Sobre a (falsa) luta entre CPFs e CNPJs na pandemia de Covid-19: o problema estava na “normalidade”
Por Sávio Cavalcante |Direitos Humanos UNICAMP
“A pandemia da Covid-19 será controlada (ou seus danos serão minimizados) apenas se interrompermos a normalidade. Porém, uma sociedade nunca sai de um período como esse da mesma forma que entrou. O que pode e deve ser alterado em nossas percepções sobre o normal? A disputa sobre o legado desse cenário de dor e sofrimento, mas também de descoberta da solidariedade, está apenas começando.”
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Contextos de excepcionalidade, como este provocado pela pandemia, nos impõem um desafio muito grande: tememos perder de forma abrupta, se não a nossa própria, a vida de familiares e amigos. E, mais do que isso, admitimos – ou, pelo menos, a maioria tem admitido – que nossas ações individuais podem causar a dor e a morte não apenas de pessoas próximas, mas também daquelas que sequer conhecemos, com as quais nunca teremos, de fato, relações face a face.
Ao tomarmos consciência da gravidade dessa situação, é provável que comecemos, por medo ou algum senso de dever moral, a ouvir com mais atenção cientistas e a adotar certos protocolos de comportamento que buscam diminuir, o máximo possível, os riscos para nós mesmos, para as pessoas com as quais nos relacionamos diretamente e para aquelas que nunca iremos conhecer. De alguma maneira, sentimos como parte de um coletivo composto por laços que passaram a se tornar mais visíveis, menos opacos, os quais, necessariamente, nos ligam à vida e ao destino de todos os demais.
O fato é que esses laços não foram criados repentinamente pela excepcionalidade do momento. Eles eram fortes e objetivos também na normalidade anterior às medidas de contenção da pandemia, no entanto, eram mais opacos e amorais, porque mediados pelos vínculos e critérios que se estabelecem, prioritariamente, por relações de mercado. Amoralidade aqui não é usada no sentido de acusação, apenas o reconhecimento daquilo que economistas liberais dizem ser o pressuposto das relações de mercado [1].
No que chamamos de normal, a visão de mundo dominante não vê essa opacidade e amoralidade como um problema. Pelo contrário, esses traços que caracterizam os vínculos invisíveis do mercado seriam sua principal qualidade, já que, assim, a eficiência econômica seria incentivada – todos correm atrás do próprio êxito e, portanto, teriam melhor desempenho – e a maior riqueza gerada por essa eficiência seria distribuída de uma forma justa, de acordo com o mérito de cada indivíduo.
Porém, a exceção criada pela pandemia provoca um efeito inesperado: ela nos obriga a enfrentar de maneira mais crua e direta os princípios que justificavam os critérios de existência sob a normalidade, especialmente aqueles que definem o valor do tempo e da vida das pessoas sob as lentes da amoralidade dos laços mercantis. Os pactos sociais e políticos pré-existentes, aqueles que até aqui tentavam promover a coesão necessária para que a sociedade se reproduza sem muitas contestações internas, são suspensos por um tempo. Mais do que isso, este contexto de excepcionalidade coloca em dúvida se a economia, tal como antes se apresentava, é a única alternativa possível de viabilizar a vida humana de forma eficiente e justa.
Há um princípio importante em jogo, o qual mostra a perversidade dos argumentos que, ao enfatizarem a menor mortalidade ou letalidade da Covid-19 em comparação com outras doenças ou mesmo índices de mortes no trânsito (a ideia por detrás de “gripezinha”), ignoram, consciente ou inconscientemente, o fundamental: o problema de fundo, incontornável, é que a pandemia sobrecarrega o sistema de saúde num pequeno intervalo de tempo. Embora seja um motivação humanitária, o número de pessoas que morrerão é apenas parte do problema – e, infelizmente, tudo indica que serão milhares. O fato decisivo é que Sistema Único de Saúde (SUS), que tem por obrigação legal atender a todos cidadãos, sabe, com meses de antecedência, que, se nada for alterado no cotidiano normal de interação social, milhares de pessoas irão exigir seu direito ao atendimento e não haverá leitos e aparelhos disponíveis para um tratamento correto.
