Novo governo e relações de trabalho: a emoção acabou?
Por Jorge Luiz Soutor Maior
“Acreditava na vida
Na alegria de ser
Nas coisas do coração
Nas mãos um muito fazer”
(Gonzaguinha – “Com a perna no mundo”)
- Obrigado mãe, por me ensinar a viver.
Fiquei exultante e bastante esperançoso com as falas do Presidente Lula e de alguns de seus Ministros. Os acertos, as contundências e a coragem expressos nas manifestações foram dignos, e continuam sendo, de aplausos e elogios.
A empolgação ainda se justifica, pois muito do que está sendo projetado certamente poderá ser concluído, visto que, como já expressei, a competência e o compromisso de diversos integrantes do novo governo são inquestionáveis.
Mas há, como também já destaquei na carta aberta ao novo governo, uma questão que é central, a relação trabalho-capital, quanto à qual não se pode errar e que exige um tratamento muito além da mera boa vontade. Nesta temática exige-se respeito ao conhecimento historicamente adquirido, para que não se cometam os mesmos erros do passado, sob pena de, inclusive, sem qualquer exagero, jogar por terra todas as demais iniciativas positivas, negando-se a possibilidade concreta da construção de um novo tempo. Fato é que, bem ao contrário do que fizeram os demais novos(as) Ministros(as), que foram, por assim dizer, “programáticos”, o Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, e o Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Márcio Macedo, embora este último tenha anunciado a recriação do “Conselhão” com o objetivo de pôr em pauta uma “reforma trabalhista”, acabaram avançando e já efetuaram pronunciamentos públicos com suas valorações pessoais e até algumas proposições concretas para o mundo do trabalho.
Vários são os pontos problemáticos de suas falas, que impõem uma abrupta interrupção do estado de comoção, para dar início a um diálogo mais sério, inspirado pelo espírito democrático e regido pelo propósito de colaboração.
Importante destacar, desde já, que apenas vou dizer o óbvio, mas, conforme disse Sílvio Almeida, o óbvio precisa ser dito, até porque, como anotou Caetano, o óbvio surpreende.
Pois bem. Ao negarem, expressamente, a revogação da “reforma” trabalhista – mesmo que isto, de fato, dependa de trâmites complexos e difíceis no Congresso Nacional – “reforma” esta, inclusive, que o próprio Ministro do Trabalho nomina de “malfadada”, a mensagem que transmitem é que o novo governo não quer incomodar o poder econômico. Aliás, falando diretamente para o setor econômico, Luiz Marinho deixou o recado: “Não há razão para temor”.
O que se percebe é que, bem distante do discurso do Presidente Lula, que foi direcionado ao povo e compreensível com as aflições e os sofrimentos da classe trabalhadora, como se verificou, também, no discurso do Ministro Sílvio Almeida, aqui, na questão central, o interlocutor imediato foi o mercado, do qual é aliada a grande mídia, vale lembrar. Não à toa, o primeiro Ministro a ser entrevistado em jornal de grande circulação foi o Ministro do Trabalho, isto já para colocá-lo sob pressão e, assim, expressar o compromisso de não revogação da “reforma” trabalhista. Não por coincidência, também, sua fala, contendo esta afirmação, rapidamente repercutiu em vários outros veículos de informação. Tudo isto, inclusive, para tentar, de alguma forma, influenciar no resultado da ADI 1625, que trata da constitucionalidade da Convenção 158 da OIT, que inibe a dispensa arbitrária, cujo julgamento está na pauta do STF desta semana.
A situação é muito grave, primeiro porque os Ministros se deixam instrumentalizar, segundo porque se mostram preocupados em agradar os poderes econômico e midiático, e, terceiro porque, em contradição com a própria fala, a tomada de posição no sentido da não revogação se dá sem que se tenha ouvido os movimentos sociais, as organizações sindicais e o meio jurídico historicamente ligado à defesa dos direitos trabalhistas.
Mas é ainda mais grave porque deixa refém todo o governo e compromete o conjunto da obra que se anuncia. Afinal, é como se o governo assumisse para si a maternidade de uma lei que massacrou econômica e moralmente a classe trabalhadora brasileira e formalizasse uma conciliação com práticas antidemocráticas.
