Subordinação e os limites da legislação trabalhista: desarranjos e rearranjos em torno a uma fattispecie que se modifica

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Valeria Nuzzo | Instituto Lavoro

Se historicamente a legislação trabalhista se desenvolveu exclusivamente em torno do emprego subordinado é apenas porque em uma economia do tipo capitalista, o contrato de emprego subordinado tem sido o principal instrumento para adquirir e gerenciar a força de trabalho.

Apresentação realizada no XXX Encuentro de Expertos Latinoamericanos en Relationes Laborales, Bologna, Castilla La-Mancha Y Turin em 16 de novembro de 2023.

Uma breve premissa.

Para discutir como os limites da legislação trabalhista se alteraram em face das evidentes mudanças na sociedade e na organização empresarial, preciso partir exatamente dessas mudanças, porque gostaria de propor uma interpretação da dinâmica que afeta o mercado e a relação de emprego que nos permita entender o problema e, portanto, atentar à necessidade (e à eficácia) das tentativas realizadas pela doutrina, pela jurisprudência e pelo legislador de incluir no escopo das proteções trabalhistas todos aqueles que – como disse Barassi – trabalham “sob dependência”, mesmo quando o comando é imaterial e evanescente, como uma plataforma on-line pode ser (e tem sido).


Sobre a redução dos limites da legislação trabalhista

Começo com um expediente. E uso o cinema que desde sempre nos ajuda a compreender a realidade, sobretudo quando a fotografa a partir de um ponto de observação crítica.

Imagino que todos tenham assistido ao último filme de Ken Loach, Sorry we missed you. Antes mesmo do início do filme, com a tela ainda escura, se ouve a voz de Richy, um aspirante entregador freelance, concentrado na entrevista com o responsável de uma grande empresa de entregas que o convida a tomar as rédeas do suo destino, a investir em si mesmo, a capitalizar os seus recursos para se reinventar empreendedor: com o uso de transporte próprio (a van a ser alugada na mesma empresa) e livre do vínculo de subordinação. Ele não vai trabalhar “para” a empresa, mas “com” a empresa. Ele vai se tornar – como afirma desejar – o “chefe de si mesmo”.

Naturalmente é apenas uma ilusão: não há liberdade nem autonomia no trabalho de Richy. Há, pelo contrário, ausência de força contratual, há horários de trabalho desumanos que devoram a vida privada e familiar. E há, inclusive, ordens a seguir, mesmo que não sejam ditadas por uma pessoa, mas sim por um dispositivo eletrônico. A história narra muito bem como a dependência se transforma: os poderes de direção e controle do empregador se escondem mesmo aos olhos de Ricky, que obedece, e até sofre punição, mas acredita até o fim que tudo depende dele. Imerso em uma relação de sujeição ao poder alheio, Ricky se sente esmagado e o espectador, até mesmo o menos garantista, se pergunta se seja possível que aquele estado de sujeição tão evidente não tenha nenhum recurso de proteção. E, de modo mais geral, se o direito do trabalho que possui no seu DNA a função de reequilibrar as relações de poder com uma vocação assimétrica, não seja chamado a desempenhar seu papel mesmo quando o desequilíbrio é encontrado em uma relação contratual na qual não há vínculo de subordinação no sentido clássico.

O espectador italiano responderia a essa pergunta considerando a sua constituição, pois essa tutela o trabalho, qualquer trabalho, como expressão primária da dignidade social da pessoa. Basta pensar que o Art. 1 fundamenta a República italiana no trabalho; que o Art. 3 da Constituição, ao estabelecer o princípio de igualdade, atribui à República italiana a tarefa de remover todos os obstáculos que limitam a liberdade e a igualdade e impedem a efetiva participação de TODOS OS TRABALHADORES na organização política, econômica e social do país; que o Art. 35 prevê expressamente a proteção do trabalho em todas as suas formas e aplicações.