Fosse uma empresa “normal”, poderia simplesmente fechar as portas depois de o último cliente ocupar o último espaço. Fosse um desastre natural, seria visto como inevitável exigir de médicos a adoção de protocolos para decidir a quem será destinado o tratamento e quem será deixado para trás. Sendo a tendência geral da pandemia previsível, o já famoso “achatamento da curva” torna-se uma exigência de saúde pública, além de um dever moral.
Na excepcionalidade provocada pela pandemia, descobrimos uma verdade da normalidade: a sociedade é um ente maior que a simples soma da partes que a compõem e certos princípios não são redutíveis ao cálculo de sobrevivência, mais ou menos correto, que fazem os indivíduos isoladamente – um tema à parte que mereceria desenvolvimento é o estelionato cometido contra a teoria e as posições políticas de Charles Darwin para justificar a busca, a qualquer custo, da “imunidade de rebanho” [2].
O embate torna-se tão mais explícito que, nesses contextos, certas verdades internas à lógica econômica não precisam ser apresentadas com mentiras ou algum verniz de civilidade. Elas se tornam transparentes, desavergonhadas, determinadas pelo “laço do frio interesse, pelas duras exigências do pagamento à vista”, como um texto famoso do século XIX apresentava o capitalismo.
Rubem Novaes, presidente do Banco Brasil, não foi verdadeiro, em seus termos, ao dizer que a vida “não tem valor infinito”? E Roberto Justus, para quem é irracional criar uma crise econômica para tentar conter uma doença que “só (sic) mata velhos e quem já tem outra enfermidade”? E a lógica marota de empresários que, sem nunca ter defendido anteriormente o pleno emprego, mostram o “desequilíbrio” das medidas que causarão desemprego e o sofrimento (até a suicídio) de milhões de pessoas em comparação com a morte de “alguns milhares” de infectados?
Na era dos memes, a mensagem viralizou da seguinte forma: por que levar à morte “milhões de CNPJs” apenas para salvar “alguns poucos CPFs”?
Somos, então, apresentados não à exceção da pandemia, mas ao deserto do real que é a normalidade. Como observou Ailton Krenak em entrevista recente – um ponto de vista importante de quem descende de grupos humanos já longamente exterminados em nome do normal da economia –, quando se diz “pode deixar morrer” a alguns com pouca ou nenhuma utilidade econômica no presente, isto “não é um ato falho, a pessoa não é doida, é lúcida, sabe o que está falando” [3].
É preciso reconhecer, contudo, que parte importante dos meios de comunicação, muitos economistas neoliberais, formadores de opinião de pensamento utilitarista e mesmo grandes grupos econômicos têm agido em sentido contrário. Até o Ministro da Economia, Paulo Guedes, pisou no freio, ainda que apresentando uma dificuldade perceptível, pela falta de uso, em encaixar os fonemas que compõem palavras como “medidas anticíclicas” e “solidariedade”.
Porém, é importante reconhecer que as “frentes amplas” em combate humanitário contra a pandemia não anulam as diferenças já existentes: os agentes que indiquei no parágrafo acima operam no registro de suspensão, ou seja, as “leis” e princípios que regem a normalidade são boas, mas precisam ser relativizadas no atual contexto e, finda a pandemia, tudo volta ao normal [4]. Liberais dizem nunca ter ignorado a importância do Estado e utilitaristas tentam fazer cálculos para mostrar que a recusa da quarentena não é racional em termos de custo/benefício para os indivíduos isolados [5].
Não à toa, surge uma caracterização, nesses mesmos meios, que fortalece a ideia de suspensão: estaríamos em “estado de guerra”. Nessa condição, medidas coletivas devem se sobrepor a interesses individuais, ou seja, é exigida uma cota temporária de sacrifício pessoal em nome de um bem maior. É inegável que a retórica da guerra tem efeito mobilizador, mas nem por isso ela deixa de ser enganosa, especialmente em relação ao que se espera como desfecho do contexto de excepcionalidade.
Que sociedade será prometida para aqueles que retornarão da linha de frete, do front mais destrutivo de combate? Seria a “volta ao normal” e a obediência aos que defenderam que o “O Brasil não podia parar” os prêmios a serem oferecidos?
Entre 1917 e 1918, o sociólogo alemão Max Weber redigiu ensaios que foram originalmente publicados em jornais no período final da I Guerra Mundial. Reunidos com a pretensão de intervir na reconstrução institucional pós-guerra, Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída pressupõe um processo inevitável em desfechos de conflitos como esse: as pessoas que mais colocaram suas vidas em risco têm o direito de renegociar seu lugar e seu papel nos destinos das nações em nome das quais lutaram. No caso alemão à época, as demandas eram típicas da formação das democracias de massa: sufrágio universal e governo parlamentar.
