Direito do Trabalho e promoção da igualdade racial na sociedade de classes
Por Jorge Luiz Souto Maior
Publicado em: 07/10/2024
Queria iniciar agradecendo a oportunidade de estar aqui neste importantíssimo evento.
Cumprimento as Comissões da Igualdade Racial e da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da Subseção da OAB-Campinas.
E cumprimento também minhas parceiras de mesa Waleska Miguel Batista, Ana Elisa Spaolonzi Assis e Daniela Oliveira da Fonseca.
O tema do nosso painel, “Direito do Trabalho e promoção da igualdade racial na sociedade de classes”, não poderia ser mais bem elaborado, relevante e profundo.
É um tema que, primeiro, nos força a lembrar que não existe igualdade racial nas relações de trabalho no Brasil e, segundo, a reconhecer que vivemos em uma sociedade capitalista, caracterizada pela divisão de classes e, mais propriamente, pela luta de classes.
No que se refere ao segundo aspecto, é oportuno destacar o quanto é importante que assumamos a nossa posição de classe, pois ou se está na condição de detentor do capital e dos meios de produção, reproduzindo o capital por meio da exploração do trabalho (ainda que na forma de uma especulação financeira), integrando-se, por conseguinte, à classe do capital, ou, ao contrário e em posição inversa e antagônica, se está na dependência da venda da força de trabalho para sobreviver, integrando-se, consequentemente, à classe trabalhadora.
Este posicionamento consciente é ainda mais importante quando se constata que dentre as diversas estratégias do capital para se manter como classe dominante estão a difusão e a implementação de mecanismos de divisão e fragmentação da classe trabalhadora, de modo a dificultar a organização e a mobilização desta.
Esta divisão se efetiva, por exemplo, pela hierarquização no ambiente de trabalho e pelo processo de exclusão, que também cria o necessário “exército de reserva”.
Tudo bem alimentado por muita campanha ideológica, para que não seja percebido e até reproduzido nas mentes e manifestações de integrantes da classe trabalhadora, que, desse modo, perdem a consciência de sua posição de classe.
É, desse modo, por exemplo, que boa parte da classe trabalhadora, que não detém capital, se diz “empreendedora” e, no ambiente de trabalho, os empregados e empregadas são “transformados” em “colaboradores”.
No Brasil, no entanto, carregamos, ainda, mais uma forma de divisão que foi criada e historicamente usufruída pelo capital, a divisão racial.
É sobre este aspecto que cumpre falar neste momento, de forma mais detida. No limite temporal que me foi conferido, 25 minutos, com sacrifício de inúmeras outras abordagens, todas extremamente essenciais, queria desenvolver minha fala a partir de duas reflexões principais.
Primeiro, a respeito de como o racismo não só persiste nas relações de trabalho, como ele é também estruturante da superexploração que rege, econômica, jurídica e politicamente as relações de trabalho na periferia do capital.
A superexploração, cabe elucidar, segundo Rui Mauro Marini, é uma forma de rebaixamento do valor da mercadoria força de trabalho para abaixo do necessário à reprodução desta mesma mercadoria, o que implica o rebaixamento das condições existenciais dos trabalhadores e trabalhadoras. É uma forma de exploração predatória.
E, segundo, sobre o quanto a demanda por igualdade racial, dependendo da forma como se dê, pode se transformar em um instrumento da ideologia do capital e, portanto, da superexploração e do racismo.
Necessário iniciar essas reflexões relembrando alguns fatos que marcam as relações de trabalho no Brasil – valendo, desde já, advertir para a situação de que estes fatos, que são por demais conhecidos e que habitam de forma trágica o nosso cotidiano, são tratados como normais ou se integram à literatura como simples dados estatísticos.