Ora, a “reforma” trabalhista, todos sabem, foi causa e efeito do golpe institucional de 2016 e só se aprovou em período de autêntica ruptura democrática. Além disso, trata-se de um documento que reflete unicamente os interesses do setor econômico, na sua ânsia de aumentar a taxa de lucro por meio do rebaixamento das balizas jurídicas destinadas à proteção da vida dos(as) trabalhadores(as) e à melhoria progressiva da condição social e econômica dessas pessoas.
Então, um governo que se elege para garantir a sobrevivência da democracia e das instituições democráticas não pode se aliar ao documento que solapou a democracia, golpeou a classe trabalhadora brasileira e que sequer mereceria o nome de “reforma”.
Do novo governo requer-se, essencialmente, formulações comprometidas com a verdade e a verdade histórica do golpe trabalhista precisa ser expressada. Qualquer posição diversa desta, por quaisquer conveniências que forem, inviabiliza, enormemente, a formação de uma ligação sincera do governo com a classe trabalhadora e com a história da construção democrática no país.
Os Ministros falam em diálogo para a elaboração de uma “reforma” trabalhista. Mas, concretamente, propõem um diálogo com quem estimulou a quebra democrática para impor suas vontades. Aliás, um dos fundamentos jurídicos que nega regularidade ao procedimento legislativo instaurado é exatamente a ausência do diálogo social, como preconiza a Organização Internacional do Trabalho.
É bem verdade que o Presidente Lula falou de diálogo em seu discurso: “Vamos dialogar, de forma tripartite – governo, centrais sindicais e empresariais – sobre uma nova legislação trabalhista. Garantir a liberdade de empreender, ao lado da proteção social, é um grande desafio nos tempos de hoje.”
Mas isto, se imaginava, não representava dizer que o diálogo se daria a partir do rebaixamento em que se encontram os direitos trabalhistas no Brasil. Ocorre que o Presidente não veio a público para se contrapor às falas dos Ministros em questão e, por outro lado, o fez, por meio do Ministro da Casa Civil, com relação à manifestação do Ministro da Previdência Social, que teria anunciado a realização de uma contrarreforma na Previdência Social e, na sequência, até chamou todos para uma reunião ministerial, buscando tranquilizar o mercado.
Fato é que iniciar um diálogo com o setor econômico, já tendo este em suas mãos uma legislação que, somada às iniciativas adotadas por Medidas Provisórias pelo governo anterior, pôs concretamente de joelhos os trabalhadores e as trabalhadoras, como denunciei em texto escrito no 1o de maio de 2020, equivale a admitir que o resultado final não ultrapassará a lógica do “mal menor” que, ademais, foi a equivocada diretriz na área trabalhista que direcionou os governos petistas desde 2003.
Um diálogo nestas condições não tem potencial para promover uma reversão da direção da regulação das relações de trabalho no Brasil, ainda mais porque, por óbvio (e o óbvio precisa ser dito), o empresariado e o agronegócio não vão abrir mão por completo, em qualquer tipo de negociação, de todos os benefícios que auferiram com o golpe de 2016 e de tantos outros que já vinham experimentando desde a década de 90 – e de sempre, vale dizer.
Alterar aqui ou ali a “reforma” trabalhista equivale a mantê-la vigente e a revigorar a violência em que se constituiu, além de projetar um horizonte extremamente reduzido para o debate no campo jurídico-trabalhista. Não se concebe, ainda mais considerando as esperanças lançadas com a eleição de um novo governo dito popular, que reconhece que “os trabalhadores e as trabalhadoras existem” e expressa que essas pessoas são valiosas, que se estabeleça um debate para definir se a terceirização é boa ou ruim. Se há meio melhor ou pior de regular a terceirização. Se o banco de horas pode ou não ser mantido. Se o(a) trabalhador(a) individualmente, em “negociação” com o patrão, podem abrir mão de seus direitos. Se os sindicatos podem admitir redução das garantias jurídicas legalmente previstas. Se o acesso à justiça comporta alguma limitação. Se as trabalhadoras domésticas merecem ou não os mesmos direitos que os demais trabalhadores. Se há formas de melhorar a competitividade das empresas por meio da redução de direitos trabalhistas e até que ponto esta redução pode ir etc.
