em ações para mitigar consequências de “calamidade pública”, o governo prepara o terreno para uma espécie de “estado de flexibilidade” que consegue enquadrar uma ampla gama de eventos na situação de “calamidade pública”. Mas o texto vai além. Ele não vincula as medidas ao período de calamidade, abrindo um repertório flexibilizante na legislação trabalhista para os períodos de “calamidade”, no qual um mero ato do Ministério do Trabalho e Previdência autoriza o uso das medidas contidas nas MPs, a qualquer momento, sob o argumento de combater os efeitos e consequências de situações de “calamidade pública”.
Ao observarmos o conjunto dos expedientes instituídos pela MP, chama a atenção às possibilidades de supressão de garantias trabalhistas, especialmente no tocante à jornada de trabalho. As regras de teletrabalho, ao criarem as possibilidades de uma gestão “por produção”, desmontam a lógica da jornada e dos direitos associados a ela, como prorrogação de jornada e horas-extras. O banco de horas com compensação em até 18 meses é um gancho para a elevação da carga de trabalho, criando condições para a ampliação da exploração pela dinâmica que Marx (1976) denominou de mais-valia absoluta. Outro elemento importante a ser destacado é o conjunto de medidas que visam protelar a incursão em custos salariais para os empregadores, abarcando a suspensão desde o recolhimentos do FGTS, passando pela suspensão dos próprios contratos de trabalho, chegando até a redução da jornada de trabalho com respectiva redução salarial.
Análise da MP 1.108/2022
A MP 1.108/22 propõe regular dois objetos, sendo o primeiro, o auxílio alimentação. Em termos gerais, a MP estabelece que vale alimentação só pode ser aplicado em alimentos e não no comércio geral ou serviços. Vale alimentação não é salário.
O segundo objeto da MP 1.108/22 é o teletrabalho, trazendo uma importante inovação acerca da redefinição da modalidade, que na CLT era definido como preponderantemente realizado fora das dependências do empregador. A MP alargou as fronteiras daquilo que pode ser enquadrado como teletrabalho, pois conceitua-o com características mais abrangentes do que a atividade de home office e de trabalho externo, abarcando também trabalhadores autônomos e freelancers, assegurando que não há descaracterização do regime de teletrabalho se o trabalhador estiver presente no local de trabalho para realização de atividades específicas relacionadas ao seu labor.
Há uma delimitação muito importante e ao mesmo tempo muito ambígua na MP, em que apenas os trabalhadores em teletrabalho que prestam serviço por produção ou tarefa estão dispensados do controle de jornada de trabalho e não tem direito ao recebimento de verbas trabalhistas relacionadas à duração do trabalho, haja vista que a definição de serviço por produção ou tarefa não são expressamente definidos, proporcionando brecha para a fragilidade e precarização do trabalhador.
Por outro lado, o controle de jornada de trabalho dos trabalhadores em teletrabalho sofreu uma alteração extremamente relevante – foi excluído do Capítulo Duração Jornada, Art. 62, III da Lei 13.467/2017 -, abrindo espaço para jornadas com duração para além daquelas estabelecidas pela legislação. O teletrabalho que é trabalho por produção ou tarefa é, simplesmente, excluído de jornada e horas extras. Dever-se-á verificar elevação das jornadas médias em futuro próximo se tal MP for aprovada, como já aparece nos relatos de pesquisa de campo sobre trabalho remoto que mostram durações de jornadas estratosféricas (FESTI, 2020 e ABÍLIO, 2020).
Outros aspectos relevantes dizem respeito à definição jurídica clara distinguindo o que é teletrabalho e o que é trabalho de telemarketing ou teleatendimentos, pois este último tem jornada de trabalho delimitada e reduzida em 6 horas diárias, bem como a legitimação expressa de estagiários e aprendizes poderem ser submetidos ao regime de teletrabalho ou trabalho remoto, sob o pretexto de promover a segurança jurídica desses trabalhadores.
Há também a previsão expressa de necessidade de acordo individual ou coletivo de trabalho para que o tempo fora da jornada de trabalho normal do empregado constitua tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso. Trata-se de uma delimitação importante de tempo de trabalho e não trabalho, conforme definição de DAL ROSSO (2017), pois trabalhos realizados via recursos tecnológicos ou por meio de softwares, tais como os definidos no teletrabalho em análise nesta MP, impossibilitam delimitar os tempos de trabalho produtivo e de descanso, lazer etc., principalmente se analisados sob a luz do conceito de gênero, haja vista que o mercado de trabalho é sexuado e as mulheres ainda compõem os maiores segmentos precarizados, bem como ainda são as responsáveis majoritárias pela realização do trabalho reprodutivo.
