Breque no despotismo algorítmico: uberização, trabalho sob demanda e insubordinação

Imagem: Rovena Rosa | Agência Brasil

Por Ludmila Abílio | Blog da Boitempo

Eu, você e outro motoboy estamos trabalhando lá, são 8 pedidos para conseguir o bônus. Eu e você fizemos 7, o outro motoboy fez 4. Para quem eles vão jogar a entrega? Para o outro motoboy. (Mauro, motoboy há quinze anos)

A redução do motoboy a entregador sob demanda

Neste mês de julho os motoboys e os que a eles se juntam agora na categoria de entregadores alcançaram um feito histórico. Quem é motoboy há mais de seis anos sabe que sua profissão vem sendo dilacerada. Em 2012, este profissional já lidava com o viver arriscado e cheio de tensões, sob o peso das mortes e fraturas cotidianas que compõem a normalidade do cenário urbano. A discriminação era e segue sendo vivida no elevador de carga, na espera forçada na recepção, no campo de guerra do tráfego urbano. “O mesmo cara que reclama do chute no retrovisor é o que me xinga quando a pizza chega fria.” Esta era a síntese de Afrânio, que na época da entrevista completava 32 anos como motoboy e 51 de vida. “O cara esquece a chave em casa e lá vou eu buscar na chuva… ‘Pô, cê demorou hein, soubesse eu mesmo tinha ido buscar…’ ‘Amigo, sua chave não vale mais do que a minha vida’.1

Em 2012, num pequeno universo de pesquisa de 45 entrevistados na cidade de São Paulo, 11% tinham rendimento inferior a dois salários mínimos. Ou seja, 89% tinham remuneração de dois salários mínimos ou mais, sendo que 40% auferiam remuneração acima de três salários mínimos e 9% acima de cinco salários mínimos. Os caminhos da uberização levam ao rebaixamento do valor da força de trabalho e à manutenção ou aumento de longas jornadas de trabalho. Em pesquisa coletiva realizada em 2020 no âmbito da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) 2, do universo de 270 entregadores pelo país, verificou-se que antes da pandemia 47,7% recebiam até dois salários mínimos. Na pandemia fica ainda pior. Enquanto as empresas-aplicativo veem o número de entregas crescer exponencialmente, a queda na remuneração dos trabalhadores se intensifica: 73,3% ganham até dois salários mínimos, sendo que 34,4% têm remuneração de até um salário mínimo. Hoje, Mauro, entrevistado em 2018, desistiu de ser motoboy para se tornar motorista registrado de uma empresa. Naquele ano, com 39 anos e 15 de profissão, narrava os elementos da uberização em ato:

“Antigamente você tinha meta, eu particularmente e vários amigos meus, tinha meta de R$300 por dia…’Eu vou fazer, tipo, até as 6h, no máximo até 7h’… você conseguia… hoje não  então hoje a empresa está praticamente obrigando você ficar até meia-noite, 11 horas, na rua.  Antes tinha muita entrega, não tinha tanto stress, não era tão nervoso, hoje em dia você cansa mais andando de moto, gastando sem ganhar nada do que trabalhando. Por isso que eu falo, nesse último ano agora, pelo amor de Deus, o stress, nervoso, cansaço, as dores físicas nas costas, mental, piorou, porque você está andando mais de moto do que fazendo serviço, porque você tem que ficar rodando”.

Hoje, nas atuais disputas em torno da uberização, cogita-se a legalização do pagamento abaixo de um salário mínimo por mês para estes trabalhadores e – veja que mágica –, sem o correspondente de uma jornada de trabalho definida.

O dilaceramento da profissão se refere à extensão do tempo de trabalho, ao rebaixamento do valor do trabalho, mas não apenas. O Breque dos apps deixa evidente em plena pandemia a condição do trabalhador agora reduzido a trabalhador just in time3. Ser um “trabalhador sob demanda” é vagar pela cidade esperando o aplicativo tocar. É dormir na praça com a cabeça dentro da bag, porque a demanda caiu e não dá para pedalar 30 km para casa e voltar mais tarde. É sofrer de ansiedade e depressão por ficar 24 horas conectado à espera da microtarefa que pode vir de qualquer lugar do mundo4.