Umberto Romagnoli destacou que «enquanto o código fundamenta-se em termos de tipologias contratuais e modalidades técnico-legais de execução do trabalho, a Constituição se preocupa apenas em remover situações subjetivas de fragilidade econômica ou inferioridade socioeconômica, independentemente de como e onde se manifestem». É o estado de inferioridade econômica de quem deve dispor de sua força de trabalho à serviço de outrem, condição que pode reunir o empregado e o trabalhador autônomo, a solicitar a intervenção protetora da lei e a estendê-la a todas as formas de trabalho que constituam “um fator regular na empresa de outrem, independentemente do regime contratual com base no qual venha a ser realizada a sua integração no ciclo produtivo” (D’Antona).

Mas como adverte Romagnoli, o Código Civil italiano fundamenta-se em tipologias contratuais, fornecendo proteções específicas para o emprego subordinado e deixando, em vez disso, a regulamentação dos contratos de trabalho autônomo para a vontade individual.

Agora, está claro que, se historicamente a legislação trabalhista se desenvolveu exclusivamente em torno do emprego subordinado é apenas porque em uma economia do tipo capitalista, o contrato de emprego subordinado tem sido o principal instrumento para adquirir e gerenciar a força de trabalho. O trabalho autônomo foi quantitativamente menos significativo e se referia predominantemente a segmentos privilegiados da população: médicos, advogados, empregos com altos níveis de educação e altas rendas.

Porém, a situação mudou. Vistosamente e com rapidez.

Sem poder aqui me alongar sobre as muitas e importantes transformações no trabalho, é preciso mencionar duas tendências opostas.

O forte crescimento do trabalho profissional a serviço da empresa levou a uma vasta área  de instabilidade profissional e de dependência econômica e mudou as relações “externas” da empresa, obscurecendo a lógica igualitária e mercantil que antes as caracterizava.
Por outro lado, a perda da unidade aristotélica de tempo, lugar e ação que caracterizava a  produção industrial mudou as relações “dentro” da empresa, enfraquecendo a dimensão  hierárquica e levando a interações sem precedentes: basta pensar que, enquanto um  almoxarife empregado por um serviço terceirizado de logística pode trabalhar na empresa  cliente, um funcionário desta última pode executar seu trabalho de casa e até mesmo de  um lugar desconhecido pelo empregador. 

A soma dessas duas tendências produziu confusão na distinção entre interno e externo, que se propagou para a distinção entre autonomia e subordinação, entre o trabalho no modelo de subordinação jurídica e aquele deixado para a determinação da liberdade contratual das partes.

Sobre essas mudanças, tanto na organização empresarial quanto nos poderes do empregador, se sobrepõe, com um impacto devastador, a introdução da inteligência artificial no gerenciamento de determinadas relações trabalhistas.

Loach mostra no seu filme como uma espécie de tablet possa impor tempos e modos da prestação do serviço. E assim não há empregador, mas ainda assim há a subordinação de Ricky que deve obedecer àquele dispositivo.

Mas o algoritmo não muda apenas a forma de subordinação, ele afeta a própria função do contrato de trabalho subordinado, porque a capacidade do sistema de IA de gerenciar um número muito grande de relações, integrando-as à organização do empregador, torna “antieconômico” um contrato destinado a garantir lealdade e obediência, quando a disponibilidade do desempenho do trabalho e sua incorporação à organização do empregador podem ser alcançadas sem os custos da subordinação.

Deixe-me explicar: se a empresa hierárquica, com o chefe decidindo, era a forma preferida do capitalismo industrial, porque era mais barata do que as transações individuais e múltiplas que teriam de ser feitas todos os dias (a referência é à teoria dos custos de transação de R. Coase). O algoritmo reverte tal conveniência ao tornar mais convenientes as inúmeras transações contínuas, pois elimina os custos econômicos e de tempo. Em outras palavras, se historicamente a empresa adquiria trabalho por meio de um único contrato destinado a dar a uma parte o poder de decisão e à outra a sujeição ao poder, sem negociar a esfera da dívida, hoje, no contexto das plataformas digitais, o interesse empresarial na continuidade e na repetição do desempenho é alcançado por meio da celebração de um grande número de contratos, excedendo as necessidades organizacionais da empresa que, no entanto, multiplicam a possibilidade de usar serviços fungíveis, induzidos e organizados pelo algoritmo.