Apesar da obrigatoriedade de contrato individual de trabalho que discipline o teletrabalho, outra inovação relevante é a não obrigatoriedade de especificação das atividades que serão realizadas pelo empregado, bem como os horários. Os meios de comunicação entre empregador e empregado podem ser acordados de forma mútua, culminando com a possibilidade da emergência da flexibilidade do trabalho, mas devem expressamente assegurar os devidos repousos legais garantidos ao trabalhador.
A lei buscou assegurar que empregador não se responsabilize por custos com retorno ao regime presencial de trabalhadores que optem por realizar o teletrabalho ou trabalho remoto fora do local que o contrato de trabalho prevê, dentro ou fora do país, ressalvado os casos em que haja a previsão mutuamente acordada em contrato de trabalho entre empregador e empregado.
Por fim, há a previsão de estabelecer prioridade para empregados com deficiência ou empregados(as) com filhos ou crianças sob guarda judicial com idade de até 4 anos, mas não prevê expressamente a prioridade para trabalhadores(as) que possuem filhos, crianças ou pessoas sob sua guarda judicial com deficiência, bem como pessoas idosas ou dependentes com doenças ou que necessitem de cuidados com sua saúde e, por isso, apresenta uma grave falha ao não priorizar o trabalhador(a) responsável pelos cuidados com pessoas com deficiência e idosas na família, afetando portanto, diretamente as mulheres que ainda são as principais responsáveis pelos trabalhos com cuidados de pessoas com deficiência e pessoas idosas nos lares brasileiros.
MP 1.109/2022 – arts. 1 e 2
Propõe medidas trabalhistas alternativas e dispõe sobre o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda para enfrentar crises de calamidade públicas em níveis Federal, Estadual e Municipal.
As seis medidas trabalhistas alternativas são (art. 2): teletrabalho, férias individuais, férias coletivas, feriados, banco de horas, recolhimento do FGTS. As seis medidas atingem direitos de trabalhadores.as, como se verá da análise a seguir.
Teletrabalho – arts. 3 a 5
A MP 1.109 traz a previsão expressa de notificação de no mínimo 48 horas de antecedência junto ao trabalhador sobre a adoção do regime de teletrabalho, sendo essa mais uma novidade importante.
Há uma falta de parâmetros mais claros sobre a responsabilidade do empregador em custear e reembolsar o trabalhador a respeito de equipamentos e despesas relacionadas ao teletrabalho, ficando muito fraca a possibilidade de haver negociação no nível individual para sanar essa questão, o que consequentemente coloca o trabalhador numa situação frágil e possivelmente abusiva diante da impossibilidade de ressarcimento de gastos com o teletrabalho.
A legislação objetiva também precaver o empregador contra a incorporação de natureza salarial ou vinculação tributária e previdenciária advinda do fornecimento de equipamentos tecnológicos e de infraestrutura para a realização do teletrabalho. Portanto, oferece segurança jurídica praticamente incondicional ao empregador, ao passo que para os empregados resta as responsabilidades provenientes da operacionalização e manutenção do seu labor.
Férias individuais e coletivas e aproveitamento e antecipação de feriados – arts. 6 a 15
As seções II e III tratam da antecipação de férias individuais e coletivas. Os artigos instituem essa possibilidade mesmo em caso de o período aquisitivo não ter sido concluído. O texto fixa critérios para tanto, tais como: aviso com mínimo de 48 horas, período de pelo menos 5 dias corridos. Conforme a seção, empregador e empregado podem negociar períodos futuros de férias por meio de acordo individual.
O pagamento das férias deixa de ter de ocorrer antes do gozo do período e passa a ser até o 5º dia útil do mês subsequente ao início do gozo. O adicional passa a poder ser pago até dezembro do ano corrente, e não antes do gozo do período de férias. O mesmo prazo passa a poder ser utilizado para a “venda” de parte das férias. Os artigos permitem que no caso de trabalhadores da saúde e de serviços essenciais férias e licenças possam ser suspensas.