Isso não significa que as guerras foram travadas em nome desses direitos, muito pelo contrário. Porém, de maneira imprevista, elas mostram que a normalidade anterior deixa de ser legítima para aqueles que mais sofrem nesses processos. Para lembrar de outros exemplos, poderíamos citar o avanço não apenas em direitos civis e políticos, mas também nos direitos sociais, como serviços públicos gratuitos e universais característicos de Estados de Bem-estar social na Europa ocidental pós-II Guerra Mundial, em especial, no caso inglês, o NHS (National Health Service), que inspirou o nosso SUS. Uma verdadeira conquista de guerra fundamental de trabalhadores/as rurais, operários/as e assalariados/as em geral que enfrentaram o nazi-fascismo. No caso brasileiro, a participação na aqui chamada Guerra do Paraguai promoveu uma fissura importante no modelo escravocrata do Império, com o avanço do abolicionismo republicano nas camadas militares. Ou mesmo a luta dos movimentos negros nos EUA dos anos de 1960 no contexto dos conflitos imperialistas promovidos por este país na Ásia. Em suma, a cota de sacrifícios pessoais em períodos de excepcionalidade de guerra não é exigida de maneira equitativa de cada um e as assimetrias são sentidas nos corpos e no senso de justiça dos que são enviados à linha de frente do combate.
No caso atual de excepcionalidade provocada pela pandemia, a volta à normalidade seria a volta à hegemonia neoliberal que, crise após a crise, vem dobrando a aposta de um projeto que, tirando o verniz técnico que se compra na praça, promete uma fantasia: diminuir a pobreza aumentando a desigualdade; gerar riqueza ampliando a especulação do mercado financeiro; construir uma “sociedade aberta e livre” com cercas entre bairros, muros entre países e encarceramento em massa; e, o mais fatal em termos ecológicos, consumo sempre crescente em um mundo natural finito. Não sem razão, surgem às dezenas cursos e cultos sobre reprogramação mental, alteração de mindset e empreendedorismo laico e religioso para tentar dar conta do buraco que se abre entre a promessa e a realidade.
Numa famosa entrevista concedida em 1987 à revista Woman’s Own, Margaret Thatcher, expoente da ofensiva política neoliberal no Reino Unido, organizou de modo consistente a reforma material e cultural proposta pelo neoliberalismo. O contexto da entrevista dizia respeito à postura de pessoas que exigiam do governo a resolução de problemas que, no limite, seriam apenas delas. Pessoas que, assim, culpam a sociedade por seu infortúnio. Ela, então, reage: “[essas pessoas] estão colocando seus próprios problemas na sociedade e quem é a sociedade? Não existe isso [a sociedade]. Há indivíduos homens e mulheres e há famílias e nenhum governo pode fazer algo a não ser por meio das pessoas”. Na mesma entrevista, volta ao tema: “Não há algo como a sociedade. Há um tecido vivo de homens e mulheres e pessoas e a beleza desse tecido e a qualidade da nossa vida depende de quanto cada um de nós está preparado para sermos responsáveis com nós mesmos e (…) nos virar para o lado e ajudar por nosso próprio esforço os desafortunados”.
A complexidade da frase de Thatcher está em se mostrar comprometida com os “desafortunados” sem exigir, para tanto, um projeto de sociedade que seja maior que a soma das partes. No limite, não há um projeto de sociedade para os neoliberais, apenas a soma de diferentes interesses particulares que, ao agirem de forma obstinada no mercado, produzem riqueza para si e, indiretamente, para os outros. Os laços sociais – o “tecido vivo” – podem até existir, mas eles serão sempre mediados, indiretos, opacos. Algo direito e face a face apenas com família e caridade com a comunidade próxima.
A força ideológica do neoliberalismo se fez ao disputar culturalmente o sentido de justiça que vigorava em modelos socialdemocratas que preservavam serviços públicos universais e gratuitos (desmercadorizados). Ampliar direitos provocaria desestímulo ao trabalho duro, incentivaria a preguiça e geraria, portanto, ineficiência. Sistema de seguridade social socialdemocratas, por exemplo, foram atacados justamente pelo princípio de “solidariedade” que pressupunham.