Uma multiplicidade de transações instantâneas (em um clique) “mais baratas” do que um único contrato de trabalho, que tem os custos (seguridade social e proteção) associados à subordinação.

Graças aos sistemas algorítmicos o contrato de trabalho é transformado: não serve para concretizar a subordinação de uma parte ao poder da outra, mas visa apenas à potencial inclusão do serviço na organização da plataforma. Uma organização que, por sua vez, é regulada por um mecanismo indutivo que influencia a conduta do devedor por meio de incentivos e penalidades (desde a classificação até a medição da satisfação do cliente), de modo a determinar de fato dois efeitos: tornar a repetição/continuação do desempenho confiável e conformar o desempenho ao interesse empresarial.

A colaboração na organização, portanto, não é garantida pelas obrigações de obediência e lealdade: essa é meramente induzida. Mas se, como resultado do uso da IA, a empresa não precisar mais de obediência e lealdade (ou melhor, deduzir esses elementos no contrato), isso significa que não se pode mais recorrer a esses elementos para “procurar” a subordinação.

Essas transformações levaram a redução do direito do trabalho, que viu suas fronteiras encolherem, deixando de fora da área protegida trabalhadores que – embora não se enquadrassem imediatamente no conceito de subordinação elaborado sobre o trabalhador da fábrica fordista – compartilhavam com esse necessidades inquestionáveis de proteção, devido a uma evidente assimetria de poder entre as partes de um contrato que determina a inclusão em uma organização de outrem para a busca de um resultado alheio aos interesses do trabalhador. Uma dupla alienação, a do resultado e a da organização, à qual, além disso, o Tribunal Constitucional Italiano se referiu há mais de 25 anos (5 de fevereiro de 1996) precisamente para delimitar os limites da fattispecie protegida, mas que foi amplamente ignorada, especialmente pela jurisprudência posterior.

Portanto, tentarei investigar essa “redução” para entender como o sistema jurídico italiano reagiu.


No princípio era o uber…

O ponto de partida para o debate sobre a consistência da fattispecie de imputação das proteções trabalhistas é o debate relacionado ao litígio iniciado pelos motoristas da Uber em muitos Estados. Tratando-se de sujeitos que aderem a uma plataforma que parece lidar com intermediação, ao colocar o motorista em contato com a pessoa que precisa da viagem, a doutrina e a jurisprudência começaram a questionar, em primeiro lugar, a existência de um vínculo empregatício real e a seguir a natureza desse vínculo.

A questão tem sido global desde o início: em outubro de 2016, o Employment Tribunal of London decidiu, com uma solução interpretativa difícil de exportar para fora do Reino Unido, enquanto alguns meses depois, em fevereiro de 2017, a decisão do Tribunal do Trabalho de Belo Horizonte, que foi a primeira a reconhecer a existência de um vínculo de subordinação entre a Uber e seus motoristas, foi comentada em praticamente todo o mundo.

Mas é o pronunciamento da Corte de Justiça Europeia (dezembro de 2017) a ecoar fortemente na Itália. A decisão não se referia ao direito do trabalho, mas esclarecia que a atividade principal da empresa californiana era o serviço de transporte e, portanto, que os motoristas eram trabalhadores, enfatizando além disso a existência de um poder organizacional da plataforma sobre os trabalhadores, um poder disciplinar (atípico) e um poder de controle determinado pelo sistema de avaliação que se vale do voto dos usuários.


A questão da qualificação na Itália

O caso Uber, portanto, colocou a doutrina europeia frente a frente com o dilema da qualificação das relações de trabalho gerenciadas por uma plataforma on-line, cuja solução depende fundamentalmente de dois fatores: a amplitude da noção de subordinação (e, portanto, sua capacidade de incluir também o trabalho regido pelo algoritmo) e a rigidez do vínculo subordinação/proteção, porque, naturalmente, o problema da qualificação é atenuado quando a proteção é reconhecida para o trabalho “sans frase” (como D’Antona costumava dizer), ou seja, também fora da subordinação.