A uberização nomeia um processo de informalização do trabalho que corre junto com práticas voltadas à monopolização dos setores de atuação das empresas-aplicativo. Trata-se, por um lado, de centralizar o controle sobre a distribuição do trabalho, o que, no caso do delivery de alimentos, vem subordinando não só os entregadores, mas restaurantes e outros estabelecimentos5. Por outro, vemos a formação da multidão de trabalhadores informais. Desprovidos de qualquer direito associado a seu trabalho, arcam com os riscos e custos de sua atividade. O viver do trabalhador just in time uberizado é feito de uma total ausência de garantias, inclusive sobre sua própria remuneração ou tempo de trabalho. Ele inicia o dia sem saber quanto terá de trabalhar para alcançar o ganho necessário. Terá permanentemente de traçar estratégias que, entretanto, estarão sempre subordinadas ao controle e definições da empresa. Nessa condição, o trabalhador está disponível ao trabalho, mas só é utilizado quando necessário.

O que a uberização consolida é o sonho da redução do trabalhador a força de trabalho. Ser reduzido a força de trabalho é ser utilizado da forma mais eficiente possível, na maior intensidade possível, no tempo que for necessário, obtendo remuneração apenas pelo tempo em que efetivamente se produz. Todo o mais fica por conta do trabalhador, no autogerenciamento do que, distante da figura do empreendedorismo, são nada mais do que estratégias de sobrevivência6.

O igualamento do tempo de trabalho a tempo de produção não é uma novidade, é elemento central que move o conflito entre capital e trabalho. A novidade reside nos meios técnico-políticos de mapeamento e controle do processo de trabalho7, que possibilitam a realização perfeita ou quase-perfeita, programada, racionalizada e altamente controlada dessa equalização. A redução do tempo de trabalho a tempo de produção opera sobre centenas de milhares de trabalhadores, de forma centralizada e, como veremos, despótica. Essa batalha é catalisada pelo gerenciamento algorítmico, mas atravessa todo o mundo do trabalho, e é sempre política. As minúcias da reforma trabalhista que o digam8. Hoje, segundo a legislação brasileira, o tempo que o trabalhador leva da porta da fábrica até seu posto de trabalho não é mais tempo de trabalho – não é contabilizado como parte de sua jornada, não é tempo remunerado – afinal, ele ainda não está produzindo. O mesmo ocorre nos vestiários das empresas: enquanto coloca o uniforme, o trabalhador legalmente ainda não é força de trabalho. A figura do trabalho intermitente reconfigura em profundidade a definição de trabalho formal. O trabalhador just in time celetista pode ser então convocado ao trabalho apenas quando necessário, pode legalmente receber menos que um salário mínimo, trabalhando no tempo da demanda, sem ter nada garantido. Ou seja, a informalização do trabalho por dentro da CLT já está bem consolidada.

Atualmente corremos o sério e imediato risco de ver uma refinada legalização da equalização do tempo de trabalho a tempo de produção, agora potencializada pelo gerenciamento algorítmico do trabalho. Como resposta ao movimento dos entregadores, brotam dezenas de projetos de lei, a serem votados em regime de urgência. Dentre eles, aparece a possibilidade – diga-se de passagem, apoiada mais ou menos explicitamente por parte da esquerda – da legalização do trabalho sob demanda: o PL 3728/2020, de Tábata Amaral (PDT), com pedido de coautoria de Fernanda Melchionna (PSOL). Apesar dos benefícios que promete, o cerne desse regime de trabalho está na afirmação clara de que o tempo de trabalho passa a ser efetivamente o tempo de produção. Em outras palavras, todo o tempo em que estiver online sem produzir, à disposição da empresa, fica por conta do trabalhador. Todo o tempo que levar para se deslocar até o ponto de origem da entrega e os custos relativos ficam por conta do trabalhador.

A questão se agrava quando, para o tempo efetivo de produção, estabelece-se o valor mínimo por hora de trabalho, correspondente ao valor-hora do salário mínimo. Legisla-se sobre o valor da hora de trabalho, que hoje poderia então legalmente ter o valor de aproximadamente cinco reais, sem olhar para a duração da jornada de trabalho, que inclui todo o tempo não remunerado em que o trabalhador está à disposição. Garante-se a legalidade do valor mínimo da hora de trabalho, mas não se garante o valor mínimo de um dia de trabalho. Legaliza-se então a ausência de qualquer limite sobre a jornada de trabalho, que tem de ser pensada em sua relação com a ausência de qualquer garantia sobre a remuneração diária. Na prática: legaliza-se que o trabalhador passe 12 horas por dia à disposição da empresa, sete dias por semana, seja remunerado apenas pelo tempo em que efetivamente fez uma entrega, e ganhe menos que um salário mínimo por mês.

