Ocupação BVPS Mulheres 2024 | Mulheres no STF: direitos do trabalho, decisões dissonantes

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Por Elina G. da Fonte Pessanha | Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social

O STF contava até recentemente com a presença de apenas duas mulheres em seu quadro: as Ministras Cármen Lúcia, advogada e ex-procuradora de Estado dedicada a estudos constitucionais,[2] e Rosa Weber, experiente ex-juíza trabalhista[3], indicadas pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, respectivamente. Diante do processo de substituição da ministra Rosa Weber em 2023, por aposentadoria, recolocou-se o debate sobre a necessidade de escolher outra mulher para o cargo. Várias vozes – de pessoas e instituições – se manifestaram nesse sentido, e diversas opções foram aventadas, mas as demandas não surtiram efeito e, no caso, o indicado foi um homem, o Ministro Flávio Dino, senador e Ministro da Justiça do terceiro governo Lula. Abrigar mais uma ministra mulher no tribunal superior, para além da necessária representatividade feminina tantas vezes ausente no topo dos espaços públicos e no âmbito dos poderes, poderia significar também a garantia de um olhar diferente, sensível à diversidade e inclusivo, frente a questões que atingem a cidadania e a justiça social em nosso país.

Neste breve e despretensioso ensaio, recuperando “pistas” e tentando indicar tendências no conteúdo de algumas manifestações das duas Ministras acima citadas, pretende-se trazer algumas reflexões preliminares nesse sentido, adotando como recorte analítico temas do trabalho. Para tanto, foi realizado um primeiro levantamento de algumas decisões monocráticas[4], elaboradas pelas referidas ministras (disponíveis à consulta da jurisprudência emanada do STF), e selecionados alguns exemplos. Cobrindo do período posterior à chamada Reforma Trabalhista de 2017 ao início de 2024, destaques foram dados a algumas decisões, como forma de ilustrar as diferentes concepções das Ministras sobre temas sensíveis do campo. A terceirização, alvo histórico das medidas de distorção das relações de trabalho e de responsabilização trabalhista; a predominância do negociado sobre o legislado; o reconhecimento de vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas digitais (tema que, no momento, atrai especial atenção para o tribunal superior); e, após o fim do “imposto sindical”, e sob seus efeitos, a visão das Ministras sobre a importância dos sindicatos.

  1. O STF e os temas do trabalho
    STF, Praça dos Três Poderes

Data da década de 2000 o início do processo de maior ingerência do STF sobre as questões mais específicas de trabalho, definidas como infraconstitucionais. Grijalbo Coutinho (2021) avalia que a atuação do STF nesse campo, entre 1988 e 2006, atravessando períodos de maior ou menor inflexão neoliberal, foi “moderada”, principalmente se comparada à onda “conservadora” que viria depois. Registre-se, porém, que desde a Emenda Constitucional 45 (a chamada Reforma do Judiciário) de 2004, prevendo a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar “ações oriundas das relações de trabalho” – e não apenas de emprego –, o STF vinha manifestando sua discordância com tal medida. Rapidamente foi deferida liminar, depois referendada pelo plenário, excluindo o alcance sobre a relação entre Poder Público e seus servidores, e dando início a um processo de esvaziamento da ampliação de competência prevista e de crescente interferência do Supremo no plano trabalhista (Stefaniak & Campos, 2023: 25). E isso exatamente diante de um Tribunal Superior do Trabalho (TST) renovado e mais “garantista” a partir de 2005 (Coutinho, 2021: 200).