Nesse tópico, quem melhor sintetizou a crítica neoliberal foi o economista estadunidense Milton Friedman. Em livro de divulgação de suas ideias escrito com Rose Friedman, defendeu que os sistemas de previdência que se baseiam no princípio da solidariedade são injustos e coercitivos, pois fazem com que a maioria pague a uma minoria que “satisfaz certos requisitos administrativos (…) A responsabilidade moral é uma questão pessoal, não social. Filhos ajudaram pais por amor ou dever. Agora contribuem para o sustento dos pais de alguém, e isto por obrigação ou medo” [6].
O neoliberalismo é tanto uma ofensiva de frações capitalistas, especialmente capital financeiro, sobre a produção e os direitos sociais quanto uma esforço de modificação cultural da sociedade. Seguindo o caminho aberto pelas aulas de Michel Foucault sobre economistas neoliberais, e levando em conta as análises marxistas da financeirização da economia, Pierre Dardot e Christian Laval oferecem um estudo de fôlego sobre a gênese e força dessa racionalidade neoliberal [7]. Mostram que, para se viabilizar, essa ideologia precisou conquistar corações e mentes ou, como disse Thatcher, “a economia é o método. O objetivo é mudar a alma”.
A mudança mais importante desse componente cultural, e que nos faz voltar ao título que dá nome a este texto, é a construção neoliberal da teoria do “capital humano”. Em linhas gerais, trata-se de uma teoria que busca dissolver os lugares distintos de poder ocupados entre capitalistas e trabalhadores em nome de uma concepção de mundo segundo a qual todos seriam, de alguma maneira, capitalistas.
Todos teriam dentro de si uma forma de capital – expressos em diferentes níveis de conhecimento, talento, qualificação – que, no mercado, receberá um valor adequado ao grau de investimento realizado.
Se, então, todos entendessem que somos de alguma maneira uma empresa, se todos entendessem que nos tornamos mais eficientes se sentirmos, pensarmos e agirmos como empresa, não ficaríamos mais preocupados em encontrar empregos, e sim criaríamos todos as nossas próprias oportunidades de mercado e fontes “autônomas” de renda. No limite, nem hveria “CPFs”, que já é, de alguma forma, um deslocamento da noção de um registro civil cidadão em direção à existência puramente econômica. Deveriam existir apenas “CNPJs” cujos ativos somos nós mesmos.
A consequência em termos de coesão social para esse tipo de racionalidade é profunda. Os CPFs que não podem ser CNPJs (idosos, “inválidos”, ou qualquer sentido outro sentido de incapacidade ou simples recusa do “novo mundo do trabalho”) são passíveis de descarte. Essa racionalidade e subjetivação neoliberais potencializam a noção de uma lógica econômica que não pode sequer ser arranhada para que continue a existir vida no planeta. Qualquer imposição externa – hoje, a pandemia; amanhã, o colapso ambiental? – é vista como uma ameaça.
É evidente que, para continuar a existir alguma forma de sociedade durante e após a pandemia, milhões de pessoas continuarão trabalhando, no campo, nas fábricas, nos mercados, em suas casas. Mas, crucial notar, que a defesa de que o país ou a economia não podem parar é mais um grito genérico e desesperado para manter rendas – e , em especial, de pequenos e médios proprietários e dos capitais alocados no mercado financeiro – do que um programa específico para viabilizar a produção de setores essenciais da produção material e da reprodução social. A recusa ao isolamento espacial em grande escala foi “racionalmente” apresentada em editorial do Wall Street Journal [8]. A tese passou a ser defendida com mais abertura por “celebridades”, e foi usada na declaração citada de Roberto Justus, por exemplo. Ademais, é preciso destacar que a força desse discurso – ser reproduzido com naturalidade por tantas pessoas, com ou sem capital de verdade – vem de várias fontes.
Em primeiro lugar, deve-se à própria modificação já promovida por essa subjetivação neoliberal: o trabalhador, mesmo totalmente subordinado a uma empresa (os exemplos de trabalho em plataformas de entrega e transporte são um caso emblemático), precisou agir e pensar há anos como um autônomo, uma pequena empresa para sobreviver – dono, em boa parte, sequer do carro (pois o aluga), apenas de si mesmo. Qualquer tentativa de tipificação dessas relações como emprego assalariado era vista como coisa ultrapassada, não atenta ao “futuro do trabalho”.
