Motoristas de aplicativos podem trabalhar ininterruptamente?

Imagem: Pixabay

Uma proposta de regulamentação

Dalton Tria Cusciano

O surgimento de diversos aplicativos de transportes alterou radicalmente nossa forma de locomoção pelos centros urbanos, criando oportunidades de geração de renda, fomentando a economia compartilhada e facilitando o dia a dia do cidadão que passou a contar com diversas possibilidades de acesso a diferentes modais de mobilidade urbana em grandes centros urbanos.

As regulamentações existentes sobre os aplicativos de transporte na tentativa de compatibilizar a inovação trazida pela tecnologia com o contexto fático-normativo nacional preocuparam-se com a idade da frota veicular, como a Resolução nº 21/2019 do Comitê Municipal de Uso do Viário (CMUV) do município de São Paulo que restringiu a utilização de veículos automotores no transporte por meio de aplicativos com mais de 08 (oito) anos de fabricação, com a exigência de contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), além do Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV), conforme previsão normativa veiculada pela Lei nº 12.587/2012, com alterações dadas pela Lei nº 13.640/2018.

Aos motoristas que atuam nesses aplicativos de transporte automotor, a Lei nº 12.587/2012 exigiu a necessária inscrição na categoria B ou superior da Carteira Nacional de Habilitação, contendo a informação de que exerce atividade remunerada, a apresentação de certidão negativa de antecedentes criminais e a inscrição do motorista como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Todavia, em nenhum momento o arcabouço jurídico nacional existente trouxe qualquer regulamentação sobre o limite de horas que os motoristas de aplicativos de transporte poderiam atuar de forma ininterrupta, bastando conversar com esses motoristas para perceber que jornadas de 12 (doze) horas são regulares, e em caso de veículos alugados a jornada passa a ser de 16 (dezesseis) horas. Em casos mais excepcionais, motoristas alegam fazer jornadas de 20 (vinte) horas, chegando a “virar”, ou seja, trabalhar por 24 (vinte e quatro) horas seguidas, quando precisam pagar as contas que teimam a chegar.

Se os motoristas de aplicativos de transporte fossem regulados pela Lei nº 13.103/2015, que dispõe sobre o motorista profissional, teriam uma jornada diária, nos termos do artigo 235-C de 8 (oito) horas, podendo ocorrer uma prorrogação por até 2 (duas) horas extraordinárias ou, por até 4 (quatro) horas extraordinárias se houvesse previsão em convenção ou acordo coletivo.

O parágrafo terceiro do artigo 235-C estipula que dentro do período de 24 (vinte e quatro) horas, o motorista profissional tem assegurado um descanso de 11 (onze) horas, podendo ser fracionado, mas garantindo-se no mínimo 8 (oito) horas ininterruptas no primeiro período e o gozo do remanescente dentro das 16 (dezesseis) horas seguintes ao fim do primeiro período.

Contudo, por não estarem enquadrados na legislação aplicável ao motorista profissional, os motoristas de aplicativos de transporte acabam trabalhando no limite de suas forças para atender suas necessidades financeiras, ainda que mais básicas, o que viola o princípio da segurança nos deslocamentos das pessoas, previsto na Lei nº 12.587/2012.

Isso porque longas horas dirigindo geram cansaço, sonolência, reduzem a atenção e aumentam consideravelmente o risco de acidentes, sendo importante ressaltar que ficar acordado por horas seguidas dirigindo gera um comprometimento da atenção em nível semelhante ao causado pela ingestão de bebida alcoólica. A Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET) juntamente com a Academia Brasileira de Neurologia e o Conselho Regional de Medicina realizaram uma pesquisa que indicou que cerca de 42% dos acidentes de trânsito estão relacionados ao sono, sendo o cansaço um dos principais fatores de óbito nas rodovias nacionais.

Nos Estados Unidos da América, de acordo com os dados do National Traffic Safety Administration (NHTSA), no período de 2011 a 2015 ocorreram 396.000 (trezentos e noventa e seis mil) acidentes de trânsito em virtude do cansaço, com 3.362 (três mil trezentas e sessenta e duas) fatalidades, o que corresponde a 2,4% de todas as mortes no trânsito naquele país.

Diante desse cenário, inúmeras cidades americanas começaram a limitar em 12 (doze) horas o período que o motorista de aplicativo de transporte poderia atuar de forma ininterrupta.

Atingido esse limite, o aplicativo deixava de funcionar por 06 (seis) horas, período no qual o motorista deveria descansar.

Nesse total de 12 (doze) horas não são contados os minutos de espera de passageiros superiores a 5 (cinco) minutos e faltando 02 (duas) horas para se atingir o limite de 12 (doze) horas, o aplicativo inicia notificações ao motorista de que ele será forçado a parar.

No Reino Unido, por proposição de um grande aplicativo de transporte, houve a limitação após 10 (dez) horas de direção ininterrompida, obrigando o motorista a fazer uma parada de 06 (seis) horas.