A visão de que é “mais democrático” atender às demandas do mercado, atribuindo a este a condição de um sujeito de direitos e ignorando o necessário papel da justiça frente ao desequilíbrio das relações entre desiguais (Artur et al, 2021), parece ter se consolidado no STF desde que as decisões sobre a terceirização, ensaiadas em 2014, finalmente a liberaram plenamente para as atividades-fim, em 2018. A precarização trazida pela terceirização foi relevada por parte da maioria dos ministros, e argumentou-se que restringir a terceirização viria atrapalhar o desenrolar da ordem social e impedir a eficiência econômica. O pacto constitucional foi tratado como utópico, o horizonte das compensações para o equilíbrio e a justiça social se tornou mais opaco, e isso num contexto de retrocesso político, altamente desfavorável aos trabalhadores.[5]

No plano do direito coletivo, e já no rastro da Reforma de 2017, progressivamente várias decisões do STF deram-se no sentido de “reduzir os recursos de poder dos sindicatos para empreender medidas de pressão eficazes”, restringindo-se a “capacidade de resistência a imposições empresariais nas mesas de negociação para rebaixar direitos conquistados em lei” (Grillo & Artur & Pessanha, 2023).

Com a eliminação de suas formas de custeio e o enfraquecimento do movimento sindical, além dos limites colocados igualmente à ação vigilante da Justiça do Trabalho, vimos avançar ainda mais o processo que realizava, na prática, a predominância do negociado sobre o legislado nos conflitos do trabalho. O fim da ultratividade coroou esse processo, e colocou os sindicatos em uma situação de especial desproteção, já que não se parte da perspectiva de igualdade de condições para buscar a inovação, mas trata-se de defender o que foi conquistado, novamente, a cada negociação.

Durante a pandemia da Covid 19, por sua vez, diversas medidas provisórias foram igualmente editadas com o anunciado objetivo de enfrentar seus efeitos sobre as relações de trabalho. Embora o STF tenha interferido para resguardar alguns direitos fundamentais, muitos dispositivos foram tolerados e acabaram por individualizar ainda mais os riscos, afastando os sindicatos de grande parte dos acordos adotados (Baylos, 2021; Artur & Pessanha, no prelo).

  1. As decisões das Ministras em questões sobre o trabalho

2.1. A terceirização: ênfases e distinções

Analisando as decisões das duas Ministras sobre o tema da terceirização, e explorando suas nuances, nos deparamos com posições várias vezes distintas; expressivas, por sua vez, da profunda divisão de perspectivas no corpo da própria suprema corte. É importante destacar que as decisões aqui citadas são posteriores à aprovação, no STF, da ADPF 324 que, em 30 de agosto de 2018, enterrou definitivamente os principais obstáculos a essa forma de contratação.

Nas decisões monocráticas da ministra Cármen Lúcia sobre o tema, é possível identificar camadas distintas de argumentação, que vão desde a justificativa “histórica” de novas e necessárias formas de relações de trabalho, passando pela reiteração da constitucionalidade dessas práticas e chegando à indicação da necessária adequação do movimento sindical e do direito do trabalho a tais “transformações”.

Assim, em 2020, por exemplo, a Ministra Cármen Lúcia registrou que:

O conceito de subordinação jurídica encontradiço no artigo 30 da CLT que menciona que para ser subordinado o obreiro deve executar serviços sob a dependência de seu empregador, em dias atuais, merece ser interpretado sob a ótica das inovações que acometeram a estrutura de produção capitalista nos tempos atuais. A reestruturação da produção a partir do início dos anos 70 e final dos anos 80, com a superação ao sistema fordista e o advento do sistema horizontalizado toyotista, impôs que o conceito de subordinação fosse reinterpretado e adaptado à nova realidade (Recl. 38720, 2020).

É ultrapassada a manutenção dessa dicotomia entre atividade-fim e atividade-meio, para fins de terceirização, e errônea a confusão de identidade entre terceirização com intermediação ilícita de mão de obra. Por partir da errônea confusão entre terceirização e intermediação de mão de obra, chega-se à errônea conclusão de precarização (Recl. 44744, 2020).

Mas, ressalvando que,

Em nenhum momento a opção da terceirização como modelo organizacional por determinada empresa permitirá, seja a empresa tomadora, seja a empresa prestadora de serviços, desrespeitar os direitos sociais, previdenciários ou a dignidade do trabalhador. A garantia de proteção ao trabalho não engloba somente o trabalhador subordinado mediante o tradicional contrato de trabalho, mas também o autônomo e o terceirizado… (Recl. 41875, 2020).