Dessa retórica ofensiva ao conhecimento já vimos demais e estas ciladas argumentativas só servem para afastar discussões essenciais a respeito do que efetivamente deve ser feito para que as normas constitucionais trabalhistas sejam, enfim, efetivadas, de modo a atender os postulados do primado do valor social do trabalho, da prevalência dos Direitos Humanos, da vedação da dispensa arbitrária, do exercício pleno do direito de greve e da organização sindical livre de intervenção do Estado.
Dito de outro modo, é sobre a Constituição Federal, as Declarações e os Tratados internacionais de Direitos Humanos e as Convenções da OIT que devemos tratar e não sobre o que alterar ou não na lei do golpe trabalhista, que é, vale reforçar, uma lei que representa a negação do aparato jurídico antes referido. E de negacionismo queremos distância!
Ainda em termos de diálogo social, é importante pensar a questão historicamente. Se fizermos isto, veremos, facilmente, que o setor econômico foi o que se fez ouvir nos quase 400 anos de escravidão; no período da Primeira República; no primeiro governo Vargas; na ditadura varguista; no governo Dutra; nos 21 anos da ditadura militar; nos governos neoliberais da década de 90; e nos fatídicos anos de 2016 a 2022.
A classe trabalhadora, efetivamente, só teve alguma voz no segundo governo Vargas, muito por conta da participação de João Goulart, enquanto Ministro do Trabalho, e no próprio governo de João Goulart, sendo certo que esta atitude do governo de ouvir a classe trabalhadora não foi admitida e os resultados da forte reação promovida pelo poder econômico, bem sabemos, foram: suicídio de Vargas, em 1954, e golpe civil-empresarial-militar, em 1964.
Embora sem a mesma intensidade, entre 2003 e 2015, o setor empresarial continuou sendo o interlocutor ouvido pelo governo, sobretudo por meio da política de isenções fiscais, valendo lembrar que no plano trabalhista o empresariado inicialmente tinha maiores aspirações, visto que já detinha (e manteve inalteradas) as “conquistas” auferidas na década de 60, 70 e 90.
De forma mais concreta, trabalhadoras mulheres, trabalhadores negros e, sobretudo, trabalhadoras negras, que estão nas relações mais precarizadas e exploradas (terceirização, trabalho doméstico, vendedoras ambulantes, informais, coletores de lixo, entregadores etc.) nunca tiveram sua existência reconhecida pelo Estado brasileiro, a não ser do ponto de vista da repressão e da criminalização.
Pois bem, visto por este ângulo, se é para promover um diálogo social parece ser a hora do setor empresarial sentar, ouvir e se submeter ao pacto firmado na Constituição Federal, nos Tratados internacionais, dentre os quais o Protocolo de San Salvador, de 1998 e as Convenções da OIT, notadamente no que dizem respeito à proibição de dispensa arbitrária, sobretudo, coletiva, à liberdade de sindicalização, ao direito de greve e ao pleno acesso à justiça.
Quanta dívida histórica com a classe trabalhadora temos para pagar!
O presente governo tem um papel fundamental a cumprir nesta tarefa e a sua própria autoridade está em jogo, pois ou cumpre este papel ou, mesmo expressando lindos discursos, restará registrado na história como mais um que se alinhou ao poder econômico e instrumentalizou a exploração e o sofrimento da classe trabalhadora majoritariamente negra, ainda que se aprimore na concessão de compensações assistenciais (o que até o anterior governo neoliberal e antidemocrático promoveu, acompanhado de muita violência, por certo).
Do ponto de vista da distribuição e destinação da riqueza produzida pelo trabalho socialmente exercido, a diferença entre o atual o governo e o anterior não pode ser medida pelo valor do auxílio Brasil, que voltou a se chamar Bolsa Famílial!!!