Na Nova Zelândia, em virtude da necessidade de gerenciamento de riscos que podem afetar a saúde e a segurança do trabalhador, se estabeleceu um limite de 12 (doze) de direção ininterrupta, com parada obrigatória de 06 (seis) horas após atingido o limite. Se o motorista completar as 12 (doze) horas durante uma corrida, poderá encerrá-la. Na Austrália existe o gerenciamento de fadiga que impõe ao motorista de aplicativos que parem de dirigir por 08 (oito) horas quando completadas 12 (doze) horas de direção contínua. Na contagem dessas horas se inclui o tempo de espera, o tempo de deslocamento entre partida e chegada e o tempo de deslocamento para buscar o passageiro.

No Brasil, não vigora de forma abrangente nenhuma política vigente desses aplicativos de transporte no tocante a limitação das horas trabalhadas pelos motoristas, o que gera riscos para os passageiros e para os próprios motoristas, principalmente no tocante a saúde e segurança ocupacional.

Caso se aplicassem as regras já existentes sobre os motoristas profissionais ao motoristas de transporte por aplicativos, com algumas modificações para atender a essa nova dinâmica de mercado, o Estado brasileiro poderia impor por meio de regulamentação nacional, ou os aplicativos, por meio de autorregulação, que ao se alcançar 12 (doze) horas de direção, o aplicativo impeça o início de novas corridas, não mostrando novos passageiros até se completar uma pausa de 08 (oito) horas. Caso as 12 (doze) horas sejam atingidas durante uma corrida, o motorista poderia terminá-la. Na contagem dessas 12 (doze) horas os períodos de espera de passageiro superiores a 5 (cinco) minutos poderiam ser excluídos, e faltando 02 (duas) horas para se atingir o limite de 12 (doze) horas, os aplicativos poderiam iniciar notificações a cada 30 (trinta) minutos ao motorista de que ele será forçado a parar.

Obviamente, os motoristas de transporte que queiram burlar essa eventual regulamentação no tocante ao limite de horas, poderiam simplesmente trocar o aplicativo de transporte quando atingissem o limite legal estabelecido. Para evitar tal situação, a saída seria a criação de um sistema unificado que permitisse a identificação do motorista em qualquer aplicativo, de modo que o bloqueio ocorra ainda que se altere o aplicativo utilizado, ou o compartilhamento de sistemas de identificação de motoristas ativos entre aplicativos.

De todo modo, essa regulação não impediria os motoristas de dirigem por 12 (doze) horas após cumprirem uma jornada de 09 (nove) horas diárias em outro trabalho, mas tal conduta poderia ser desestimulada com campanhas educativas promovidas pelos próprios aplicativos e/ou pelo Estado brasileiro.

Vale lembrar que nos termos do inciso XXII do artigo 7º da Constituição Federal de 1988 é direito de todo trabalhador atuar em um ambiente laboral com redução de riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, sendo dever do Estado, via Sistema Único de Saúde, “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”, conforme inciso VIII do artigo 200 da Carta Maior.

Registre-se que ainda que a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça em recentíssimo julgamento1 tenha entendido que não há vínculo empregatício entre um grande aplicativo de transporte e os motoristas que utilizam tal aplicativo, isso não descaracteriza a condição desses motoristas como trabalhadores e o seu direito a trabalhar com condições mínimas de segurança e saúde laboral.

A atuação desses motoristas de transporte por aplicativo os obriga a permanecer sentados por diversas horas em ambientes com alto potencial de stress, o que pode aumentar o risco do desenvolvimento de diversos problemas de saúde, principalmente relacionados ao sistema cardiovascular e a saúde mental. Como esses motoristas não são considerados empregados, não tem acesso aos benefícios acidentários que independem de carência, contando apenas com os benefícios previdenciários, que exigem contribuições mensais.

Caso o motorista de transporte por aplicativo não contribua ao INSS, não terá acesso aos benefícios previdenciários e se não puder mais trabalhar em decorrência de uma doença desenvolvida e/ou agravada pelas diversas horas que passou dirigindo ao longo de anos, dependerá da assistência social e da caridade para sobreviver.

Assim, tanto sob o prisma da saúde e da segurança ocupacional, quanto sob a ótica da segurança do passageiro, a definição de quantas horas que um motorista de aplicativo de transporte pode dirigir sem interrupção é urgente, devendo ingressar na pauta governamental ou ser adotada como política de responsabilidade social pelas empresas de aplicativos de transporte, o que já é feito em diversos países, mas, infelizmente ainda não no Brasil.

Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MEDICINA DE TRÁFEGO. Não dê Carona ao Sono. Disponível em:< http://www.naodecaronaaosono.com.br/>.

BRASIL, Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.

BRASIL, Lei nº 12.587, de 03 de janeiro de 2012. Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12587.htm>.

BRASIL, Lei nº 13.103, de 02 de março de 2015. Dispõe sobre o exercício da profissão de motorista. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13103.htm>.

COMITÊ MUNICIPAL DE USO DO VIÁRIO DE SÃO PAULO. Resolução nº 21, de 28 de março de 2019. Disponível em < https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMUV%20n%C2%BA%2021%20-%202019.pdf>

NATIONAL TRAFFIC SAFETY ADMINISTRATION.Drowsy Driving 2015Disponível em: <https://crashstats.nhtsa.dot.gov/Api/Public/ViewPublication/812446>.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Conflito de Competência nº 164544/MG. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=CC%20164544>.

Fonte: Jota
Data original de publicação: 25/09/2019

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