Os arts. 12 a 14 abrem a possibilidade ao empregador de impor férias coletivas, inclusive no prazo acima de 30 dias. O aviso tem de ocorrer pelo menos até 48 horas antes do início deste período. Isso pode ser feito sem dever de informar a SRT (Secretaria de Relações do Trabalho) e os sindicatos das categorias. Nesse caso, também se aplicam as flexibilizações de pagamento das regras de antecipação de férias individuais. O art. 15 institui a possibilidade de antecipação de feriados de quaisquer naturezas (nacionais, estaduais e municipais). Estes artigos conferem poder imenso, discricionário, aos empregadores frente aos empregados, sem possibilidade de recurso a órgãos do Estado e a sindicato.
Banco de horas – art 16
O Art. 16 estabelece a possibilidade de o empregador adotar banco de horas por meio de acordos individuais ou coletivos. A compensação poderia ocorrer em até 18 meses após o fim do período estabelecido pelo Ministério do Trabalho, dilatando prazos normalmente utilizados, que em geral limitam-se a poucos meses. O texto do artigo credita ao empregador o poder de definir a compensação independentemente de acordo individual ou coletivo. Empresas de serviços essenciais poderão fazer regime especial de compensação independentemente da interrupção de suas atividades.
Assim como no caso anterior, a justificativa de uma medida de tamanha flexibilização da jornada de trabalho não se justifica pelo atual momento da pandemia. As regras de banco de horas previstas na MP estendem de forma inexplicável a compensação para 18 meses após o fim do período fixado pelo Ministério do Trabalho, além de dar a prerrogativa para a definição ao empregador de forma unilateral.
O banco de horas é um instrumento que pode ter sérios efeitos sobre a saúde dos trabalhadores ao permitir a ampliação de sua jornada, além de significar a majoração das taxas de exploração. Não por acaso, a legislação trabalhista pré-reforma de 2017 condicionava esse arranjo a acordos coletivos. Este modelo deve ser retomado para dar aos trabalhadores poder de barganha para avaliar a conveniência nos casos concretos da instituição desse regime. Por isso, as regras de banco de horas previstas na MP são prejudiciais aos trabalhadores e também não devem prosperar.
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS – art 17 a 23
A MP vale-se da figura de suspensão do recolhimento do FGTS como medida paliativa para os casos de calamidade pública. Define que os empregadores devem declarar o valor do FGTS, valendo como reconhecimento do débito, mas não recolhem o tributo por pelo menos 4 meses ou competências. Posteriormente, quando da suspensão do estado de calamidade, o FGTS dos meses de suspensão deverá ser recolhido em 6 parcelas, sem incidência de multa ou juros. No caso de demissão de empregado que enseje liberação do FGTS, o empregador terá a suspensão do FGTS sobre tal empregado revertida e deverá recolher os valores que deixaram de ser pagos.
Ou seja, beneficia os empregadores com a postergação e parcelamento no pagamento de um elemento de salário indireto dos trabalhadores.
Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda – Arts 24 a 30
A MP 1.109 permite a instituição pelo Governo Federal do denominado Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda em casos de decretação de estado de calamidade pública pela União, Estados e Municípios. Tal programa, em síntese, consiste na possibilidade de redução em 25%, 50% e 70% da jornada de trabalho e dos salários dos trabalhadores ou a suspensão dos contratos de trabalho, mediante o pagamento do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm), que não cobre a renda perdida com o corte salarial, na maioria dos casos.
Tais medidas, adotadas durante a pandemia da COVID-19, passam agora a fazer parte do arcabouço legal brasileiro com possibilidade de aplicação em situações mais amplas que os cenário de pandemia, a exemplo das situações de emergência causadas pelas fortes chuvas na Bahia, Minas Gerais e Petrópolis no Estado do Rio de Janeiro no ano de 2022. Ou seja, uma medida para uma situação de extrema excepcionalidade agora passa a ser aplicada para situações de emergências que ocorrem todo o ano no país.
É interessante notar que o DIEESE (2021) apontou alguns resultados do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, instituído pela Medida Provisória nº 936 e convertida na Lei nº 14.020 de 2020, quando da situação de pandemia do Covid-19.