A uberização é uma forma de gerenciamento, controle e organização do trabalho9 que hoje atravessa o mundo do trabalho de lado a lado; apresenta-se como o presente de algumas ocupações, mas é também uma tendência global que vai reconfigurando uma série de profissões. As iniciativas pela regulação têm de ter clareza se estarão escancarando ou não as porteiras da uberização.

Despotismo algorítmico: trabalhar no escuro dando o melhor de si

Estar disponível sem ser utilizado não significa ser desnecessário. Cada menino negro dormindo na praça com a cabeça dentro de uma bag é um elemento mapeado, um ponto que integra a cartografia das dezenas de milhares de pontos distribuídos pela cidade. Pontos que deverão ser ligados da forma mais eficiente – na relação tempo-espaço – à demanda. O gerenciamento algorítmico hoje vigia-gerencia cada indivíduo e ao mesmo tempo o fluxo da multidão. Os arranjos cotidianos do trabalhador – as estratégias cotidianas de sobrevivência – são também incorporadas como dados, elementos da gestão, geram novos comandos, que, do lado, do trabalhador, fomentam novas estratégias. Nessa desigual retroalimentação permanente, as empresas detêm todas as regras do trabalho.

Algoritmos não são neutros. A distribuição algorítmica do trabalho não é uma roleta aleatória que gira sem mãos10. O gerenciamento algorítmico é a possibilidade de traduzir modos de vida, relações sociais, trajetórias e desigualdades em dados administráveis que produzirão e reproduzirão desigualdades e mecanismos de exploração do trabalho. É a possibilidade de designar corridas para a favela para o motorista negro e para o centro de São Paulo para o motorista branco11. É a possibilidade de ofertar uma bonificação ao motoboy-pai-de-família quando anoitece e ele estava indo para casa. É a possibilidade de engajar o trabalhador disponibilizando mais corridas hoje e quase nenhuma amanhã. Trata-se de um controle que se exerce plenamente e que se assenta na total falta de garantias. O trabalhador se engaja no trabalho, passa a ter nessa atividade sua principal fonte de renda. Mas, enquanto inserido nessa relação, toda a possibilidade de execução de seu trabalho está nas mãos da empresa. Criam-se mecanismos de avaliação, pontuação e bonificação que, em realidade, materializam esse controle despótico que define quem pode trabalhar, quando e por qual valor. As empresas se apresentam como mediadoras entre oferta e procura, mas na verdade são, elas próprias, a mão invisível do mercado. Preço dinâmico, aumento do valor do trabalho quando chove, rebaixamento do valor quando há muitos trabalhadores disponíveis, organização da distribuição do trabalhador no espaço e no tempo, definição do tamanho do contingente de trabalhadores, constante rebaixamento do valor da hora de trabalho. E não se trata apenas de definir as regras do jogo, mas como o jogo termina. Resumindo: o mesmo sistema que te oferece a bonificação quando você alcançar a nona corrida se arriscando na chuva é o que define se a nona corrida irá para você.

Portanto, inserido em uma relação despótica, o trabalhador trabalha sem saber como, por que e quando receberá o trabalho; sem saber como é definido o valor de seu trabalho. Está submetido a regras onipresentes mas ao mesmo tempo obscuras, cambiantes, não negociáveis. Vive em um exercício de adivinhação permanente12, arcando com riscos e custos, sem ter mínimas garantias sobre tempo de trabalho ou remuneração. Brecar os apps é enfrentar essa novidade de frente, sem ter ainda bem consolidado quais podem ser os instrumentos de resistência, que vão se fazendo na própria luta e em seus desdobramentos. A multidão uberizada se organizou horizontalizada e unida por uma pauta: aumento do valor da hora de trabalho (expressa no aumento da taxa por km rodado), aumento do valor mínimo por corrida, fim dos bloqueios indevidos, auxilio pandemia (equipamentos de proteção e licença), mudanças no sistema de pontuação de algumas empresas. Distante das formas esperadas de regulação, mirou e apertou o freio de mão no despotismo algorítmico. Mas os próprios trabalhadores sabem do desafio que enfrentam: um novo tipo de subordinação que se reorganiza, se adapta, se molda, de forma pouco localizável ou controlável. Como diz um motoboy engajado no breque, “os caras robotizaram a gente”. Daí que o terreno é arenoso, e os que hoje abraçam a regulação têm de ter clareza da areia movediça do despotismo algorítmico que corre junto com a monopolização das empresas. Como diz o mesmo motoboy, “se a lei diz lá que não pode me bloquear porque não aceitei corrida, beleza, o aplicativo oficialmente não me bloqueia, só que também não me manda mais corrida”. (…)”

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Fonte: Blog da Boitempo

Data original da publicação: 30/07/2020

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