Autonomia e Liberdade Sindicais para quê?

Foto: Jonathan Weiss/iStock

Por Jorge Luiz Souto Maior

A abordagem normalmente feita sobre estes assuntos que se interligam trata do aspecto relativo ao COMO alcançar uma autonomia e uma liberdade para os sindicatos. São várias as questões jurídicas que, de um modo, ou de outro, interferem neste resultado, todas bastante relevantes, por certo.

No presente texto, no entanto, partindo do pressuposto de que a autonomia e a liberdade sindicais são essenciais, cabendo à ordem jurídica assegurá-las, queria refletir sobre a FINALIDADE desses valores.

Recentemente, recebi, por uma das vias da rede social, a notícia de que o Ministro Gilmar Mendes, em manifestação monocrática, proferida no ARE 182.761, anulou decisão do TRT da 12ª Região que havia confirmado o entendimento de primeiro grau em que se declarou ser devido o pagamento do adicional, em grau máximo, para a atividade de limpeza de banheiro de uso coletivo, dado o contato com agentes biológicos, conforme constatado, inclusive, pelo laudo pericial produzido nos autos. O entendimento fixado estava, também, consonante com os termos da Súmula 448, II, do TST, a respeito do tema.

O Ministro Gilmar Mendes, entretanto, considerou que se deveria privilegiar a negociação coletiva em que se estabeleceu que o adicional aplicado para a atividade em questão seria o de grau médio, dando vigência, ao seu modo de ver, ao enunciado do Tema 1.046, que prevê a prevalência do negociado sobre o legislado. Por conta disso, determinou que o TRT12 proferisse nova decisão, em conformidade com o referido Tema.

Não cabe neste momento adentrar o aspecto da aberração processual cometida pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento em questão, até porque os limites técnico-jurídicos não têm importado muito aos Ministros do STF quando o tema é direitos trabalhistas; o que quer dizer que não se comoverão nem um pouco com os mais contundentes argumentos que se possam oferecer em uma crítica jurídica de índole positiva e propositiva.

​Foquemo-nos, então, no objeto proposto: autonomia e liberdade sindicais.​São garantidas constitucionalmente a autonomia e a liberdade sindicais, pautadas pela ausência de intervenção do Estado na organização e nas atividades dos sindicatos.

Se pensarmos a questão sob este prisma isolado, corremos o risco de chegar à apressada e equivocada conclusão de que a decisão do Ministro Gilmar Mendes, acima referida, está mais adequada aos preceitos constitucionais do que aquelas que, na mesma hipótese, foram proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho.

Ocorre que, como bem sabemos, ou deveríamos saber, mesmo os direitos fundamentais requerem uma objetividade concreta para serem exercidos; o que representa dizer que seu exercício está condicionado à não interferência em direito alheio. Dito de outro modo, mesmo um direito unilateral, de caráter receptício, isto é, que não depende de manifestação de vontade de terceiros no mesmo sentido, pode ser invalidado se o efeito do ato for meramente o de causar dano a outra pessoa.

É exatamente por esta razão que os entes de representação coletiva, aos quais, dentro da lógica da instrumentalização da defesa de interesses que são comuns e da facilitação para o acesso à justiça, se atribui legitimidade material e processual, têm sua atuação limitada à melhoria da condição de vida dos representados. Não podem, pois, ainda que com legitimidade própria, atuar para gerar danos a quem representa. É assim na esfera do Direito do Consumidor; é assim no Direito do Trabalho.

Os sindicatos, ademais, são a representação jurídica da organização coletiva de trabalhadores e trabalhadoras na luta por melhores condições de vida e de trabalho. Não são entes que possuem vida própria, alheia à origem e à finalidade de sua constituição.

Quando se constrói a ideia de que sindicatos podem negociar com o empregador para rebaixar direitos já integrados ao patrimônio individual dos trabalhadores e trabalhadoras, o que se tem, como resultado, é a perversão da representatividade, com total afronta à ordem jurídica.