“Os dados disponibilizados no Painel do Benefício Emergencial, no portal do Programa de Disseminação de Estatísticas do Trabalho, do Ministério da Economia, indicam que, do total de acordos firmados no âmbito do Programa, 43,6% correspondem a suspensões de contratos e 57,3%, à redução de jornada, além de pequena quantidade de contratos intermitentes (0,9%). Entre os acordos de redução de jornada, predominaram os que estabeleciam redução de 70% da jornada e dos salários (4,4 milhões); em seguida os que previam 50% de redução (3,8 milhões) e, por fim, os que estipulavam 25% de redução (3,0 milhões). A distribuição temporal dos acordos sugere concentração, sobretudo, em abril e maio de 2020, declinando daí até o final do ano.” (DIEESE, 2021, p. 3).
Para os que possuíam um salário-mínimo, a reposição foi de 100% nos rendimentos, mas para aqueles que recebiam salário de R$ 2.500,00, valor correspondente à média salarial do mercado de trabalho brasileiro, segundo a PNAD/IBGE, de janeiro de 2021, o programa representou uma perda de 22% na renda. Quanto mais alto o salário do trabalhador, maior é a perda da renda com a medida.
“Assim como na edição de 2020, é possível negociar, por meio de acordo ou de convenção coletiva, percentuais de redução de jornada de trabalho e de salário distintas das previstas na MP nº 1.045 (convertida na Lei nº 14.020 de 2020). Nesse caso, porém, a porcentagem do benefício que cobre parte das perdas é fixa (…). Se houver, por exemplo, uma negociação para reduzir jornada e salário em 35%, o BEm continuará a ser de 25%” (DIEESE, 2021, p. 5).
O valor do BEm também não é calculado com base no valor do salário que foi reduzido. Sua base de cálculo é o valor da parcela do seguro-desemprego a que o empregado teria direito em caso de demissão, nos termos da Lei nº 7.998, de 1990, o que já pode ser caracterizada como uma perda de rendimento. É sobre a parcela do salário desemprego que incidem os percentuais do BEm. A título de exemplo, o trabalhador que teve 70% de redução salarial receberá 70% sobre o valor do seguro-desemprego a que teria direito. No caso de suspensão do contrato, o BEm passa a ser de 70% a 100% da parcela do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito.
Importante notar que a MP faculta a pactuação por acordo individual escrito entre o empregador e empregado, podendo ser adotada pelos empregadores de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho, desde que preservado o valor do salário-hora de trabalho. O acordo individual é um retrocesso na legislação trabalhista sem precedentes, retirando completamente o poder da organização coletiva dos trabalhadores e afetando negativamente sindicatos e comissões de representação interna dos empregados.
O trabalhador com mais de um vínculo empregatício poderá receber o benefício cumulativamente para cada vínculo com redução proporcional de jornada e salário ou suspensão de contrato.
A jornada e o salário pagos anteriormente poderão ser restabelecidos no prazo de dois dias, a partir da cessação do estado de calamidade pública; da data estabelecida como termo de encerramento do período de redução pactuado; ou da data de comunicação do empregador que informe ao empregado a sua decisão de antecipar o fim do período de redução pactuado.
Em resumo, a MP autoriza empregadores a reduzir jornada de trabalho e salário dos seus empregados, quando houver situações de emergência, ou suspender os contratos, oferecendo em contrapartida um benefício que não cobre o percentual do salário perdido, gerando perda de renda em um contexto de inflação de dois dígitos.
Das disposições comuns às medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda – Arts 31 a 42
A sessão traz operacionalizações das medidas propostas pela MP 1.109, tal como a operacionalização do BEm e demais medidas que ficarão ao encargo do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal.
Mas o cerne da Seção III compreende o reconhecimento de que as medidas implementadas durante a pandemia foram deletérias aos trabalhadores, como argumentamos em outro lugar deste texto. Tal reconhecimento provém da estrutura sindical e associativa e da própria fiscalização do trabalho e a MP 1.109, seção III propõem “medidas alternativas” que possam compensar o erro. Destacaremos três dessas medidas para análise: ajuda compensatória, garantia provisória de emprego e cursos ou qualificação profissional.
Como a ativação da redução da jornada de trabalho e de salários provocou perdas salariais a trabalhadores.as, elevando-se reclamações de sindicatos, associações e Justiça do Trabalho, a MP 1.109 cria a possibilidade de alguma compensação (art. 31) por meio da “Ajuda Compensatória Mensal” (ACM) que não integrará permanentemente os salários e cujo valor será definido por negociação coletiva ou “acordo individual escrito pactuado”. Tal medida não resolverá prejuízos salariais num país em que as negociações são tão difíceis e trabalhadores.as contam-se em milhões.