Em 2023, também a Ministra volta a resguardar a constitucionalidade da terceirização, se apoiando em palavras do Ministro Luís Roberto Cardoso:

A Constituição não impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco veda a terceirização. Todavia, a jurisprudência trabalhista sobre o tema tem sido oscilante e não estabelece critérios e condições claras e objetivas, que permitam sua adoção com segurança (Recl. 61867, 2023).

Como nessa decisão, em 2024 ela torna a endossar que:

O direito do trabalho e o sistema sindical precisam se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade (Recl. 65046, 2024).

Ministra Cármen Lúcia do STF

Já por parte da Ministra Rosa Weber, o conteúdo de algumas decisões monocráticas sobre o tema sempre parece informado pelos pressupostos de possibilidade de ilicitude das práticas de terceirização e ela manifesta sua preocupação com isso, denunciando práticas de abuso por parte do empregador.

A terceirização das atividades tratadas neste caso implica o desvirtuamento de normas trabalhistas e violação ao art. 9º da CLT, que é parâmetro para a interpretação de qualquer outro dispositivo de mesmo nível. Vale frisar que não se está a declarar a impossibilidade de a tomadora terceirizar serviços, mas apenas a se ponderar que, no caso específico dos autos, a terceirização não atendeu aos princípios e normas de proteção efetiva ao trabalho humano, o que é bem diferente (Recl. 35078 MC, 2019).

Mesmo reconhecendo a definição já adotada pelo STF, de legalidade da terceirização, ela destaca e reforça os limites impostos à sua prática, sejam eles constitucionais ou infraconstitucionais, como os da CLT.

O Direito do Trabalho reconhece a legalidade da terceirização de parte das atividades da empresa como necessidade da própria dinâmica empresarial hodierna, porém, restringe sua abrangência ao limite do ordenamento jurídico positivo. O artigo 9º da CLT declara a nulidade de qualquer ato que vise a afastar a responsabilidade decorrente da relação de emprego, na forma dos artigos 2º e 3º da CLT. Ademais, não resulta da aplicação destes dispositivos da legislação ordinária a violação de preceitos constitucionais, porque a norma infraconstitucional apenas delimita e estabelece, para qualquer das partes contratantes, a natureza jurídica do vínculo, inclusive de forma imperativa. A jurisprudência (Súmula n. 331 do col. TST) nada mais fez que dar a orientação e informação para a aplicação dessas normas (constitucionais e ordinárias) ao caso concreto. O fenômeno econômico da terceirização, entretanto, está submetido às regras jurídicas impositivas, agasalhadas na Constituição Federal, na CLT ou, ainda, em normas esparsas (Rccl. 34506 MC, 2019).

Por outro lado, percebe-se seu cuidado em preservar direitos mínimos e garantir a isonomia para os trabalhadores terceirizados.

A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, “a”, da Lei nº 6.019, de 03.01.1974 (Recl. 40688, 2020).

Ministra Rosa Weber, recém-aposentada no STF

2.2. Outros dissensos

É possível reconhecer também as diferenças de concepção das Ministras sobre outros temas sensíveis do trabalho, introduzidos por ou a partir da reforma de 2017. À guisa de exemplo, destacamos aqui alguns deles.

Predominância do negociado sobre o legislado

Quanto à predominância do negociado sobre o legislado, ferindo gravemente as prerrogativas da regulação vigente e contribuindo para enfraquecer o papel cumprido pelas instituições trabalhistas, transparece que a convivência com tal imposição se apresenta de modo diferenciado para as duas juízas.

Assim, Cármen Lúcia em algumas decisões parece transitar mais livremente sobre o tema.