Em artigo recente que fiz com Vitor Filgueiras (UFBA), [9] mostramos que a mais importante “inovação” de empresas que contratam trabalhadores por aplicativos, como a Uber, não diz respeito à tecnologia ou a seu algoritmo. A maior inovação foi produzida por seus advogados e pelo lobby político, que corromperam legislações no intuito de impedir a tipificação do vínculo material empregatício entre empresa e motorista.
O que procuramos mostrar neste artigo é que parte majoritária do que se considera “trabalho autônomo” é, na verdade, trabalho assalariado dissimulado. O atual governo, que ampliou a reforma trabalhista, e as vozes que defendiam o “novo mundo do trabalho” agora se veem preocupados em como proteger os informais e autônomos. Ora, milhões de trabalhadores são informais ou autônomos por uma decisão política vista como justa e racional na normalidade.
A situação é perversa, pois esses/as trabalhadores/as precisaram contrair dívidas para executarem serviços completamente controlados pelas empresas que, agora, querem se distanciar do caos social de precariedade que ajudaram a criar. Boa parte não pode, pelas limitações da sobrevivência, contribuir para a seguridade social e se tornarem protegidos em situações de crise como esta. Mas, importante notar, já estavam desprotegidos antes: se qualquer problema familiar ou acidente impedisse a continuidade de suas atividades, simplesmente não teriam renda. A exceção apenas multiplicou a insegurança e precariedade que já conheciam na normalidade.
Ainda nesse aspecto, contribui de maneira decisiva para retardar ações de urgência de transferência de renda a ficção neoliberal mais radical de que a moeda (nessa lógica, a própria riqueza) é, sempre e exclusivamente, privada, sendo o Estado apenas um ente que, por meio do imposto, rouba e expropria os indivíduos que a geraram de maneira autônoma. Se o isolamento espacial diminui a riqueza privada, nessa raciocínio, não haveria renda possível a ser transferida para as camadas mais pobres e vulneráveis da sociedade. Seria um “dado técnico” contra o qual os ignorantes que priorizam a solidariedade nada podem fazer. Na prática, o recado é: aqueles coagidos pela necessidade de sobrevivência que continuem trabalhando, mesmo no contexto de pandemia. A parte conscientemente oculta dessa lógica é que, de fato, se o Estado amplia o crédito agora, uma discussão muito mais importante terá que ser feita para avaliar como a riqueza já existente pode ser dividida no futuro.
Dois últimos aspectos auxiliam a força cultural subjacente à (falsa) luta entre CPFs e CNPJs. O primeiro é a junção, ao programa neoliberal, do conservadorismo moral e religioso [10]. À ausência de uma rede de proteção pública e universal, este conservadorismo oferece modelos de religiosidade e de família patriarcal que são encarados, especialmente nas classes populares, como a forma possível para elaborar estratégias de sobrevivência na precariedade. No contexto da pandemia, os papéis de gênero e sexualidade de base conservadora têm sido importantes para que a recusa do isolamento por parte de trabalhadores pobres seja tomada como sinal de virilidade e da ética tradicional do trabalho duro.
Um último, porém não menos importante, aspecto é o papel da linguagem neofascista que ganhou força nos últimos anos e deu base social popular e na classe média ao programa neoliberal, o que se construiu por meio de canais alternativos de comunicação cuja negação da verdade e da ciência eram objetivos a serem atingidos, e não consequências secundárias.
A expressão “um CPF a menos” foi reproduzida de forma natural e desavergonhada por essa redes quando operações policiais resultavam em mortes sumárias, fossem elas provocadas por resistência ou não dos atingidos nessas operações. O “cancelamento de CPFs” já existia na normalidade dos apoiadores neofascistas de “excludentes de ilicitude”.
O campo político e social que, de maneira heterogênea, tem apoiado as medidas de isolamento promovem, na prática, um defesa da sociedade contra a economia tal como existia. Uma consequência importante desta frente-ampla humanitária contingente é o consenso em torno da necessidade de se utilizar recursos públicos para prover uma renda básica à população mais vulnerável.