A defesa do “negociado sobre o legislado”, como forma de rebaixar direitos, é desprovida de amparo jurídico e se trata, na verdade, de uma forma retórica e ideológica para aprisionamento dos sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras pela classe dominante e seus prepostos.

Além de ser, obviamente, um enorme contrassenso, pois, se o sindicato é a personificação jurídica da luta coletiva de trabalhadores e trabalhadoras, seria como se estes unissem esforços para piorar as suas vidas.

Claro, há sempre o argumento chantagista de que pior mesmo seria perder o emprego e que, portanto, diminuir direitos para preservar o emprego não seria um retrocesso, mas um avanço ou um mal menor, se considerada situação do desemprego e, sobretudo, a condição em que vivem tantos outros trabalhadores e trabalhadoras que estão desempregados ou na informalidade.

Mas aí entramos no plano do cinismo pleno e, portanto, nem cabe contra-argumentar. Ao menos não me disponho a me esforçar para convencer do contrário alguém que assim se manifesta. Melhor gastar energia com outras pessoas.

E é exatamente o meu propósito aqui.

Falar para integrantes responsáveis do ativismo sindical, dando ênfase para o pressuposto de que a autonomia sindical, a liberdade sindical e a autorregulação sindical não podem ser vistas como um fim em si mesmas.

Esses importantes preceitos, essenciais para a organização sindical, não podem servir para o objetivo de se produzirem negociações coletivas que reduzem direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, até poque são cláusulas com este conteúdo que alimentam o monstro do retrocesso social e que fornecem munição para aqueles que, por interesse pessoal, incentivam a produção deste resultado.

Só que, para que se afaste da realidade a negociação “in pejus”, é preciso ter olhos para as condições materiais, pois as ideais, quando não encontram amparo no concreto não passam de ideais. Esse, ademais, constitui um grande vício dos debates jurídicos, sobretudo no campo crítico, que tendem a se satisfazer com a coerência discursiva.

O que quero dizer é que, diante de situações reais, em que os trabalhadores e trabalhadoras são submetidos, sem poder efetivo de reação, à chantagem do mal menor, muitas vezes não lhes restarão outra saída senão ceder terão outra saída a não ser a de ceder aos interesses do capital, ainda mais quando este tem a seu favor as compreensões jurídicas dominantes e os aparatos judicial e policial.

Sem as condições materiais este resultado continuará sendo produzido, mesmo que se possa dizer que tais negócios jurídicos são inválidos.

Então, não é o caso de ficarmos aqui, penso eu, com todo o respeito, discutindo, em abstrato, quais são os mecanismos de organização sindical que melhor garantem a autonomia e a liberdade; se, por exemplo, seria mais adequada unicidade ou pluralidade sindical; se a contribuição sindical deve ser obrigatória ou facultativa e por aí vai…

São, certamente, debates importantes, mas precisam estar interligados com a objetividade desses valores: autonomia e liberdade.

Precisamos, pois, ter em mente, sempre, as condições materiais que impedem que a autonomia e liberdade sindicais realmente existam e que sirvam à produção de efeitos benéficos para a melhoria da condição social, política, econômica e humana dos trabalhadores e das trabalhadoras.

Pois bem, em um país que se situa na periferia do capital, onde a exploração tende a se dar com desconsideração inclusive do preceito econômico básico de que a mercadoria força de trabalho tem o valor que for o necessário para a sua própria reprodução, gerando o fenômeno denominado por Rui Mauro Marini, da superexploração, favorecida também pelo desemprego estrutural, que gera uma tendência de menor preço da força de trabalho, não se poderá entender como dado o resultado de melhorias concretas para os trabalhadores e trabalhadoras, no âmbito das negociações coletivas, até porque, neste contexto, mesmo vitórias tendem a ser perdidas ao longo dos anos seguintes. Vide a deterioração salarial que vivenciam praticamente todas as categorias.

Essa realidade social e econômica não se modifica pelo direito, é bem verdade, mas o direito pode tanto reforçá-la, quanto atenuá-la.