Vejamos, de todo modo, alguns desses fatos retratados em números:
1) Segundo avaliação feita pelo IBGE, a renda média de trabalhadores brancos é 75,7% maior do que a de trabalhadores pretos e 70,8% maior que a de pardos (https://www.infomoney.com.br/carreira/renda-media-de-trabalhador-branco-e-757-maior-do-que-de-pretos-diz-ibge/);
2) Apenas 1,6% da gerência e 0,4% do quadro executivo das empresas com maior destaque nacional são compostos por mulheres negras;
3) No trabalho terceirizado as mulheres negras são maioria”, 80% da categoria de asseio e conservação representada pelo Sindlimpeza – Santos e região, é composta por mulheres, sendo 90% delas mulheres pretas ou pardas” (https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/terceirizacao-tem-cara-e-preta-e-feminina/);
4) Também no setor bancário esta desigualdade se pronuncia: “Os bancários negros (que incluem pretos e pardos) ganham 24% menos do que os colegas brancos. Os empregados pretos de instituições financeiras têm rendimento médio 27,3% menor do que o rendimento médio dos brancos. E as mulheres pretas sofrem ainda mais discriminação, ganhando 59% menos que a média dos homens brancos” (https://spbancarios.com.br/11/2022/diferenca-salarial-entre-brancos-e-negros-chega-59-nos-bancos);
5) Mesmo no plano daqueles que foram capturados pelo discurso do empreendedorismo, as diferenças raciais se mantém. “Enquanto os empreendedores negros tinham renda média mensal de R$ 2.079 no segundo trimestre de 2022, os brancos ganhavam R$ 3.040. Ou seja: o rendimento de empreendedores negros é em média 32% inferior ao de empreendedores brancos”. Considerando o gênero, “as mulheres negras têm o mais baixo rendimento entre os empreendedores, de R$ 1.852, comparado a R$ 2.188 para homens negros, R$ 2.706 para mulheres brancas e R$ 3.231 para homens brancos, mostra o levantamento do Sebrae” (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64477594);
6) No quarto trimestre de 2020, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelava que “os negros representam 72,9% dos desocupados do país, de um total de 13,9 milhões de pessoas nessa situação” (https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/trabalho-e-formacao/2021/03/4913182-pretos-no-topo-desemprego-recorde-entre-negros-e-resultado-de-racismo.html);
7) Entre as pessoas resgatas da condição análoga à escravidão, em 2022, 84% eram negras (https://www.brasildefato.com.br/2022/05/13/negros-e-pardos-sao-84-dos-resgatados-em-trabalho-analogo-a-escravidao-em-2022#:~:text=Negros%20s%C3%A3o%2084%25%20dos%20resgatados%20em%20trabalho%20an%C3%A1logo%20%C3%A0%20escravid%C3%A3o%20em%202022);
8) Deve ser considerado que o trabalho escravizado é, em grande parte, trabalho infantil, atingindo, pois, majoritariamente pessoas negras desde os 5 anos de idade (https://livredetrabalhoinfantil.org.br/especiais/trabalho-infantil-sp/reportagens/trabalho-infantil-negro-e-maior-por-heranca-da-escravidao/).
Se olharmos para esses fatos com a lente do Direito, seremos instados a expressar que tais fatos refletem graves afrontas à ordem jurídica.
Inúmeras são as normas que poderiam ser citadas para coibir esta realidade, como, por exemplo:
a) “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(….)
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;”
b) “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
c) “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
d) “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” (este artigo, cumpre perceber, está inserido no TÍTULO II – DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS).
Mas, então, por que esta realidade, acima retratada, de reiterada e generalizada violência racial se mantém?
Eis a questão!
Para responder a esta indagação, faz-se essencial recordar que a escravidão negra foi juridicamente reconhecida como válida durante quase 4/5 da nossa história.
Segundo, é por demais importante reconhecer que a eliminação do “direito de escravizar” não foi seguida de qualquer política de inclusão, muito pelo contrário. Desde a Lei de Terras, de 1850, e o financiamento estatal para o transporte massivo de trabalhadores imigrantes para o Brasil, no período de transição do escravismo para o trabalho livre, as políticas de governo foram todas direcionadas à exclusão e marginalização da população negra.