No mesmo sentido, embora a entidade sindical autora não tenha firmado CCT nos anos de 2016 e 2018, entendo que os trabalhadores estão representados pela sua Federação, a qual firmou norma coletiva para os referidos períodos (ID b20bdd5 e seguintes), nas quais está estabelecido o “adicional de insalubridade de 20%” para as funções supracitadas, exercidas pelos substituídos empregados nas empresas de asseio, conservação e serviços terceirizados do estado de Santa Catarina. Nessa esteira, como já afirmado, por ser fato público e notório, e tratando-se de matéria de direito, necessário que se faça a presente ponderação, declarando aplicáveis aos substituídos a norma coletiva supra referida. No sentido do exposto, ainda, ressalto que com alterações trazidas Lei nº 13.467/2017, cuja vigência iniciou-se em 1º/11/2017, especificamente tratando-se do que dispõe o art. 611 da CLT, autorizou-se a prevalência do negociado sobre o legislado no ordenamento jurídico pátrio (Recl. 42787, 2020).

Enquanto isso, Rosa Weber, visivelmente em desconforto, tenta abrir espaço para as possibilidades de garantia da proteção que o Direito do Trabalho ainda ofereceria às partes em conflito.

Em que pese o artigo 611-A da CLT tenha consagrado o princípio do negociado sobre o legislado, estipulando temas que poderão ser objeto de negociação coletiva em prevalência sobre a lei, o Direito do Trabalho é norteado pelo princípio da proteção. Nessa senda, o livre arbítrio dos convenentes encontra limites nas garantias mínimas do Direito do Trabalho, não podendo a norma coletiva dispor indistintamente de todos de direitos legais. Assim, mesmo nos casos em que a convenção coletiva disponha sobre os temas elencados no mencionado dispositivo legal, não poderá afrontar os princípios que regem o Direito do Trabalho, sob pena de ilicitude (Recl. 49144, 2021).

Reconhecimento de vínculo entre trabalhadores e plataformas digitais

Tema de destaque no plano dos estudos sobre trabalho e das preocupações dos trabalhadores em vários países, o reconhecimento do vínculo empregatício entre os empregados e grandes firmas/plataformas digitais está sendo, nestes dias, não só objeto de tentativas de regulação por parte do poder executivo, como alvo de discussões e disputas no plenário de nosso Supremo Tribunal Federal[6].

Claramente se enfrentam posições antagônicas, favoráveis ou desfavoráveis ao reconhecimento do vínculo de emprego, à regulação das relações e condições do trabalho e à responsabilização direta do empregador. A favor e contra a existência do vínculo, reúnem-se estudiosos, políticos, juízes etc. E também trabalhadores – muitas vezes em dúvida sobre a perda da alegada autonomia decorrente da inexistência do vínculo.

As Ministras em pauta também se dividem quanto ao tema. Muito embora com algumas exceções, a Ministra Cármen Lúcia em várias decisões concorda com os argumentos dos reclamantes/empregadores que resistem ao estabelecimento de vínculos.

…o TAC se apresenta como opção para a estruturação do transporte de cargas, não caracterizando fraude ao contrato de emprego”. (…) o transporte autônomo de cargas não preenche os requisitos cumulativos da relação de emprego, previstos no art. 3º da CLT, por ausência de subordinação, pessoalidade e habitualidade, não havendo que se falar em reconhecimento de vínculo empregatício entre as partes dos autos originais (Recl. 35651, 2019).

…reclamante afirma que “o processo originário versa sobre o reconhecimento do vínculo empregatício e motoboy de entrega de mercadorias via aplicativo”… Alega que “a presente reclamação vem calcada na desobediência, pela corte trabalhista, do precedente vinculante do julgamento da ADPF nº 324 e no RE 958.252 – Tema 725 de repercussão geral, no qual o STF fixou tese no sentido de admitir outras formas de contratação civis, diversas da relação de emprego estabelecida pelo artigo 3º da CLT” (fl. 2). Argumenta que “a reclamante é empresa voltada a organização logística dos entregadores autônomos para prestação dos serviços de entrega através da plataforma digital”…, sendo lícito afirmar que o simples ato de intermediar as entregas pelos motoboys aos usuários do aplicativo, não implica por si só a existência de vínculo de emprego entre as partes (Recl. 65394, 2024).