O dilema da implantação da renda básica reside justamente na diferença entre os que tomam a exceção apenas como uma necessidade de suspensão da normalidade e os que vislumbram, nesse iniciativa, uma oportunidade de refazer os pactos sociais que tornam uma sociedade coesa e mais justa, com ou sem pandemia.
Os neoliberais que recuaram temem que a renda básica crie um sentimento de solidariedade forte a ponto de não ser possível retirá-la no futuro. Qual será o incentivo ao trabalho, pensam eles, se houver diminuição da coerção promovida pela pobreza?
Aos que imaginam ser possível não só superar a pandemia com menos perdas humanas possíveis, mas também descobrir na exceção alternativas de relações econômicas e sociais mais igualitárias e solidárias, e nem por isso menos eficientes, é preciso lutar pelo reconhecimento social e material dos que estão colocando suas vidas na linha de frente desse combate. Um tópico crucial será, por exemplo, a rediscussão da renúncia fiscal existente para os que pagam planos de saúde privados.
Em suma, que o legado do que tem sido chamado de guerra seja o comprometimento, no orçamento do Estado, de recursos necessários a ampliar os sistemas de saúde e seguridade públicos, universais e gratuitos, além da necessidade vital de desenvolver pesquisa e conhecimento científico de interesse igualmente público. E, no momento, que a riqueza absurda já existente em uma parcela ínfima da população e de empresas seja o recurso principal para prover renda a quem pretende apenas sobreviver.
Para parafrasear o slogan britânico, usado até pelo Primeiro-ministro que reconheceu o erro que cometia ao achar que a economia não podia parar e foi salvo pelo sistema público de saúde: Fique em casa, proteja o SUS e salve vidas!
[1] Para citar um caso comum da defesa da amoralidade dos mercados como fator de eficiência do normal da economia, a coluna de Samuel Pessoa, “O mercado e a moral” (Folha de São Paulo, 26/01/20) é um bom exemplo. Foi redigida no momento em que o ex-Secretário de Cultura do governo Bolsonaro fez um vídeo com referências nazistas e, nem por isso, afetou os mercados. Se os mercados fossem morais, segundo Pessoa, “os erros não seriam menores”.
[2] A defesa da “imunidade de rebanho” sem isolamento espacial é nada menos do que neoliberalismo epidemiológico. Ver Isabel Frey, “‘Herd Immunity’ is Epidemiological Neoliberalism”. The Quarantimes. 19/03/20.
[3] Entrevista ao jornal Estado de Minas, 3/04/20.
[4] O atual presidente do Banco Central resumiu a mensagem: “Aqui o mais importante não é a saída do trilho, o desvio. O mais importante é mostrar para o mercado que você vai voltar pro trilho lá na frente. Então quanto mais separada for a administração, quanto mais separados forem os orçamentos de crise, quanto mais claro ficar que nós vamos voltar (para o trilho), menor vai ser o custo” (Entrevista ao UOL, 9/04/20, https://bit.ly/2Xp37Xv).
[5] Hélio Schwartsman, “Covid-19, a solução darwiniana”, Folha de São Paulo, 13/03/2020.
[6] Milton e Rose Friedman. Liberdade de escolher. Rio de Janeiro: Record, 1980, p. 111. Paulo Guedes, ao defender em 2019 não apenas a reforma da previdência, mas a substituição de modelo de repartição para um sistema de capitalização individual, afirmou que a resistência à mudança se explica justamente pelo fato de as pessoas quererem ser “solidárias”, não seria por “maldade”, mas agir assim é sinal de “ignorância”, de quem não entende questões técnicas de economia (Entrevista à Globonews, 18/04/19. Transcrição literal desta parte da entrevista no artigo que escrevi para o Boletim da Adunicamp, junho/19, https://bit.ly/3c481NV ).
[7] Pierre Dardot e Christian Laval, A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
[8] “Rethinking the Coronavirus Shutdown”. Wall Street Journal, 19/03/20.
[9] Vitor Filgueiras e Sávio Cavalcante, “What has changed: A new farewell to the working class?”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.35 no.102 São Paulo, 2020. (https://doi.org/10.1590/3510213/2020).
[10] Michel Nicolau Netto, Sávio Cavalcante e Mariana Chaguri, “O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família”. Paper do 43º Encontro da Anpocs, Caxambu, 2019 (https://bit.ly/3a7g0Z7).
Fonte: Direitos Humanos UNICAMP
Data original de publicação: 15/04/2020