Quando o atual Ministro do Trabalho fala que vai promover uma reforma “fatiada” da legislação trabalhista, o que está deixando evidenciado é que somente alguma parte desta legislação, na qual se incluem, com proeminência, as normas e práticas advindas da “reforma” trabalhista, será revista e que isto só se dará se tiver o “aceite” do setor empresarial.
Mas não é só isso. O mais preocupante mesmo é que os Ministros que vão cuidar do tema relações de trabalho não só assimilam como obra e objetivo do governo o rebaixamento jurídico, político e econômico em que se encontra a classe trabalhadora, como também manifestam um posicionamento a respeito do tema que está plenamente identificado com os postulados históricos do capital.
Com efeito, disse Marinho (à semelhança trágica com outro Marinho): “Não estamos falando que para todos os segmentos do trabalho vai ter CLT. Você tem os trabalhadores que podem estar inseridos na economia solidária, a partir de cooperativismo, de outros instrumentos, a partir do microempreendedor individual (MEI).”
Falou, ainda, que a reforma que pretende implementar se dará com o objetivo da geração de empregos e priorização da negociação coletiva, como consta, expressamente, nos “considerandos” da lei da “reforma” trabalhista.
Se não bastasse, ainda trouxe à tona os fantasmas da arbitragem e das comissões de conciliação prévia que tanto assombraram a proteção jurídica trabalhista nos anos 90 e geraram, concretamente, enormes prejuízos ao patrimônio da classe trabalhadora.
Os problemas não param aí.
Ao dizer que nem todo trabalhador precisa de CLT, o Ministro reproduz e endossa a aversão irracional, regada a ódio, que se tem no Brasil com relação à CLT.
Ora, a CLT é, meramente, um documento jurídico que explicita quais são os direitos mínimos de quem, para sobreviver, vende a sua força de trabalho a outra pessoa ou empresa. Os direitos do trabalhador, ademais, estão enunciados também em vários outros instrumentos jurídicos e, sobretudo, na Constituição Federal (sem falar das Declarações, Tratados e Convenções internacionais).
Aliás, considerando o que consta na Constituição Federal e nestes documentos internacionais, os direitos integrados à CLT estão muito abaixo do nível que seria o mínimo.
Então, o desafio é outro.
A tarefa urgente é extirpar do mundo jurídico todas as fórmulas que, desde a década de 60, foram criadas para rebaixar a proteção jurídica trabalhista. E, sobretudo, quebrar, de uma vez, todo preconceito ou mesmo o ódio que se tem com relação aos direitos trabalhistas, que são, em verdade, direitos fundamentais e que nada mais fazem do que tentar proteger a saúde dos(as) trabalhadores(as) e promover uma melhoria progressiva de sua condição social e econômica, por meio de: limitação da jornada de trabalho; salário-mínimo e mecanismos jurídicos de majoração salarial (negociação coletiva e greve); períodos de descanso (férias, descanso semanal remunerado, intervalos durante e entre a jornada de trabalho); proteção contra o desemprego e os assédios de todo tipo etc.
Quando se diz que algum trabalhador que vende sua força de trabalho para sobreviver, no contexto da satisfação dos interesses daquele que se vale do resultado do trabalho prestado, não tem CLT, o que se está dizendo, concretamente, é que se pode negar direitos fundamentais a esta pessoa, em suma, que a Constituição Federal não se aplica a ela. Como se vê, é uma fala muito violenta, destinada àqueles e aquelas que foram historicamente excluídos.
Esta proposição gera apenas dois efeitos concretos: rebaixamento da condição humana desse(a) trabalhador(a) e a potencialização do aumento da taxa de lucro de quem explora a força de trabalho alheia.
A precarização não melhora a economia do país. Pelo contrário, gera retração, pois promove, no cômputo geral, maior acumulação da riqueza e, por consequência, mais desigualdade social. Além disso, provoca maior custo social, em virtude do adoecimento e mortes no trabalho, sem aumentar o número de empregos, até porque os eventuais empregos gerados não são, em verdade, empregos, mas subempregos.