Durante o período da pandemia, empregadores demitiram pessoal sem justa causa, atitude contra a qual, mais uma vez, levantaram-se trabalhadores.as, sindicatos e procuradores do trabalho. A MP 1109 “reconhece”, então, aos empregados que recebem o BEm, uma “garantia provisória de emprego” (art. 32) por “período equivalente à redução da jornada ou suspensão do contrato” . O que parece um salto histórico como garantia de emprego é depenado de sua virtualidade e se aplica apenas como garantia provisória, temporária.
Cursos ou qualificações profissionais com duração de um a três meses. Primeiramente, trata-se de formação profissional exígua. Segundo problema: quem paga a liberação de funcionários para o curso ou a qualificação.? Supõem-se bolsas de qualificação que proviriam de alguma esfera do Estado, especialmente daquelas vinculadas ao trabalho (ministério, secretaria ou setor de produção). E se houver diferença entre bolsa e salário? Neste caso pode ser acionada a ACM, ajuda compensatória mensal, com valor equivalente à diferença entre a remuneração do empregado e a bolsa qualificação. Tudo isto dependendo de negociação individual entre trabalhador e empresa.
Conclusões
A complexidade dos elementos envolvidos na formulação das MPs 1.108 e, particularmente, na 1.109/2022, não é suficiente para esconder uma realidade que se projeta, agora historicamente, por trás de capítulos, seções, artigos e assim por diante, e aparece com nitidez perfeita: quando implementadas, as duas MPs analisadas envolvem perdas salariais para os trabalhadores(as) brasileiros(as).
As políticas de redução de salário proporcionalmente à jornada e suas computações por um quarto não conseguem estancar a sangria provocada pelas Medidas Provisórias analisadas e Leis Trabalhistas implementadoras de “pseudo-reformas” trabalhistas e, também, não foram imaginadas para produzir tal efeito de preservação do valor dos salários e redistribuição das rendas. Ao contrário, as Medidas Provisórias pretendem preservar empresas às custas dos(as) trabalhadores(as), e, ao que tudo indica, não será por meio da Ajuda Compensatória Mensal (ACM), criada pelas MPs, que este problema será resolvido.
Inúmeros outros elementos excepcionalmente importantes poderiam ser aduzidos entre as conclusões finais da análise destas propostas de Medidas Provisórias. Entretanto, é impossível concluir, sem mencionar o ingente esforço em individualizar as relações de trabalho entre empregadores e empregados, visível em toda a extensão da redação de artigos e incisos. Ora, é nítido que a individualização das relações trabalhistas opera em sentido contrário à organização coletiva em sindicatos e comissões de representação de trabalhadores(as), tendendo ao enfraquecimento ainda maior de seu poder de barganha e contribuindo para a redução da renda do trabalho.
Em último lugar, gostaríamos de acentuar um elemento mais sutil, porquanto as Medidas Provisórias estudadas foram geradas para enfrentar a pandemia da Covid-19. As outras situações críticas, para as quais seriam aplicáveis, não são claramente definidas. Portanto, as Medidas Provisórias criam um “estado de flexibilidade” que se aplicariam às crises sanitárias, mas, em última instância, criam um mecanismo social que pode ser aplicado para situações completamente diferentes e imprevistas.
Referências:
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DAL ROSSO, Sadi. O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017.
FESTI, Ricardo. O trabalho na era digital e os desafios da emancipação. Revista de Políticas Públicas da UFMA, v. 24, p. 111-128, 2020.
GOVERNO FEDERAL. Mais de três milhões de acordos entre trabalhadores e empresas foram fechados em 2021. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/trabalho-e-previdencia/2021/08/mais-de-tres-milhoes-de-acordos-entre-trabalhadores-e-empresas-foram-fechados-em-2021 . Acesso em: 30 de abril de 2022.
DIEESE. Nota técnica nº 256. 30 de abril de 2021. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/trabalho-e-previdencia/2021/08/mais-de-tres-milhoes-de-acordos-entre-trabalhadores-e-empresas-foram-fechados-em-2021. Acesso em: 30 de abril de 2022.
HUWS, Úrsula. Vida, trabalho e valor no século XXI: desfazendo o nó. Caderno CRH, v. 27, n. 70, pp. 13-29, ( abril 2014).
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______ Medida Provisória 1.109, de 25 de março de 2022. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Mpv/mpv1109.htm