A situação italiana, ao menos no início, foi dramática, porque:

1) temos uma rígida dicotomia entre subordinação e autonomia, o que, em termos de tutela, significa uma alternativa entre tudo e nada;

2) e porque temos uma noção de subordinação ligada à parasubordinação. (Art. 2094 Código Civil.: “…sob a direção…”)

Houve algumas tentativas da jurisprudência de cunhar uma noção de subordinação atenuada, precisamente para “atualizá-la” com as mudanças na organização do trabalho. Mas, acima de tudo, continuou-se a fazer referência ao critério de direção e, portanto, reflexivamente, à obrigação de obediência, que – como mencionado – é de pouca utilidade em um relacionamento regulado por IA, porque o algoritmo não precisa de obediência: a IA “induz”, não comanda.

Esse arranjo foi alterado primeiro em 2015, quando a legislatura interveio com o Art. 2 do DL 81/2015, vinculando as proteções do direito do trabalho ao conceito de subordinação jurídica, e depois em 2019, quando a (pouco eficaz) disposição de 2015 foi alterada e o âmbito da proteção do direito do trabalho foi ampliado para além dos limites tradicionais do Art. 2094 do Código Civil, para abranger todas as situações em que um poder unilateral do titular da organização empresarial incidi sobre os métodos de cumprimento do outro contratante, limitando a sua autonomia.


Da parasubordinação à subordinação jurídica

Sem poder aqui investigar as várias reformas, gostaríamos de salientar que, a partir de 2019, o Art. 2, §1, do DL. nº 81/2015, projetou o direito trabalhista italiano para além do perímetro do trabalho parasubordinado. Em particular, a disposição agora prevê que as proteções trabalhistas se apliquem «às relações de colaboração que assumem a forma de serviços de trabalho predominantemente pessoais e contínuos e cuja forma de desempenho é organizada pelo comitente», «mesmo que a forma de desempenho seja organizada por meio de plataformas, incluindo plataformas digitais».

O Art. 2, §1, do DL 81/2015 desenha assim uma fattispecie com limites muito mais amplos do que os da subordinação, no qual todas as formas de colaboração contínua e pessoal com a empresa, caracterizadas pela inclusão na organização de outrem, encontraram seu lugar. É a integração funcional do trabalho na empresa que o legislador observa para estender as garantias, porque determina uma assimetria de poder que exige a intervenção de proteções heterônomas destinadas a realizar aquele projeto constitucional expresso nos Art.s 1, 3, 4 e 35 da Constituição, que – como já se afirmou – não fazem referência à subordinação, mas impõem a proteção do trabalho em todas as suas formas e aplicações para eliminar situações subjetivas de inferioridade e desvantagem.

As reações da doutrina italiana à nova norma não são unívocas. Há quem acredite que a norma tenha introduzido uma nova fattispecie de referência para garantias de emprego e quem, em vez disso, acredite que a fattispecie de referência permanece a subordinação e a regra apenas tenha produzido uma lacuna entre fattispecie e efeitos, alargando a disciplina protetora “para além” do trabalho subordinado a relações que evidentemente não são subordinadas, mas para as quais o legislador emite um juízo de compatibilidade com a disciplina e com os interesses que lhe estão subjacentes.

Aqui não nos interessa investigar qual interpretação seja preferível. Nos interessa o fato. E o fato é que, quando o trabalho faz parte da organização de outrem, a essa se aplica a legislação trabalhista.

E nos interessa outra coisa: como a legislatura não seleciona as disciplinas do emprego subordinado (não diz proteção contra discriminação, sim, mas proteção contra demissão não), isso significa que ela estende em bloco toda a legislação de emprego subordinado. Portanto, o sistema de proteções não pode ser diferenciado (e sobre isso a jurisprudência mais recente é unívoca).


A situação dos entregadores

A intervenção nos limites das proteções trabalhistas deve muito na Itália – como na Espanha – à reivindicação dos direitos dos entregadores de food-delivery.