Ademais, a existência, no mundo do trabalho, de trabalhadores e trabalhadoras que possuem uma posição jurídica rebaixada de proteção social faz com que este nível rebaixado seja visto como o patamar de comparação, gerando a percepção de que as trabalhadoras e trabalhadores aos quais se direcionam a totalidade dos direitos trabalhistas sejam tidos como privilegiados.
Assim, o que era para ser visto como patamar mínimo de civilização, como foi obrigatório reconhecer ao longo de anos de aprendizados e de lutas, passa a ser o máximo. O(a) trabalhador(a) que tem “CLT”, portanto, seria um ser privilegiado, ainda mais se consideradas as milhares (milhões) de pessoas que sequer conseguem vender sua força de trabalho, os desempregados.
Esta total inversão de valores proporciona que os Marinhos entendam que conferir uma cesta com alguns direitos para quem antes não trabalhava ou trabalhava sem direito algum seja um ato de progressão ou até mesmo, como dito nos considerandos da “reforma” trabalhista, uma efetivação de “justiça social”.
De fato, o que se promove, como dito, é o rebaixamento daquilo que se entende por proteção jurídica mínima nas relações de trabalho e que serve, inclusive, para proteger o mercado de sua tendência autofágica.
O desafio histórico concreto sempre foi o de tornar efetivos os direitos trabalhistas, dadas recorrentes tentativas de fuga promovidas pelo empresariado neste sentido, favorecida, nos países periféricos, pela desigual divisão internacional da produção e de capitais. Daí porque, no plano da busca da efetividade, se compreendeu a essencialidade de se atribuir aos direitos trabalhistas, por serem direitos fundamentais, a qualidade de direitos irrenunciáveis.
Cumpre notar, a propósito, que a maior parte dos milhões de trabalhadores e trabalhadoras que vendem a sua força de trabalho na dita “informalidade”, ou seja, sem o reconhecimento da condição jurídica de empregados e empregadas, são, de fato, vítimas de uma coação econômica, que os obriga a aceitar trabalho nas condições oferecidas e que não vê possibilidade de reação quando verifica que o próprio Estado se apresenta como estimulador ou legitimador desta situação e que as organizações sindicais estão também sob mira e preocupadas com a própria existência e com as lutas contra a redução de direitos de seus associados (aqueles “privilegiados” que tem “CLT”).
Aliás, um dos mecanismos de consolidação da retração de direitos trabalhistas é o de esfacelar a classe trabalhadora, tanto dividindo-a entre “privilegiados”, terceirizados e informais, quanto atribuindo-lhes a aparência de um “empreendedor”; o que se verifica, inclusive, nos dois polos da pirâmide econômica das relações de trabalho, isto é, seja com os “altos empregados”, que passam pelo processo de “pejotização”, seja com os mais precários, que são convencidos de que são empreenderemos de si mesmos, ou Micro Empreendedores Individuais (MEI), ainda que, na realidade, seu trabalho esteja sendo realizado, em rede, para o desenvolvimento de grandes negócios capitalistas.