Neste aspecto, a primeira e essencial contribuição do direito para a autonomia e liberdade sindicais é a limitação ao poder do empregador de cessar vínculos de emprego sem qualquer motivação.

A proteção contra a dispensa arbitrária, aliás, está expressamente prevista no inciso I, do art. 7º da CF e tanto o meio jurídico não se envolveu na aplicação concreta desse dispositivo, quanto o meio sindical não se envolveu em luta efetiva por esta conquista. E talvez até exista uma explicação razoável para este desinteresse, que é o fato de que os trabalhadores e trabalhadoras mais bem organizados coletivamente possuem, de algum modo, garantias de emprego.

Esta constatação, inclusive, nos conduz à segunda e essencial contribuição do direito. Na verdade, o direito, ao longo de anos, contribuiu para o enfraquecimento do poder de luta da classe trabalhadora e, agora, o que se preconiza é que com o próprio direito se inicia o caminho em sentido contrário.

Fato é que foi obra do direito separar a classe trabalhadora, criando a figura jurídica da categoria, sobre a qual se institucionalizou e se condicionou a luta dos trabalhadores e trabalhadoras. E a força do direito foi tão grande neste tópico que, para muitos, parece estranho falar da classe trabalhadora para além da noção de categoria, como se a categorização, ademais, sempre tivesse existido.

Não é bem assim, entretanto.

Na realidade, a estruturação jurídica da classe trabalhadora em categorias específicas se deu apenas a partir da década de 30, dentro do propósito varguista de impulso à industrialização do país.

Em 1931, foi editado o Decreto nº 19.770/31, que conferiu um formato específico para as uniões obreiras, criando, assim, o sindicato-oficial, atrelado ao Estado. Nesta concepção, o sindicato não era, propriamente, a personificação jurídica da reunião de trabalhadores e trabalhadoras. O sindicato era um ente com vida própria, pertencente, de certo modo, ao Estado, e tinha como objetivo extinguir e domesticar as agremiações operárias que, durante a Primeira República, foram responsáveis pela intensa mobilização social com a qual os direitos trabalhistas foram conquistados.

O artigo 1º do referido diploma dispunha:

“Art. 1º – Terão os seus direitos e deveres regulados pelo presente decreto, podendo defender, perante o Governo da República e por intermédio do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, os seus interesses de ordem econômica, jurídica, higiênica e cultural, todas as classes patronais e operárias, que, no território nacional, exercerem profissões idênticas, similares ou conexas, e que se organizarern em sindicados, independentes entre si, mas subordinada a sua constituição às seguintes condições:
a) reunião de, pelo menos, 30 associados de ambos os sexos, maiores de 18 anos;
b) maioria, na totalidade dos associados, de dois terços, no mínimo, de brasileiros natos ou naturalizados.”

Mas, mesmo com toda a estratégia persuasiva adotada pelo governo, os sindicatos não oficiais continuaram existindo e até aumentaram sua influência, sobretudo, depois da Constituição de 1934, que, ao menos formalmente, garantiu a liberdade.

O Decreto nº 24.694, de 12 de julho de 1934, passando por cima da Constituição, aumentou o cerco sobre os sindicatos, impondo, desde então, a exigência de que os sindicatos deveriam ser “órgãos de colaboração com o Estado no estudo e solução dos problemas que, direta ou indiretamente, se relacionarem com os interesses da profissão” (art. 2º, “c”).

Nessa linha, estipulou que competiria aos sindicatos “cooperar, por intermédio dos seus representantes, nas comissões e tribunais de trabalho, para a solução dos dissídios entre empregados e empregadores” (art. 2º, § 2º, “b”).

Foi mantida a fórmula de uma associação por profissões “idênticas, similares ou conexas”, mas vedou-se, expressamente, aos “funcionários públicos”, a possibilidade de se sindicalizarem, não se considerando como tais “os empregados manuais, intelectuais e técnicos de emprêsas agrícolas, industriais e de transportes, a cargo da União, dos Estados ou dos municípios”. (art. 4º e seu parágrafo único).

