12 horas em pé, movimentos mecânicos e cronometrados: a rotina dos imigrantes nas fábricas japonesas
Por Juliana Sayuri | TAB Uol
A reportagem de TAB traz o relato da jornalista Juliana Sayuri, que passou três meses trabalhando em uma fábrica japonesa. A experiência, contada em forma de diário, é de fins de 2019, mas retrata condições que marcam o fenômeno dekassegui até hoje. A história é dividida em três partes. Na Parte 1, Juliana narra o choque dos primeiros dias de treinamento. Na Parte 2, revela a rotina desgastante de operar em uma linha de montagem. Na Parte 3, descreve as tensas reuniões com a chefia e sua despedida da fábrica. Os nomes citados são fictícios, para preservar a identidade dos imigrantes.
PARTE 1: A FÁBRICA
7 de outubro
Às 6h11, Otávio* encosta uma van cinza Hiace em uma esquina paralela à Rota 1, a rodovia que cruza a ilha de Honshu, no Japão. Todas as manhãs, de segunda a sexta, ele roda um DVD de Michel Teló ao vivo no tablet voltado aos passageiros, quase sempre na faixa “Moreninha Linda”.
Na casa dos 70, sempre de óculos, jeans e jaqueta off-white do uniforme, Otávio é tantousha de uma das maiores empreiteiras da província de Aichi, no centro do país. Tantousha é o funcionário que faz a ponte entre as fábricas e os operários, desdobrando-se nas funções de recrutador, motorista e, às vezes, tradutor. Ele recruta dekasseguis brasileiros para uma fábrica de autopeças que fornece para Honda, Suzuki e Subaru, nas imediações do distrito industrial de Toyohashi.
Otávio leva operários de van até o ponto do ônibus fretado, um Isuzu Gala Mio caindo aos pedaços. Passa às 6h40 rumo à fábrica de baiza (calha contra chuva acoplada às janelas dos carros). “É trabalho leve e limpo, mas corrido”, informou-me o tantousha no trajeto, perto de montanhas, pomares carregados de caquis e arrozais.
O tipo de trabalho que rende salários mais altos para os dekasseguis, os trabalhadores temporários imigrantes no Japão, é o dito “3K”: kitanai (sujo), kiken (perigoso) e kitsui (pesado). Homens são mais procurados para posições 3K, que pagam 1.600 ienes por hora, o que, no fim do mês, vale US$ 3.500 (cerca de R$ 17,5 mil no câmbio atual). Mulheres têm ocupações “leves e limpas”. Na fábrica de baiza, paga-se 1.250 ienes por hora (no fim do mês, US$ 2.770 ou R$ 13,9 mil). Éramos cinco candidatas a novas vagas na fábrica. Ficamos três.
A jornada vai das 8h às 17h (o teiji, horário padrão) e “às vezes” se estende até as 20h. Logo no primeiro dia, descobri que o “às vezes” é sempre. A fábrica demanda 3 horas adicionais diárias aos operários (zangyo, a hora extra). Extraoficialmente, então, o trabalho vai das 8h às 20h — mais duas horas de estrada para ir e vir. A longa jornada, que para mim foi surpresa, para outras operárias foi chamariz. As duas novatas contratadas comigo, Letícia e Vitória, vinham de uma fábrica de cosméticos onde se pagava apenas 950 ienes a hora (o que rendia “apenas” R$ 7,5 mil por mês).
“Fia, sou uma mulher de metas”, definiu-se Vitória*, 25, no país desde maio de 2019. “É questão de foco”, declarou, citando ter perdido quase 20 de seus 106 kg em um ano. Morena de olhos verdes e neta de japoneses, vinda do interior do Paraná, Vitória era gerente de posto de gasolina e decidiu deixar o Brasil com marido e filho após um assalto. “Às vezes fico pensando: lá eu tinha tudo, dormia em uma cama king size. Que que eu tô fazendo dormindo num futon no chão do outro lado do mundo? É que eu quero uma vida melhor para o amanhã”, diz.
8 de outubro
“Esta é a peça”, indicou um dos supervisores do seikei, a área que maneja as máquinas de baiza. Guindastes gigantes transportam contêineres de até 7,5 toneladas de matéria-prima, que são delicadamente despejados em moldes dentro das máquinas. Para sinalizar que estão em movimento, como alerta de segurança, toca-se música clássica.
Na fábrica há cinco máquinas operando, que liberam um par de peças por vez. Os operários do seikei, todos homens, pegam as calhas de acrílico ainda mornas para retirar as rebarbas com lâminas. O trabalho é esse, o dia inteiro: lapidar e enfileirar peças em um carrinho.
As calhas são então levadas para o outro lado do galpão, onde operam seis linhas de produção. Ali é feita a inspeção, chamada kensa. As operárias, vestindo luvas, devem averiguá-las em busca de trincos, riscos ou marcas. Furyo (pronuncia-se “furiô”) é a expressão para as imperfeições.