Quanto à Ministra Rosa Weber, é interessante assinalar que, embora predominante a tese contra a vinculação, ela em alguns casos recorre ainda à possibilidade de intervenção da Justiça do Trabalho, para resguardar a possibilidade de manutenção do vínculo.

Cumpre ressaltar que a declaração de constitucionalidade da Lei nº 11.442/2007 não implica presunção de autonomia na prestação dos serviços. Dessa forma, a decisão proferida na ADC 48 não impede o reconhecimento do vínculo trabalhista pela Justiça do Trabalho, quando presentes os elementos caracterizadores da relação empregatícia entre o motorista transportador e seu contratante (Recl. 48944, AGR SP, 2021).

Fim do imposto sindical

Sobre o tema, a Ministra Cármen Lúcia se revela atenta ao cumprimento da medida aprovada, advinda da reforma de 2017:

Neste exame preliminar se tem por plausível a argumentação da reclamante no sentido de que aquele entendimento divergiria do decidido por este Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.794/DF, no que pertine a obrigatoriedade do recolhimento de contribuição sindical. Considerados os argumentos expendidos pela reclamante e a possibilidade de ser ela obrigada a dar início aos descontos relativos à contribuição sindical, impõe-se a suspensão preliminar dos efeitos da decisão reclamada. Realço, por fim, que a decisão apontada como paradigma de descumprimento examinou a questão jurídica relativa a compulsoriedade da cobrança de contribuição sindical… (Recl. 35666, 2019).

…pelo C. STF publicado no DJE de 23.04.2019 que concluiu pela constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória, bem como pela necessidade da autorização expressa e individual como consta nos novéis dispositivos da CLT, artigos 545, 578, 579, 582, 583 e 602, com redação dada pela Lei n. 13.467/2017” (fl. 2, doc. 1). Sustenta que o “acórdão manteve o desconto em folha de contribuição sindical partindo de premissa equivocada de que sua imposição teria sido deliberada em assembleia feita no âmbito de uma negociação coletiva” (fl. 5, doc. 1). Salienta que “a ação civil coletiva não se ampara em norma coletiva estipuladora de tal contribuição sindical, mas sim em mera votação em assembleia convocada pelo Sindicato com o único fito de obter aprovação deste desconto nos salários, e sem garantir nenhum direito de oposição” (fl. 7, doc. 1) (Recl. 36185, 2020).

Já Rosa Weber, assim se manifesta, pedindo mais clareza do próprio Supremo Tribunal sobre a forma dos trabalhadores expressarem sua vontade em relação à cobrança da contribuição:

Consoante emerge da decisão reclamada, decidiu-se suficiente a autorização para o desconto sindical efetivada por meio de assembleia geral convocada pelo Sindicato, de forma a dispensar a existência de manifestação individual dos empregados. Além disso, reputou-se não comprovada qualquer oposição dos empregados quanto à contribuição sindical. 7. Com efeito, entendo que a decisão majoritária do Plenário deste Supremo Tribunal Federal – no sentido da validade do novo regime facultativo de cobrança da contribuição sindical – não comportou discussão acerca da forma como se dá a manifestação prévia e expressa da vontade do trabalhador. É dizer, para a cobrança da contribuição sindical, não foram abarcados no paradigma da reclamação nem o requisito da individualidade, nem a possibilidade de a manifestação de vontade se dar (Rccl. 39556, 2020).

Importância dos Sindicatos

A preocupação com o funcionamento pleno das entidades sindicais também se expressa em falas das Ministras sobre o papel desempenhado pelos sindicatos diante de todas as mudanças observadas, e de seu esforço para continuar resistindo aos efeitos perversos das reformas.