Em 05 de julho de 1939, na Lei Orgânica da Sindicalização Profissional (Decreto-Lei n. 1.402/39), foi explicitado, inclusive, que o objetivo era mesmo o de controlar a atividade sindical, conforme expressso na exposição de motivos da lei:

“Com a instituição desse registro, toda a vida das associações profissionais passará a gravitar em torno do Ministério do Trabalho: nele nascerão, com ele crescerão; ao lado dele se desenvolverão; nele se extinguirão.”

O artigo 1º impunha que:

“Art. 1º – É lícita a associação, para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses profissionais, de todos os que, como empregadores, empregados ou trabalhadores por conta própria, intelectuais, técnicos ou manuais, exerçam a mesma profissão, ou profissões similares ou conexas.”

Essa vinculação ao Estado, no entanto, permitiu que ao sindicato “impor contribuições a todos aqueles que participam das profissões ou categorias representadas” (art. 3º, “f”).

E é exatamente para possibilitar esse alcance da obrigatoriedade de vinculação e de “contribuição” que surgiu a noção de categoria, inexistente nos regramentos anteriores.

Ou seja, a contribuição obrigatória (ainda sem a denominação “imposto sindical”) só surgiu na vida sindical em 1939, no momento em que o sindicato foi consagrado como um prolongamento do Estado.

A noção de categoria está vinculada a essa ideologia.

A Lei Orgânica da Sindicalização Profissional deixa evidenciado, inclusive, que não seria reconhecido mais de um sindicato para cada profissão (art. 6º) e que os sindicatos teriam uma “base territorial” (art. 7º).

A noção de categoria é expressamente tratada no art. 8º.

De todo modo, até então, era permitido aos próprios sindicatos fixarem, em seus estatutos, os limites da categoria “profissional representada” (art. 8º, § 1º, “b”).

Um ano depois, em 8 de julho de 1940, por meio do Decreto-Lei n. 2.377, o governo aumenta seu controle sobre a atuação sindical, tratando, expressamente, a contribuição obrigatória como “imposto sindical” e fixando o seu valor, conforme consignado logo no artigo 1º:

“Art. 1º – As contribuições devidas aos sindicatos pelos que participem das categorias econômicas ou profissionais representadas pelas referidas entidades, consoante as alíneas a do art. 38 e f do art. 3º do decreto-lei nº 1.402, de 5 de julho de 1939, serão, sob a denominação de “imposto sindical”, pagas e arrecadadas pela forma estabelecida neste decreto-lei. “

Explicitou também que “o imposto sindical é devido, por todos aqueles que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, em favor da associação profissional legalmente reconhecida como sindicato representativo da mesma categoria” (art. 2º). 

Nos termos do artigo 3º, “o imposto sindical será pago de uma só vez, anualmente, e consistirá: a) na importância correspondente à remuneração de um dia de trabalho, para os empregados, qualquer que seja a forma da referida remuneração”.  

Manteve-se a fórmula de atribuir aos empregadores a obrigação de “descontar na folha de pagamento de seus empregados, relativa ao mês de março de cada ano, o imposto sindical por estes devido aos respectivos sindicatos” (art. 4º). 

Para conferir eficácia a essa qualificação jurídica de imposto sindical e assumindo de vez a intenção de manter sobre total controle a atividade sindical, o governo edita, logo no dia seguinte, em 9 de julho de 1940, o Decreto-lei n. 2.381, que traz o quadro das atividades e profissões, para o Registro das Associações Profissionais e o enquadramento sindical.

Assim, a categoria não seria mais definida pelos estatutos dos sindicatos e sim pelo próprio Estado.

Eis, então, os pontos centrais a serem apreendidos para uma melhor percepção do problema posto em discussão: a) o imposto sindical é antecessor histórico, mas também lógico, da categoria; e b) a noção de categoria é imposta sob a égide do sindicato único como instrumento que dá operacionalidade ao imposto sindical.

Imposto, categoria (pré-estabelecida legalmente), registro e unicidade sindical são facetas do mesmo fenômeno jurídico-político: o sindicato oficial, atrelado ao Estado.