Kensa pode dar a ideia de um trabalho detalhista e delicado. Não é. Trabalhamos em pé por 12 horas, interrompidas por 40 minutos de almoço e três intervalos de 10 minutos — tempo reservado para sentar, ir ao banheiro, beber água e beliscar um lanche; fora do intervalo, tudo isso é proibido. É preciso inspecionar as calhas, frente e verso, a olho nu, em questão de segundos. São cerca de 2 mil peças conferidas por dia.
Todas as energias da fábrica são voltadas a impedir imperfeições. Um painel exibe erros crassos de peças devolvidas, o dito “muro das lamentações”. A poucos passos do mural fica o refeitório, uma área com 6 mesas de madeira, 72 cadeiras e 2 sofás, onde também são feitas as reuniões das 7h45 (embora o turno oficialmente se inicie às 8h10), dirigida pelos líderes de departamento, todos homens.
9 de outubro
Uma vez por semana, quem conduz a reunião é o diretor da unidade, um imigrante coreano que há décadas vive no Japão. Na véspera da reunião, as operárias anteciparam o tom da conversa: pressões por produtividade e assiduidade, gritos por erros e escarradas. “É dia de usar técnicas para dormir de olhos abertos”, definiu uma delas.
Guardei correndo minha mochila em um dos 168 nichos do armário metálico da fábrica, estilo colegial americano — dentro do locker 143, uma funcionária antiga grudou a etiqueta com o nome escrito de próprio punho: “Mel <3”.
Riku, o líder geral, entrou no refeitório. Ele também usa uniforme (cargo azul e camiseta preta), mas é o único que deixa o boné para trás. Segundos depois entrou o diretor, muito magro e de olheiras profundas. Todos se referem a ele como shachou (diretor-presidente) ou “o velho”, inclusive na sua presença. Os supervisores se referem a ele assim: o velho diz, o velho avisou, o velho pediu.
Riku traduz os discursos do diretor do japonês para o português. “O velho está dizendo que precisamos melhorar o ritmo de produção. Sucesso é equilíbrio. Se a fábrica produzir só 50 peças perfeitas no dia, nós falimos. Se produzir 700, mas imperfeitas, também falimos. Se falirmos, vocês não recebem salário. Depende de vocês.”
Todos tratam Riku, um brasileiro há mais de duas décadas no Japão, pelo primeiro nome. Entre os diretores japoneses, entretanto, impera a impessoalidade. Há operários ali que nunca descobriram o nome ou o sobrenome de seus supervisores.
“Ganbatte!”, bradou o shachou, encerrando de repente a reunião. A expressão é motivacional; quer dizer “dê o seu melhor”. Nenhum dicionário do mundo, entretanto, seria capaz de traduzir o tom negativo de “o que você está fazendo não é o bastante” quando alguém diz ganbatte em uma fábrica.
17 de outubro
Uma concessionária devolveu uma peça com um erro grave. Mal entrou no refeitório, o shachou jogou a peça na mesa:
– Ohayo gozaimasu [bom dia], bufou.
O velho estava furioso. “Zero! Zero furyo!”, gritou, em japonês.
Entre janeiro e outubro, 56 peças foram devolvidas por clientes, informou. Não é muito, pensei, fazendo as contas: se a fábrica produz cerca de 10 mil peças por dia; por alto, são 200 mil peças por mês, 2,4 milhões por ano. Se 56 voltaram em 10 meses, a média de erro é de 0,0028%.
– A meta é zero furyo! Dá pra ser assim?! -, bradou mais uma vez o diretor a um dos supervisores do seikei, Ren.
– Zero é impossível. Errar é humano… -, ponderou Ren.
– Quem pensa que “é impossível” não serve para trabalhar aqui. Vou te perguntar de novo, dá pra ser assim?
– É, melhorar é possível, mas…?
– Esse é o espírito. É a mentalidade de melhorar sempre, pensando no zero. Tá todo mundo de acordo? Dá pra ser assim?
Todos continuavam cabisbaixos, só ouvindo.
– Quero ouvir vocês. Dá pra pensar zero furyo? -, insistiu.
O único a responder, entre os mais de 100 funcionários presentes, foi o operário mais jovem: um brasileiro de 19 anos, alto e magro, com barba rala e voz fina, apelidado pelos colegas de “o menino”.
Ele levantou a mão direita (a esquerda tentava segurar as pernas trêmulas) e respondeu, em português:
– Não, zero não dá. Minha máquina é muito rápida, solta 45 peças por hora, às vezes não dá pra acompanhar. E se a máquina é programada pra não soltar furyo e solta, imagina a gente. A gente erra, a gente é humano.
Foi corajoso, mas solitário. (…)”
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Fonte: TAB Uol
Data original da publicação: 12/01/2021