Câncer e Trabalho: o paradoxo da não prevenção

Por Luiz Scienza


© AP Photo / Hasan Jamali

          O Ministério da Saúde lançou, no último dia 4 de dezembro, o primeiro atlas[1] que busca mapear a mortalidade humana pelo câncer, evidenciando a sua relação com a ocupação do indivíduo. O câncer é um flagelo mundial, sendo atribuído a concorrentes fatores ambientais e laborais a ocorrência de cerca de 19% do somatório de todas as tipologias. É ainda a segunda causa de morte no Brasil. Em tempos incertos, a publicação da pasta ministerial é notável não apenas como subsídio a políticas públicas voltadas à prevenção destes agravos, mas também de demonstração de seu significado e importância. Ao explorar o conceito de fração atribuível pelo trabalho do indivíduo para o adoecimento, ou seja, o quanto determinada exposição ocupacional colaborou para a eclosão de 18 diferentes tipos de neoplasias, aponta também caminhos para que estas possam ser evitadas. A história das correlações estabelecidas entre o câncer e trabalho é longa e passa pela aplicação do critério epidemiológico e estudos experimentais. Lembrando ainda que o largo tempo de latência entre a exposição ao estressor e manifestação clínica – um mesotelioma pode eclodir mais de trinta anos após a exposição inicial à fibra do amianto, – reforça a possibilidade que os dados existentes estejam subestimados.

          Boa parcela das exposições ocupacionais aos carcinógenos humanos pode ser evitada ou reduzida, em alguns casos por medidas singelas e de baixo aporte tecnológico. No entanto, o paradoxo da não prevenção de um evento funesto começa a ser forjado quando a etapa de reconhecimento do risco câncer, primeiro e fundamental passo para a prática preventiva, é sorrateiramente negligenciada. Um risco não reconhecido é consequentemente não controlado, algo varrido e jogado embaixo do tapete. A negação do risco é regra e contradição da essência da maior parte dos chamados programas preventivos legais, como o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), verificados pelos Auditores do ex-Ministério do Trabalho, o defunto anunciado. Nega-se o risco, mesmo existindo, inclusive em locais de trabalho, mais de 900 agentes ou atividades reconhecidos por seu potencial carcinógeno. Nega-se o risco, muitas vezes por meio de Fichas de Informações de Segurança de Produtos Químicos (FISPQ) incompletas ou tendenciosas. Nega-se o risco, mesmo reconhecendo-se que o agente está presente no ambiente, sem se proceder a sua correta apreciação. Nega-se o risco, porque alegadamente os resultados de avaliações quantitativas situaram-se abaixo dos limites de exposição ocupacional, inclusive dos arcaicos Limites de tolerância (LT) da NR-15. Aliás, a regra não escrita do mercado de atendimento a estas questões é a execução de avaliações de forma atécnica, parcial e não representativa, como forma de legitimar as condições de exposição já existentes nas empresas. Nega-se o risco também ao considerar a existência de um limiar de não-efeito para o câncer, extremamente questionável em casos como a exposição ao benzeno. Enfim, submergir o risco câncer ou subverter estes programas legais a interesses de outra ordem cristaliza péssimas condições de trabalho, rompe com qualquer prática preventiva, favorece o adoecimento. A negação do risco de indução de neoplasias também cria um escudo contra a investigação e eventual caracterização do nexo do adoecimento com trabalho, bem como ajuda a elidir a incidência de contribuições previdenciárias adicionais.

          O Atlas ainda nos proporciona outras interessantes reflexões. Exemplarmente, no que se refere às leucemias, informa o surgimento, para o biênio 2018-2019, de 5.940 novos casos em homens e 4.860 em mulheres, cada ano, apenas em nosso país, sendo os fatores de indução relacionados às exposições ocupacionais significativos. Segundo o documento, a distribuição  destes agravos sugere que”os serviços relacionados à comercialização dos derivados de petróleo, em especial os combustíveis, a distribuição das maiores taxas se espacializam nos locais de maior demanda por esses serviços, somando-se às múltiplas atividades geradoras de risco. Os espaços da agroindústria também são predominantes”. Em outras palavras, as maiores taxas deste adoecimento estão relacionadas aos espaços onde se situam os serviços de distribuição e comercialização de derivados de petróleo. Estes serviços rotineiramente estão muito próximos às nossas residências, ao nosso trabalho, ao colégio de nossos filhos, são, portanto, elementos concretos e visíveis. Mesmo assim, o que exatamente é feito para a redução deste agravo no setor? Seu poder, escala e intensa capilarização torna a tarefa difícil. Existem iniciativas pontuais em alguns estados brasileiros – um setor de amplo espectro, que vai da distribuidora, passa por empresas de transporte de cargas perigosas e culmina com os postos de revenda de combustíveis (PRC) – para que se reconheça o risco câncer e priorize a adoção de medidas corretivas, tanto ambientais quanto de organização do trabalho. Neste contexto, alguns objetivos foram alcançados – no Rio Grande do Sul, ações de Estado e posterior consenso entre as partes permitiu que motoristas de caminhões-tanque não executem as operações de carregamento junto aos terminais das distribuidoras – mas são ainda insuficientes. Programas supostamente preventivos,como o PPRA em postos de revenda de combustíveis, ainda continuam a ignorar o potencial caráter carcinógeno da exposição  ao benzeno. Diante do quadro de precariedade, a afirmação, constante no atlas e referente à fração atribuível ao trabalho, “se cessarmos a exposição ocupacional aos fatores de risco de câncer leucemias, poderemos reduzir 8,69% do número de casos em mulheres, e 36,93% do número de casos em homens” não deveria causar espanto. A inferência talvez possa ser questionada em sua aplicabilidade e exatidão, mas não o seu significado: ainda temos muito a fazer para que o trabalho seja um indutor da cidadania, não do adoecimento. A prevenção das múltiplas e insidiosas formas de câncer poderia, em muitos cenários laborais, ser um horizonte alcançável.


[1]Atlas do Câncer Relacionado ao Trabalho no Brasil/ Ministério da Saúde,Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância em SaúdeAmbiental e Saúde do Trabalhador – Brasília: Ministério da Saúde, 2018. 202 p.

*Luiz Scienza é Auditor-Fiscal do Trabalho e  Professor do Departamento de Medicina Social da UFRGS.

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