Portanto, quando falamos de autonomia e liberdade sindicais, temos que, obrigatoriamente, superar a amarra jurídica da categoria.

Isto nos remete, novamente, ao Direito.

É possível falar, juridicamente, em uma organização sindical que transcende a noção de categoria?

Sim. E o fundamento não deixa de ser inusitado.

É que, na ânsia de ampliar as formas de precarização do trabalho, notadamente, a extensão da terceirização também para a atividade-fim das empresas, a dita lei impôs uma fórmula que é contrária ao pressuposto da categorização, qual seja, a noção de categoria preponderante. Ora, se toda e qualquer atividade de uma empresa pode ser deslocada para outras empresas não se pode mais falar em atividade preponderante como critério definidor da representação sindical.   

Dentro dos padrões jurídicos determinados pela suposta modernização das relações de trabalho trazida pela Lei nº 13.467/17, os trabalhadores poderão se organizar livremente em sindicatos, sem qualquer parâmetro obrigatório de categorização, bastando a identidade de interesses e a liberdade do trabalhador de se associar a um sindicato.

Perde sentido, igualmente, o requisito do registro sindical, a não ser para o mero efeito de arquivo de informação, o que, inclusive, torna ineficaz a estratégia de conduzir as atividades relativas ao registro sindical ao Ministério da Justiça, mediante controle de um ex-delegado da Polícia Federal. Ainda assim, seria uma forma de interferência indevida na organização sindical, porque o Brasil ratificou, desde 1952, a Convenção 98 da OIT, segundo a qual a participação do Estado na organização sindical só se justifica para garantir que os sindicatos sejam livremente constituídos e para que possam atuar.

Além disso, a Convenção 87 da OIT, embora não ratificada pelo Brasil, figura como uma das convenções fundamentais eleitas em 1998 e elencadas na DECLARAÇÃO DA OIT SOBRE OS PRINCÍPIOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS NO TRABALHO, que deve ser observada pelos países membros, independentemente de ratificação. Segundo essa convenção, “os trabalhadores e os empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão direito de constituir, sem autorização prévia, organizações de sua escolha, bem como o direito de se filiar a essas organizações, sob a única condição de se conformar com os estatutos das mesmas” (art. 2º).

A compreensão de que se tem como necessariamente superado o conceito de categoria profissional nos moldes pré-fixados na CLT, em decorrência do fim do imposto sindical e, portanto, do sistema que legitimava tal conceito, implica a construção de novas bases para o convívio coletivo da classe trabalhadora.

É possível cogitar, portanto, a legitimidade de negociação da empresa com o sindicato que for mais representativo, isto é, aquele que tenha maior número de associados entre os que atuam na empresa. Ou ainda, se a negociação for realizada com entidade patronal que represente mais de uma empresa, com o sindicado que, igualmente, possua maior número de associados entre todos, atendido o requisito delimitador da base territorial mínima do município (art. 8º, II, da CF).

Ainda que a expressão “categoria” tenha sido referida nos incisos I e II do art. 8º da Constituição Federal, e nenhum momento o termo foi tratado nos moldes da regulação da década de 30, que estava embasada na intervenção estatal sobre a organização sindical, oferecendo, em troca, o imposto sindical.

Ocorre que a mesma Constituição diz que estão “vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical” (inciso I, do art. 8º). Além disso, também o imposto sindical deixou de existir, conforme definido pelo STF na ADI 5794.

Não se pode mais, pois, se é que algum dia, após 5 de outubro de 1988, isto foi possível, tomar o termo “categoria” referido nos incisos I e II do art. 8º da CF com o mesmo sentido daquele que imperou a partir das décadas de 30 e 40.

A representatividade é, por consequência, também uma deliberação dos próprios interessados, respeitando-se, unicamente, a base territorial mínima equivalente a um Município, conforme ainda expressamente referido na Constituição Federal.

Teríamos, assim, por vias tortas, superado as amarras jurídicas para a construção de uma autonomia sindical.