Os postos de trabalho direcionados à população negra foram os de baixa renda e subalternizados.
Mesmo a legislação trabalhista, impulsionada pelo Estado a partir da década de 30, não alterou esta realidade. Aliás, contribuiu para que este processo de exclusão e de racismo perpetuasse.
A CLT, de 1943, previa, expressamente, que os direitos trabalhistas não se aplicariam no âmbito rural e no trabalho doméstico e que à mulher trabalhadora vários eram os impedimentos para o exercício do trabalho, estando submetidas, inclusive, à autorização do marido, quando casadas, ou do pai, quando solteiras. Essa situação, quanto ao trabalho rural, se manteve até 1988 e com relação às trabalhadoras domésticas, malgrado algumas conquistas, persiste até hoje.
Foi assim que a história de opressões, violências, discriminações, preconceitos e superexploração pôde seguir seu curso, mesmo com a ampliação da legislação do trabalho e até mesmo após os pactos firmados na dita Constituição cidadã de 1988.
Resta, por conseguinte, como mera expressão cínica, o enunciado trazido no art. 4º da CF, de que a República Federativa do Brasil é regida, nas suas relações internacionais, pelo princípio do “repúdio ao terrorismo e ao racismo” (inciso VIII).
Ora, para repudiar o racismo nas relações internacionais seria essencial que o país desenvolvesse políticas efetivas contra o racismo internamente, até porque a própria Constituição, no 5º. Inciso, XLII, prevê que a “prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
É por tudo isso que, além da inefetividade típica da nossa legislação trabalhista, os trabalhos subalternizados, ou seja, com menos direitos e até sem direito algum, restaram direcionados, em sua grande maioria, às mesmas pessoas que, com maior intensidade, experimentaram todas as violências históricas: as pessoas negras e as mulheres, sobretudo, as mulheres negras.
Não é coincidência, pois, que sejam estas as pessoas que ocupam a maior parte dos postos no trabalho doméstico e na terceirização, assim como atuam como cuidadoras, vendedoras ambulantes, profissionais de salão de beleza, enfermeiras, lixeiros, entregadores etc.
Mas nada disso é um acaso legislativo.
Como dito inicialmente, o racismo que está arraigado à cultura nacional serve ao capital para criar uma segregação no seio da própria classe trabalhadora, fazendo, até mesmo, com que trabalhadores brancos se vejam mais identificados com o patrão do que com os trabalhadores e trabalhadoras negros e negras em ocupações “inferiorizadas”.
A questão racial é utilizada para inibir a solidariedade de classe.
Ocorre que esta fragmentação também é contrária à parcela da classe trabalhadora que se sente incluída e diferenciada porque serve ao capital como forma de rebaixamento geral da condição de vida da classe trabalhadora, por meio da difusão da concepção, sempre renovada para baixo, do mal menor.
Sobre quem está empregado debruça-se a áurea do medo do subemprego ou do desemprego. Estes são coagidos a aceitar as condições que lhes são oferecidas e a não lutar por melhores condições, pois são induzidos a mirar a situação daqueles que se encontram regidos por contratos precarizados, na informalidade ou que não possuem qualquer ocupação.
Com isto, o racismo é reproduzido no próprio campo da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, constitui um instrumento poderoso de ataque à classe trabalhadora como um todo.
A divisão racial da classe trabalhadora também está refletida na estruturação da ordem jurídica, constituída, majoritariamente, por pessoas brancas que são levadas a acreditar que “ascenderam” às suas posições pelos seus próprios méritos.
É assim que se estabelece um autêntico “pacto narcísico da branquitude”, como denomina a psicóloga Cida Bento[1], na comunidade jurídica trabalhista, que contribui para que todas essas questões de nítida discriminação sejam invisibilizadas, assim como naturalizadas e legitimadas.