Na primeira fase, a atenção se concentrou na disputa iniciada pelos entregadores da Foodora, com sede em Torino, contra a conhecida plataforma de food-delivery, que produziu diferentes soluções interpretativas para cada nível de julgamento. Os entregadores solicitaram o direito de subordinação, constatando como o seu serviço se insere no contexto de uma organização empresarial que, através de um APP, indica ao motociclista onde se dirigir para recolher os alimentos, onde os levar e em quanto tempo (diríamos horários e locais do serviço). Que monitoriza tanto o percurso do trabalhador (através da geolocalização) como a satisfação do serviço prestado ao cliente (com a avaliação do usuário), de modo a permitir eventualmente que a plataforma sancione o descumprimento ou a baixa satisfação com uma pontuação que impacta na atribuição de entregas futuras e até para efeitos de desativação da conta. A defesa da plataforma baseou-se, no entanto, na liberdade do entregador de decidir o momento da prestação do serviço, podendo recusar os slots propostos pelo comitente (de certo não levianamente, considerando que as recusas afetam a referida pontuação e podem, em certa medida, interromper a relação).

Sobre a questão foram produzidas três diferentes soluções interpretativas.

Em primeira instância, o Tribunal de Torino classificou-os como trabalhadores  independentes, nem parasubordinados nem sob subordinação jurídica. 
Esta reconstrução, todavia, foi anulada pelo Tribunal de Recurso (4 de fevereiro de 2019), que, no entanto, leu o Art. 2, §1, do DL nº 81/2015, em sua formulação original, como uma norma  destinada a introduzir um tertium genus entre o Art. 2094 do Código Civil e o trabalho autônomo  coordenado e continuado, referido no Art. 409, nº 3, ao qual o legislador pretendia alargar a proteção  trabalhista. Mas não todas, apenas aquelas compatíveis com a natureza não subordinada de tais  relações. 
A palavra final foi dada pela Suprema Corte de Cassação (24 de janeiro de 2020, nº 1663),  para os quais os entregadores são trabalhadores independentes, pois têm a liberdade de recusar  chamadas individuais, mas no momento da realização do serviço a inclusão na organização da  plataforma “é marcada a ponto de permitir que seja possível tornar o colaborador comparável a um  empregado” e, portanto, esse trabalhador precisa de “proteção equivalente”. A Suprema Corte, portanto, fundamenta todo o seu raciocínio na distinção entre a fase  genética e a fase executiva da relação: a liberdade do entregador em decidir o momento da prestação  do serviço, podendo recusar os slots propostos pelo comitente, torna-se decisiva para fins de qualificação da relação, independentemente do que aconteça quando ele aceitar a notificação e efetuar  a entrega.

Os entregadores e a subordinação

Esta ênfase na fase genética da relação, também retomada pela jurisprudência posterior, é logo atenuada por outra linha jurisprudencial inaugurada pelo Tribunal de Palermo, de 24 de novembro de 2020, (e depois seguida pelo Tribunal de Torino, de novembro de 2021, e pelo Tribunal de Milano de 20 de abril de 2022), que reconhece o caráter subordinado (não parasubordinado) da relação laboral do entregador, salientando que a liberdade de recusar a chamada é apenas aparente, pois cada recusa afeta a pontuação de excelência atribuída ao entregador e afeta a atribuição de slots subsequentes e até mesmo a possibilidade de futuras chamadas.

Certamente não é um fato neutro que, entre a Suprema Corte de Cassação (janeiro de 2020) e o Tribunal de Palermo (novembro de 2020), tenha havido uma pandemia que transformou o trabalho dos entregadores de um mero trabalho ocasional em um serviço indispensável para permitir a entrega, de alimentos e bebidas dentro das paredes domésticas em que nos encontramos “confinados”. A essencialidade desses trabalhadores combinada a uma visibilidade sem precedentes: não apenas pelos cubos coloridos que, sozinhos, frequentavam as ruas semidesertas, mas também por seu destaque nos noticiários, que relatavam dramas, dificuldades e até mesmo a batalha para obter os equipamentos de segurança considerados indispensáveis para trabalhar em um período de pandemia.

Não é por acaso, em minha opinião, que no mundo pós-pandemia, a tendência de ampliar a noção de subordinação, ou melhor, a tendência de reabsorver empregos regidos por um algoritmo em subordinação, envolva todos os sistemas.