Vale o destaque de que a representação sindical para além dos limites da categoria é essencial também para pôr na pauta temas essenciais à classe trabalhadora como um todo e, sobretudo, na realidade dos países de capitalismo dependente, o enfrentamento das questões históricas relacionadas à opressão colonialista: questões raciais, de gênero e de capacitismo.

Não é possível à organização sindical se manter inerte a estas questões e não ter como prioridade as pautas de igualdade de direitos para as trabalhadoras domésticas, a eliminação da terceirização; o reconhecimento da integralidade de direitos trabalhistas aos trabalhadores por aplicativos; a informalidade; e a precarização, notadamente aquela imposta pela Inteligência Artificial.

Também não podem mais estar fora das ações e temáticas sindicais a situação dos trabalhadores e trabalhadoras sem emprego ou na informalidade e os debates mais gerais em torno da efetividade dos direitos trabalhistas e sociais.

No momento presente, é inconcebível que a organização sindical não esteja sólida e unificada em torno da pauta da revogação de todas as normas de redução de direitos trazidas pela “reforma” trabalhista.

E é mais inconcebível, ainda, que os entes sindicais de cúpula, instituídos pela Lei 11.648/08, quais sejam, as Centrais Sindicais, se afastem do objetivo único da sua existência, que é a defesa dos interesses imediatos e estratégicos da classe trabalhadora, e se coloquem no cenário político como estruturas de sustentação do governo e, com isto, deixem de formular as críticas necessárias às iniciativas governamentais que desatendam o ideal, constitucionalmente assegurado, inclusive, da melhoria progressiva da condição social, política e econômica dos trabalhadores e trabalhadoras ou, pior, se posicionem, expressamente, como apoiadoras de tais iniciativas.

A situação mais alarmante neste aspecto é a que se tem verificado no processo político de regulação do trabalho explorado por plataformas digitais que foi impulsionado pelo governo federal, desde o início de 2023. O efeito das reuniões tripartites promovidas pelo governo foi a formulação de um projeto de lei, o PLP 12/24, que recebeu apoio irrestrito das Centrais, como forma de fortalecimento político do governo, mesmo que o projeto trouxesse o enorme dano à classe trabalhadora do não reconhecimento da igualdade de direitos nesta forma automatizada de exploração do trabalho.

Várias objeções (vindas da esquerda) foram apresentadas ao conteúdo do projeto e à postura das Centrais, buscando demonstrar o quão prejudicial para a classe trabalhadora como um todo seriam as “soluções” propostas no PLP e, em especial, a fórmula retórica do “autônomo com direitos”, até porque, concretamente, direito trabalhista algum estava sendo garantido aos trabalhadores e às trabalhadoras, em especial.

E quando se imaginava que um refluxo pudesse ocorrer, o que se verificou foi uma reiteração da postura, com adição de novos complicadores. É que o PLP/24 recebeu um Substitutivo, elaborado pelo relator, o deputado federal Augusto Coutinho, do partido Republicanos, com pequenas alterações, mas que, na essência, preservavam e aprofundavam os problemas do projeto original e as Centrais Sindicais simplesmente resolveram apoiar o Substitutivo em questão, como meio de levar adiante a ideia de extração de benefícios políticos, junto ao poder econômico, da implementação de uma regulação “conciliada” sobre o assunto, a partir de uma proposta encaminhada pelo governo, e, também, como forma de extrair dividendos políticos para o governo, já que o partido do relator, autor do substitutivo, o Republicanos, embora seja reconhecidamente um partido conservador, de direita, tem adotado uma posição de centro, dançando conforme a música no cenário congressual.

Conclusivamente, as Centrais – ainda que com a explicitação de algumas ressalvas – saíram publicamente em defesa de um Projeto de Lei que passou a ser conduzido em parceria com um partido conservador e que, com potencial expansivo, escancara a lógica da precarização do trabalho, tudo isto para influenciar no jogo político da tal “governabilidade” e sem atentar para os reais efeitos que a aprovação do projeto pode gerar para o conjunto da classe que vive da venda de força de trabalho.

O que se constata, pois, é um pleno desvio de rota quanto aos objetivos e finalidades da representação sindical.