Para constatar isso, bastaria lembrar que ainda convivemos com várias e reiteradas denúncias de trabalho em condições análogas à escravidão e estas situações, devidamente comprovadas e reconhecidas como tais, não têm gerado indignação social e reação institucional à altura da gravidade, com punições penais e condenações a indenizações milionárias, que passariam, necessariamente, pela expropriação, em favor dos “escravizados”, das terras onde o crime foi cometido.
Mas cumpre ir além e verificar que o racismo também está arraigado ao mundo jurídico trabalhista na forma como este acoberta e naturaliza a precarização e o sofrimento que experimentam as trabalhadoras e trabalhadores submetidos à terceirização, ao trabalho doméstico sem direitos (valendo menção, sobretudo, à situação das ditas “diaristas”, que são, na verdade, empregadas) e, mais presentemente, ao trabalho de entrega explorado por empresas proprietárias de plataformas digitais. Para ficar em três exemplos apenas.
É preciso, urgentemente, reconhecer que o racismo está impregnado na forma como se tem concebido teoricamente e aplicado as normas trabalhistas, para, a partir desse pressuposto, promover uma autêntica revolução metodológica de cunho antirracista no Direito do Trabalho e, assim, se conseguir, enfim, abolir a terceirização, o trabalho infantil e o trabalho em condições análogas à escravização; consagrar a plena igualdade de direitos para as trabalhadoras domésticas, com eliminação da figura jurídica da diarista; e reconhecer a existência da relação de emprego no trabalho exercido pelos entregadores etc. Isto como ponto de partida…
Só com este passo é que se conseguirá enfrentar as diversas formas de violência que ainda sofre a população negra trabalhadora.
E, quero crer, entrando assim na segunda reflexão proposta, que a correção definitiva de todos esses males não se fará pelo pressuposto jurídico único da igualdade, ainda que, as iniciativas individuais, com esta demanda, possam gerar repercussões importantes para a devida e necessária reparação dos danos imediatos experimentados.
A questão é que o pleito da igualdade, se tem o mérito de denunciar o rebaixamento jurídico, social e econômico gerado pelo racismo, pode, por outro lado, consolidar a ilusão de que é possível, pela via da individualidade, corrigir as distorções do modelo de sociedade, que não são, como visto, propriamente, distorções e sim fórmulas estruturantes, cujo enfrentamento exige, por conseguinte, remédios bem mais contundentes.
É certo que as demandas imediatas (mesmo individuais) são relevantes e necessárias, mas é preciso que estejam aliadas à promoção de mudanças mais profundas e definitivas, o que só se vislumbra com o reforço da consciência de classe.
Esta compreensão é especialmente relevante porque, considerando a realidade atual, está principalmente nas mãos da população negra trabalhadora o protagonismo da retomada da luta de classes, tão necessária à emancipação da classe trabalhadora.
As lutas da classe trabalhadora negra (e que devem ser também as lutas de todas as pessoas que, na essência, integram a classe trabalhadora) contra o racismo, para exigir igualdade real, para dominar os espaços políticos e sociais relevantes e para conquistar autonomia econômica são urgentes e necessárias. Mas é fundamental não permitir que estas pautas sejam, também elas, apropriadas e aprisionadas pelo capital, dentro das concepções meramente subjetivadas, e, assim, transformadas em mais meios de reprodução da ideologia e da lógica do capital.
Um grande papel do autêntico movimento social antirracista será o de reativar as utopias quanto às possibilidades de se recriar o próprio modelo de sociedade, um que seja baseado nos saberes e crenças milenares dos povos africanos, aliados aos saberes e crenças milenares dos povos indígenas.
Esta, ademais, é a única saída para a humanidade.
São Paulo, 05 de outubro de 2024.
(*) Manifestação proferida no “IV Congresso de Direito Antidiscriminatório: os desafios para a promoção da igualdade racial no Brasil”, no painel “Direito do Trabalho e promoção da igualdade racial na sociedade de classes”. O evento foi organizado e realizado pelas Comissões da Igualdade Racial e da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da Subseção da OAB-Campinas, em 05 de outubro de 2024.
[1]. BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
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