A Ministra Cármen Lúcia pondera, em referência à Medida Cautelar de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 6363 DF, relatada pelo Ministro Ricardo Lewandowski:

Vou repetir: não tenho nenhuma dúvida da imprescindibilidade do sindicato, pelas próprias condições, no modelo capitalista adotado no sistema brasileiro. Imprescindibilidade necessária, mas que, neste momento, acho que levaria a maior desemprego. Por isso, penso que o ato jurídico de acordo individual, neste caso, prescinde de uma necessária atuação do sindicato. O próprio Ministro Lewandowski chamou a atenção para o altíssimo número de acordos já feitos. Se, agora, a comunicação ao sindicato viesse a ser considerada como cláusula resolutiva, poderia efetivamente conduzir-se a uma instabilidade, uma insegurança jurídica e política. A Constituição, no artigo 7º, VI, e também no artigo 8º, estabelece a necessidade da presença do sindicato, mas o inciso X também fala em proteção ao salário. O não salário seria rota contrária a essa providência adotada, ainda que precariamente, provisoriamente, temporariamente, em caráter excepcional. Seria, porque poderia, como já alertado aqui tantas vezes, levar ao desemprego.[7]

A Ministra Rosa Weber, por sua vez, e em relação à mesma Medida Cautelar, argumenta em belo voto que, justamente em tempos de crise, deve-se reconhecer a importância do diálogo social, da negociação coletiva e das instituições trabalhistas para a garantia dos direitos.

Nessa linha de reflexão, pergunto-me como adotar, no caso concreto, solução jurídica que implique excluir do debate a participação de entidades política e socialmente relevantes – no caso, os sindicatos –, justamente as entidades sindicais a quem cabe, diante da desigualdade estrutural entre as partes na relação de emprego, e na tentativa de reequilibrar os pratos da balança, a representação dos trabalhadores? Como excluí-las desse debate, em momento que hão de ser de solidariedade, em que mobilizados todos os atores sociais para pensar soluções?
  1. Algumas considerações finais

As notas reunidas aqui configuram apenas uma rápida mostra de posicionamentos assumidos pelas duas Ministras, refletindo posturas que se afinam ou se afastam das orientações neoliberais predominantes nas argumentações e decisões dos Ministros do STF nas últimas décadas. Nomeados, em sua maioria, pelos governos petistas pré-2016 e pós-2022 (exceções, entre os atuais membros, de uma nomeação por Fernando Henrique Cardoso, uma por Michel Temer e duas por Jair Bolsonaro), os Ministros têm garantido, com suas decisões majoritárias, a introdução ou manutenção de instrumentos que favorecem as demandas do empresariado em detrimento dos interesses dos trabalhadores e suas organizações.

As Ministras consideradas refletem bem esse embate em relação a temas cruciais das relações de trabalho, muito embora se reconheça, por outro lado, uma certa afinidade entre elas quanto a outros temas, como o dos direitos da mulher – afinidade essa atestada por várias de suas decisões monocráticas e votos no colegiado.

Entretanto, este registro não exaustivo, mas com indícios de suas discordâncias no plano das relações de trabalho, fica aqui para provocar novas reflexões. Ele permite apontar para a necessidade de ponderar, na atuação dos atores sociais, o peso relativo dos legítimos e importantes marcadores ideológicos identitários, como os de gênero, porém sempre dialogando com outros aportes como os que, no caso analisado, remetem claramente a conflitos de classe e a seus efeitos sobre uma sociedade que se pretende mais democrática e mais justa.

Notas

[1] Professora titular junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisadora do CNPq. Agradeço a Karen Artur e Maria Cristina Rodrigues pela leitura e sugestões.

[2] Cármen Lúcia Antunes Rocha é graduada pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Obteve o título de Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas. Exerceu a advocacia e, por concurso, tornou-se Procuradora do Estado de Minas Gerais em 1983. Em 2001 assumiu o cargo de Procuradora Geral do Estado. Em 1993 assumiu a Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados da Seccional de Minas Gerais e de 1994 até 2006 foi membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Exerceu, também, a função de Vice-Presidente da Comissão de Temário da Conferência Nacional dos Advogados. Em 2006 tomou posse no cargo de Ministra do Supremo Tribunal Federal, na vaga decorrente do então Ministro Nelson Jobim, tendo sido aprovada pelo Senado Federal e nomeada pelo Presidente da República (STF, 2024).