A agenda sindical, considerados todos os problemas da estruturação produtiva mundial, acima delineados, deveria, necessariamente, se pautar pelas perspectivas Internacional, decolonial, classista, antirracista, antimachista, anticapacitista, solidária e, sobretudo, política e revolucionária.

Compete não olvidar, inclusive, que os direitos destruídos pelo golpe político de 2016 foram direitos conquistados pela luta da lasse trabalhadora e, portanto, podem, pela mesma via, ser reconquistados e o padrão anterior não é necessariamente o limite, pois a perspectiva da classe trabalhadora não pode ser conservadora.

Voltemos, por exemplo, ao relato incialmente apresentado. De fato, é bastante restrito o horizonte que limita o debate à compreensão sobre se é médio ou máximo o grau da insalubridade, para o efeito da aplicação de um adicional salarial de 20% ou 40%, sobretudo se a base de cálculo for o valor do salário-mínimo. Enquanto se debate a respeito, as condições de trabalho continuam mutilando e gerando doenças…  Se o pagamento do adicional, mesmo em grau máximo, está sendo pago é porque o risco não foi eliminado. E se a questão está sendo analisa em um processo judicial é poque a trabalhadora já exerceu a atividade com dano à sua saúde e, portanto, o pagamento do adicional não vai reparar o dano e punir a ilegalidade cometida… Então, devíamos estar discutindo como interromper a atividade, eliminar os riscos, reparar de forma integral os danos e punir o agressor.

Mas isto tudo, reitere-se, tem sustentação, em certa medida, na fragilização jurídica e institucional que se tem imposto às organizações sindicais e às mobilizações da classe trabalhadora, o que nos remete, mais uma vez, à questão central deste texto acerca das necessárias contribuições do direito para a alteração da realidade de fragilização e controle da organização sindical.

Neste aspecto, essencial falar, ainda, do direito de greve e da ultratividade.

Para que a atuação sindical não seja dificultada pelas forças do capital é essencial que o direito constitua uma garantia para que a greve possa ser exercida sem intervenções e delimitações impostas pelo Judiciário ou mesmo pela polícia.

O art. 9º da Constituição Federal e até mesmo a Lei n. 7.783/89, que é, em concreto, uma lei antigreve e, por consequência, inconstitucional, não autorizam as decisões judiciais e as ações policiais que se têm implementado, de forma reiterada, para coibir a greve e criminalizar quem luta por melhores condições de trabalho. Vide, como exemplo, a recente decisão, proferida no âmbito do STJ, que, sem qualquer fundamento fático-jurídico, simplesmente, proibiu a realização de uma greve (vide, a respeito, aqui).

Também é fundamental garantir que as conquistas auferidas não sejam efêmeras e que tenham que ser a cada um ou dois anos reconquistadas, para que se afaste a noção de que a mera preservação dos direitos alcançados se apresente como uma vitória. A ultratividade é, pois, um ponto de partida necessário para a progressividade das negociações coletivas.

Estabilidade no emprego, ou, minimamente, um sistema eficaz de proteção contra a dispensa arbitrária que preveja, inclusive, reintegração ao emprego e punição nos casos de desrespeito às limitações legais; o integral respeito ao direito de greve, exercido sem condicionantes e intervenção estatal; a ultratividade; e a vinculação sindical para além da noção de categoria são as contribuições mínimas que o direito deve oferecer para que a autonomia e a liberdade sindicais, também juridicamente garantida, sirvam de efetivo instrumento para a melhoria das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora.

E a grande questão é que mesmo a efetivação desses preceitos não pode se constituir no horizonte da classe trabalhadora, pois esta é uma luta que, por mais avanços que conquiste, estão sempre submetidas ao retrocesso ou à mera corrosão pelo decurso temporal. É essencial, pois, que a classe trabalhadora introduza na dinâmica de suas lutas imediatas o horizonte da superação das estruturas que a mantém sempre sob as chantagens do mal menor.

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Por Jorge Luiz Souto Maior
Data original de publicação: 17/07/2024

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