Estou pensando na Corte Suprema espanhola, que reconheceu a subordinação dos entregadores em setembro de 2020, adaptando os conceitos de dependência e alienação às novas realidades da digitalização e do gerenciamento algorítmico de relações. E, é claro, na c.d. ley riders (lei dos entregadores) espanhola, que introduziu uma disposição ad hoc para “serviços remunerados que consistem na distribuição de qualquer produto de consumo ou mercadoria, em que os empregadores exercem poderes corporativos de organização, direção e controle, direta, indireta ou implicitamente, por meio da natureza algorítmica do serviço ou das condições de trabalho por meio de uma plataforma digital”.

De modo mais geral, a sensação é de que, com uma conscientização maior e mais difundida do fenômeno, os juízes, também com a ajuda do legislativo, se reajustaram para se recuperar da redução inicial do direito do trabalho e, assim, estão reajustando os índices tradicionais de subordinação aos padrões de trabalho da gigeconomy.

Sobre a jurisprudência italiana, gostaria de fazer uma pausa para outra consideração. Inicialmente, gostaria de dizer que a jurisprudência na Itália está desempenhando um papel fundamental na recuperação das proteções trabalhistas. E estou me referindo à jurisprudência sobre os méritos, bem como à jurisprudência de legitimidade e à jurisprudência constitucional. Quanto aos pronunciamentos italianos sobre entregadores, o terreno da gestão impessoal do trabalho e da IA abriu um confronto entre diferentes tribunais e regulamentações, levando a um desdobramento do direito do trabalho vivo.

O Tribunal de Palermo dialoga com outros tribunais nacionais: em particular, há várias referências à Corte de Cassação da França e ao Tribunal Supremo da Espanha.

Mas também dialoga com a Corte Constitucional, lembrando as aquisições da jurisprudência constitucional que foram negligenciadas pela jurisprudência de mérito e legitimidade: em particular, lembra o conhecido conceito mengoniano de “dupla alienação”.

A ideia de dupla alienação (dada pelo trabalho na organização de outrem para o propósito produtivo de outrem) não está refletida no Art. 2094, ao contrário do espanhol, onde se fala de alienidad. Mas é evidente que essa leitura consegue extrair os limites protegidos das diferentes formas de integração entre trabalho e empresa.


O impacto das reivindicações dos entregadores sobre a legislação trabalhista

Volto ao ponto de partida.

A situação dos entregadores italianos envolve um número certamente limitado de trabalhadores. Em 2020, com uma estimativa já maior do que nos anos anteriores, havia cerca de 30.000 pessoas.

Um setor minúsculo que, no entanto, mudou a legislação trabalhista.

E, na minha opinião, fez isso duas vezes.

Determinou concretamente uma ampliação no campo das proteções trabalhistas. A  passagem da parasubordinação para a subordinação jurídica como fattispecie de referência  para a aplicação da legislação trabalhista, coloca dentro dos limites da área protegida, não  apenas os trabalhadores da gigeconomy, mas todos os empregos funcionalmente inseridos  na organização de outrem.
E graças à introdução de uma regra que minimizou a referência à gerência para o  reconhecimento da proteção trabalhista, também ocorreu uma ampliação da noção de  subordinação clássica. Mais precisamente, parece ser (finalmente) interrompida a  repetição tradicional de uma técnica definitiva – a dos índices de subordinação – que nunca  esteve ligada à redação do Art. 2094 do Código Civil, mas sim derivada de um tipo social  que já foi qualitativamente dominante, embora nunca exclusivo, como o da fábrica  fordista, e que hoje é amplamente recessivo. A plasticidade da definição do Art. 2094 do  Código Civil – “empregado e sob direção” – permite, como se vê na jurisprudência  constitucional, uma adesão extraordinária à transformação organizacional-tecnológica em  curso: desde que a intenção seja fornecer uma interpretação condizente com os tempos. E  parece-me que seja isso que está finalmente acontecendo. 

Em suma, parece-me que graças a este minúsculo setor – mas tão emblemático da evolução organizacional, técnica e social das empresas atuais – uma tendência tenha sido efetivamente invertida: da erosão da área de proteção a um alargamento dos limites seja da proteção que da mesma velha ideia de subordinação, que só pode ajudar a desmascarar todas aquelas formas de exploração e auto exploração do prestador que se torna, como no filme de Loach, “empreendedor de si mesmo”.