[3] Rosa Maria Pires Weber concluiu o Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1971. No mesmo ano, obteve o Diploma de Estudos Franceses (2º Grau) pela Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Nancy, na França. Em 1968, iniciou o serviço público, passando pelo Ministério da Educação, pela Secretaria de Administração do Estado do Rio Grande do Sul e pelo Ministério do Trabalho (DRT/RS). Ingressou na magistratura trabalhista como Juíza do Trabalho Substituta em 19 de março de 1976. Atuou como Juíza do Trabalho Presidente das JCJs de Ijuí, Santa Maria, Vacaria, Lajeado, 1ª JCJ de Canoas e 4ª JCJ de Porto Alegre. Passou a ser Juíza Togada do TRT4 em 23 de agosto 1991, quando promovida por merecimento. Presidiu a 1ª e 5ª Turmas, foi Vice-Corregedora Regional no biênio 1999/2000 e Corregedora Regional no biênio 2000/2001. Foi Presidente do TRT4 na gestão 2001/2003. Em maio de 2004 foi convocada para atuar no TST. Tomou posse como Ministra do TST em 21 de fevereiro de 2006 e como Ministra do STF em 19 de dezembro de 2011 (TRT 4, 2011).

[4] Decisões monocráticas são decisões proferidas por apenas um juiz, reagindo a Reclamações Constitucionais encaminhadas ao STF. Nos tribunais, compostos por colegiados, os juízes são autorizados a decidir sozinhos nas hipóteses previstas em lei, como análise de pedidos urgentes. Essas decisões distinguem-se dos acórdãos, decisões proferidas por um coletivo de magistrados.

[5] Embora prevalente no tribunal supremo, cabe registrar que essa linha desprotetiva não foi seguida por todos os ministros, como se verá. O então ministro Edson Fachin por várias vezes denunciou em seus votos e análises, inclusive sobre a legislação pandêmica, que estava havendo um afrontamento à Justiça do Trabalho, principalmente, e à Constituição de 1988, por meio de uma “deferência” suprema ao legislador em detrimento dos pactos sociais. Isso é relevante porque expressa a percepção de um papel ativo do STF na construção da ordem neoliberal (Grillo & Artur & Pessanha, 2023).

[6] Quando fechávamos este texto, no dia 4 de fevereiro de 2024, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva encaminhava ao Congresso Nacional um projeto de lei com propostas de regulação das relações de trabalho para os motoristas de aplicativos, à margem da CLT. Por outro lado, o STF aprovara, dias antes, por unanimidade, a tese de repercussão geral – validade para todas as instâncias da Justiça – da decisão ainda a ser tomada sobre o estabelecimento de vínculo empregatício para esses trabalhadores.

[7] Ao fim desse voto, a Ministra Cármen Lúcia faz uma menção ilustrativa das proximidades eletivas dela e da Ministra Rosa Weber, nos temas sobre trabalho: “Por isso, Senhor Presidente, de maneira extremamente singela – com todas as vênias ao brilhantíssimo voto do Ministro Ricardo Lewandowski e aos votos dos não menos eminentes Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que trazem fundamentos tão brilhantes e tão necessários a uma reflexão mais profunda –, neste momento acautelatório e com mais de dois milhões de acordos já feitos, voto no sentido de negar referendo à cautelar complementada pelo Ministro-Relator”(ADI 6363 DF, 2020). Em tempo: a Ministra votou com o Ministro Alexandre de Moraes, relator do acordão que encerrou o processo. Votaram com ele os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Roberto Barroso. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello.

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Fonte: Blog Biblioteca Virtual do Pensamento Social

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Data da publicação original: 06/03/2024

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