Opinião – “MAS QUE CALOR, Ô-Ô-Ô, Ô-Ô-Ô”

Fonte: Felipe Neitzke | Jornal A Hora

Por Bruno Chapadeiro | Multiplicadores de Vigilância em Saúde do Trabalhador

O relatório Lancet de 2018 com a Contagem Regressiva sobre Saúde e Mudanças Climáticas (Watts et al., 2018) traz dados inequívocos: em 2017, ocorreram 157 milhões de eventos adicionais de ondas de calor (um evento de exposição sendo uma onda de calor sofrida por uma pessoa), em relação ao período de base 1986-2005, 18 milhões a mais que em 2016. O ano de 2023 foi tido como o mais quente do planeta desde 1850 em que a temperatura média global foi de 14,98 °C, quase 1,5 °C superior à do período pré-industrial (Pivetta, 2024). Refletindose no relatório Lancet 2023, Romanello et al. estimaram a perda de renda e a insegurança alimentarrelacionadas a ondas de calor e secas. Em 2022 podem ter levado a perdas de renda de até US$ 863 bilhões. Em 2021, estimou-se que 127 milhões de pessoas a mais tenham experimentado insegurança alimentar moderada ou grave, pois a agricultura sofreu grandes estragos. Globalmente, a exposição a ondas de calor duplicou no mundo e o número de mortes pode aumentar 370% até 2050, com perdas resultantes em produtividade ou incapacidade de trabalhar. A exploração seminal da tensão racial, do diretor Spike Lee, no filme “Faça a coisa certa” (1989), se passa durante o dia mais quente do ano, quando temperaturas escaldantes provocam reações violentas entre as personagens do filme. De fato, nossa própria linguagem captura a confluência de calor e emoção – quando irritados, ficamos “quentes”; com raiva, nosso “sangue ferve”; e quando algo chega a ser demais, temos que “deixar evaporar”. Sem spoilers, o calor e a desigualdade racial e ambiental no filme mostram do que os comportamentos humanos são capazes sob altas temperaturas. O estudo de Burke et al. (2018) correlaciona o aumento de 1°C, na temperatura média nos EUA e no México, com o aumento de 1% nos suicídios – traduzindo-se em milhares de mortes adicionais a cada ano. A publicação projeta que, se as temperaturas continuarem a subir na medida que os cientistas do clima preveem, o aumento resultante será suficiente para acabar com os esforços combinados de programas de prevenção ao suicídio e políticas de controle de armas nos Estados Unidos. Já a pesquisa de Wahid et al. (2023) mostra que mesmo um aumento de 1°C, na temperatura média ambiental, contribui para uma maior probabilidade de depressão e ansiedade. Doenças respiratórias e cardiovasculares também tendem a se manifestar com mais contundência em tais circunstâncias

Tigchelaar et al. (2020) descobriram que o trabalhador agrícola dos EUA já suporta níveis médios perigosos de calor 21 dias do ano. Até 2050, esse número pode saltar para 39 e 62 dias até o final do século. Em Eldorado*, a Portaria 1.359/2019 deixou de considerar como insalubres as atividades a céu aberto impactadas pelo calor. Em contrapartida, a Nota Técnica 18/2023-SVSA/MS, do Ministério da Saúde, reitera que a exposição ao calor, sem proteção e hidratação adequadas, e sujeita a outras condições prejudiciais (tempo de exposição prolongado, vestimentas impróprias) pode comprometer a segurança térmica de trabalhadores. Monteiro dos Santos et al. (2024) evidenciam maior mortalidade relacionada ao calor em pessoas de baixo nível educacional, negras e pardas, idosas e mulheres. Destacam que o fortalecimento da atenção primária à saúde, aliada à redução das desigualdades socioeconômicas, raciais e de gênero, representa um passo crucial para reduzir as mortes relacionadas ao calor no Brasil. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, quase 1 em cada 3 mortes por câncer de pele (não melanoma) no mundo é causada por trabalhar sob o sol. O que representa cerca de 19 mil vidas perdidas por ano. Contudo, enquanto nosso futuro ambiental é sacrificado no altar do mercado, os dados paleoclimáticos ensinam que o planeta em que vivemos hoje já não admite mais a meta de 2°C. Como lembra Petteri Taalas, Secretário-Geral da Organização Meteorológica Mundial: “A última vez que a Terra apresentou concentrações atmosféricas de CO2 comparáveis às atuais foi há 3 a 5 milhões de anos. Nessa época, a temperatura estava 2°C a 3°C [acima do período pré-industrial] e o nível do mar estava 10 a 20 metros mais alto que hoje”. O MET Office, agência britânica do clima, afirma que o decênio 2014-2023 será o mais quente dos últimos 150 anos (BBC, 2019). As emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) são magnificadas pelo agronegócio, que desmata e queima as florestas tropicais numa escala jamais vista: 3,61 milhões de km2 de cobertura arbórea foram suprimidos do planeta entre 2001 e 2018, segundo dados do Global Forest Watch. Marques (2021) diz que é preciso admitir sem mais delongas que, nos marcos do atual sistema político-econômico global, a meta de não ultrapassar um aquecimento médio global de 2°C acima do período industrial é inatingível. O autor ressalta que um mundo 2°C mais quente que o período pré-industrial implica mais de 2 bilhões de pessoas submetidas a ondas de calor extremo; cerca de 300 milhões de pessoas a mais sujeitas a estresse hídrico; outras tantas a mais sofrendo quebras de safras e quase 600 milhões de pessoas a mais vivendo em habitats degradados. Relatório da Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres alerta que “entre 1998 e 2017, desastres geofísicos relacionados ao clima mataram 1,3 milhão de pessoas e deixaram 4,4 bilhões de pessoas feridas, sem casa, deslocadas ou necessitadas de assistência de emergência. (…) 91% de todos esses desastres foram causados por inundações, tempestades, secas, ondas de calor e outros eventos meteorológicos extremos”. Passou da hora de encararmos os ditos “desastres ambientais” como problemas subordinados ao racismo ambiental e, sobretudo, à apropriação da riqueza do trabalho. Nos idos de 2011, o então presidente venezuelano Hugo Chavez foi motivo de chacota por parte de uma iletrada imprensa internacional ao hipotetizar que o desértico, inóspito e inabitável planeta Marte fosse como tal devido ao resultado de uma possível intensa exploração capitalista sofrida como a nossa. Tal sentença, para aqueles(as) que conseguem interpretar textos, nos soa agora em 2024 deveras profética. Terá o “planeta água” o mesmo destino do “planeta vermelho”? Vermelho, menos de comunismo ou vergonha, e mais de óxido de ferro mesmo. O mesmo contido nas fumaças que uma CSN [Companhia Siderúrgica Nacional] ou uma Vale SA nos fazem inalar constantemente.

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Referência: Marques, L. (2021). O colapso socioambiental não é um evento, é o processo em curso. In: Alves, G; Vizzaccaro-Amaral, A.L. Trabalho, saúde e barbárie social: pandemia, colapso ecológico e desenvolvimento humano. Marília-SP: Projeto Editorial Práxis, p.75-114.

Nota: *Referente ao “Brasil fictício” do filme “Terra em Transe” de Glauber Rocha

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Por Bruno Chapadeiro | Multiplicadores de Vigilância em Saúde do Trabalhador
Data original de publicação: 27/02/2024

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