Assim, quando se diz que o trabalho prestado por intermédio de aplicativos é uma forma moderna de relação de trabalho, diversa daquela para a qual se voltou a CLT, e que os trabalhadores que prestam serviços a empresas que exploram atividade econômica por meio de plataformas digitais não querem direitos trabalhistas, comete-se vários equívocos, a saber:
1) desconsidera-se o dado histórico da construção dos direitos trabalhistas que está relacionado, isto sim, à limitação da exploração econômica do ser humano, nas suas mais variadas formas;
2) rompe-se o reconhecimento da condição mínima garantida aos trabalhadores e às trabalhadoras;
3) cria-se obstáculo para a efetivação de direitos humanos nas relações de trabalho;
4) replica-se, de forma mais restrita, o interesse das empresas de aplicativos, as quais, assim, poderão explorar o trabalho em patamar abaixo do mínimo existencial sem redução de riscos, dada a chancela conferida pelo Estado para tanto;
5) estimula-se e institucionaliza-se “nova” divisão na classe trabalhadora, criando mais um obstáculo para a formação da consciência de classe, que é essencial para as lutas sociais;
6) fragiliza-se a posição jurídica e política da totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras;
7) incorpora-se a falsa argumentação de que a forma de exploração do trabalho é que determina o conteúdo dos direitos, quando o que de fato importa é se está, ou não, diante de uma exploração da força de trabalho para a satisfação de interesse alheio (e relação de emprego é apenas o nome jurídico que se dá a esta situação – não um “palavrão” ou “ofensa moral”);
8) promove-se um autêntico dano social, visto que a sociedade como um todo é que terá que arcar com as consequências sociais e econômicas, bem como os traumas humanos que decorrem dos acidentes e doenças ocasionadas pela exploração sem limite do trabalho alheio, enquanto que aquele que se beneficia economicamente da situação sequer é induzido a compensar a coletividade por meio de impostos e contribuições sociais;
9) e faz-se tudo isso por meio da utilização da retórica clássica do setor empresarial no contexto neoliberal de que a redução de direitos sociais é uma aspiração dos(as) próprios(as) trabalhadores(as), que passariam a entender que a culpa de seus males é o custo que os direitos sociais geram para as empresas.
É importante, sobretudo, compreender que a precarização das condições de trabalho não interessa às empresas que detêm o monopólio tecnológico unicamente pelos seus efeitos mais imediatos da redução de custos e do abalo da consciência de classe, na medida em que trabalhadores e trabalhadoras são induzidos a lutarem uns contra os outros pelos poucos e cada vez mais mal remunerados postos de trabalho. Interessa-lhes, dentro de sua concepção ideológica, sobretudo, disseminar a prática das formas de exploração do trabalho que fragilizam como um todo a classe trabalhadora e que promovam o desmonte do projeto econômico-social e humano proposto pelo Estado Social. A “uberização” é um processo assumido de rebaixamento da condição de vida dos(as) trabalhadores(as), buscando reduzir ou até eliminar o potencial de organização e de luta da classe trabalhadora, além de se constituir, por consequência, uma afronta direta ao Estado Social e não apenas mais uma estratégia para majorar taxa de lucro, o que, neste contexto, pode até ser conduzido ao segundo plano, dados os objetivos maiores de dominação e de apropriação dos poderes político e econômico.
Tragicamente, todo este retrocesso se encontra na fala do novo Ministro do Trabalho e este, com todos os problemas que a regulação das relações de trabalho envolvem, só conseguiu, de forma mais específica, expressar preocupação em limitar a retirada do saldo do FGTS. Imagine só!
A esperança que se tem, porque é muito cedo para ceticismos, é que os(as) demais Ministros e Ministras preocupados(as) com as pautas sociais e humanas, percebendo que a política que fortalece o capital e fragiliza a classe trabalhadora ameaça a eficácia de todas as medidas de proteção social e de efetivação dos Direitos Humanos, incluindo, sobretudo, as questões ambientais e aquelas relacionadas às pautas da diversidade e da igualdade de gênero e de raça, reajam e tragam a visão de intersccionalidade que o tema trabalho exige.
Afinal, não é possível, em nome da “governabilidade”, fatiar a condição humana!
Esta é uma lição que já se deveria ter aprendido e que se espera seja, enfim, reproduzida na realidade concreta, notadamente nas relações de trabalho, sem medo da reação do mercado e de seu aparato midiático, auto-pronunciado arauto da democracia e da ciência. Isto porque, considerando a experiência histórica nacional, marcada pela naturalização das desigualdades e da injustiça social, estes segmentos não terão receio algum em utilizar fórmulas terraplanistas para chamar o governo de “comunista” ou mesmo estimular, apoiar e até financiar golpes políticos, diante de qualquer avanço econômico, social e humano aos trabalhadores e trabalhadoras.
Daí porque junto com a firmeza de propósitos do governo é fundamental que se unam as reais forças sociais, populares e democráticas na defesa da superação de todas as nossas chagas sociais.
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Fonte: Jorge Luiz Souto Maior
Data original da publicação: 05/01/2023