Extensão das proteções de subordinação ou garantias específicas?

Antes de concluir gostaria de dedicar alguns minutos a uma reflexão final.

No debate sobre a proteção a ser concedida aos trabalhadores das plataformas, surgiu imediatamente a alternativa entre a extensão tour court das proteções de subordinação e a modulação de uma regulação ad hoc confiada aos sujeitos coletivos, nomeados para representar os interesses dos trabalhadores, com base nas necessidades específicas de proteção.

A disciplina introduzida pelo legislador italiano leva em consideração ambos os requisitos, tentando não se opor a esses. Juntamente à extensão de toda a disciplina do emprego subordinado ao trabalho sob a subordinação jurídica, o Art. 2 do DL nº 81/2015 prevê uma exceção quando “os acordos coletivos nacionais firmados por sindicatos, comparativamente mais representativos em nível nacional, preveem disciplinas específicas relativas ao tratamento econômico e regulatório, devido às exigências específicas de produção e organização do relativo setor”. Na prática, quando há uma regulamentação contratual de proteção específica do setor, não se aplica todo o aparato de garantias previsto na lei.

Dessa forma, a legislatura confia aos sindicatos uma importante possibilidade: empunhando a arma da aplicação de todas as garantias trabalhistas, os sindicatos têm o poder de intervir para regular especificamente situações que demonstrem instâncias particulares de proteção. A exclusão da regulamentação do emprego subordinado decorreria, portanto, não de uma avaliação da ausência da necessidade de proteção, mas da suficiência da regulamentação coletiva para satisfazê-la por meio de uma forma típica de proteção que pode substituir a aplicação de salvaguardas. Sobre essa disposição se poderia debater por dias inteiros.

Vou me limitar a duas observações.

Dar aos sindicatos comparativamente mais representativos (e somente a eles) a  possibilidade de elaborar as proteções apropriadas aos trabalhadores de um determinado setor deveria  afastar o medo – expresso por muitos – de que a cláusula de derrogação seja usada instrumentalmente  para favorecer operações voltadas somente para a remoção de proteções legais. 
Entretanto, não se pode deixar de observar que a negociação coletiva sempre foi  reconhecida como tendo a função de regular as relações trabalhistas, complementando e  especificando o aparato de proteções definido por lei. Portanto, não há dúvida de que os acordos  coletivos sempre podem introduzir novas regras, especificando e adaptando as regras legais. Há  necessidade de uma disposição como aquela do §2º do Art. 2 do DL 81/2015, apenas para permitir  que a negociação coletiva introduza condições diferentes e pejorativas do que as proteções impostas  pela lei. Em outras palavras: a exceção prevista pela regra em questão permite que a negociação  exclua a operação de certas proteções legais, ou seja, permite que ela crie um sistema de proteção que  seja inferior (ou pejorativa) do que o de subordinação. 

Conferir esse poder aos sindicatos comparativamente mais representativos é certamente um antídoto eficaz para o risco de que ele possa ser usado indevidamente, mas a sensação que fica é que talvez hoje, diante das transformações que estão ocorrendo, antes da necessidade de modular/reduzir as proteções, haja a necessidade de reconhecê-las e construí-las.

Além disso, e concluo, a experiência italiana nos ensinou recentemente que, mesmo os sindicatos mais representativos, em alguns setores que não são muito sindicalizados, não conseguem negociar condições de trabalho decentes, nem mesmo em termos de remuneração e, apesar da precariedade imediata da disposição constitucional que garante a todos os trabalhadores o direito a um salário suficiente para garantir uma existência livre e digna. Mas essa é outra história e não cabe a mim contá-la.

Valeria Nuzzo é professora de Direito do Trabalho do “Dipartimento di Giurisprudenza” na Università della Campania Luigi Vanvitelli”. Possui extensa produção acadêmica sobre temas como controle laboral e história do direito do trabalho. Seu último livro publicado foi ‘La protezione del lavoratore dai controlli impersonali’ (Napoli: Editoriale Scientifica, 2018).

Fonte: Valeria Nuzzo | Instituto Lavoro

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