Em Brasília, a “capital do carro”, trabalhadores sofrem com má qualidade do transporte público

Imagem: Rawpixel

Por Ana Laura Pinheiro, Isadora Martins, Millena Campello | Agência Pública

“Apesar de os primeiros casos de Covid-19 na capital federal terem sido confirmados no Plano Piloto, hoje o epicentro encontra-se na periferia. A região administrativa com maior número de casos e de mortes é Ceilândia, que fica, em média, a 30 quilômetros do centro de Brasília. Uma das causas apontadas por especialistas para o aumento do número de infectados na região é o transporte público. “Já está mais do que discutido que a transmissão da Covid-19 ocorre por aglomeração, que é exatamente o que transporte coletivo faz”, afirma a infectologista Eliana Bicudo. 

Não por acaso, mais da metade da população (51,7%) de Ceilândia, incluindo Sol Nascente e Pôr do Sol, usa transporte público para trabalhar, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal (PDAD/DF-2018). “Enquanto a classe média se desloca de carro sozinha e com máscara, a população de trabalhadores da periferia simplesmente tem que se submeter à jornada no transporte público para o Plano Piloto”, explica Breitner Luiz Tavares, doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador de saúde coletiva. (…)

“Imagina o porteiro de um prédio que mora em Santa Maria e vem todos os dias trabalhar na Asa Sul. Ele tem contato com prestadores de serviços e com moradores diariamente, aí eventualmente acaba contraindo o vírus, volta para sua cidade e dissemina a doença entre a comunidade”, exemplifica. 

Especialistas concordam que outro fator decisivo para a propagação do vírus na periferia é o alto índice populacional. Ceilândia, por exemplo, tem 129 habitantes por hectare, enquanto o Plano Piloto tem 20. Isso de acordo com a pesquisa Densidades Urbanas nas Regiões Administrativas, de 2018. “Na periferia são comuns residências multifamiliares. Ou seja, muitas famílias ocupando o mesmo imóvel. Então a aglomeração é quase inevitável”, afirma Tavares. 

Mestra e doutora em infectologia pela UnB, Eliana Bicudo tem observado um padrão entre pacientes que moram na periferia. “Normalmente, alguém pega a doença e todos da casa, em um intervalo de sete a dez dias, também adquirem”, afirma. “No Plano Piloto, há casos em que a filha pegou, ficou trancada no quarto e, no máximo, mais um integrante da família adquiriu, ou até nenhum”, compara. “Isso é questão de estrutura física e do número de habitantes por metro quadrado.”

Mobilidade na pandemia

Em março, após o decreto que determinou o fechamento do comércio, as empresas de transporte público de Brasília reduziram a frota por causa da diminuição de passageiros. Para Tavares, essa foi uma atitude irresponsável, pois contribuiu para aglomeração nos ônibus que ainda estavam operando. “Outros países, como Cingapura, adotaram um limite máximo de pessoas por ônibus. À medida que mais pessoas iam trabalhar, eles iam aumentando a frota”, compara.

Dois meses depois, em maio, embora a pandemia não estivesse controlada, o comércio reabriu e, de acordo com a Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF (Semob), as companhias de ônibus passaram a operar com 100% da frota. Além disso, os ônibus escolares foram remanejados para ajudar outras linhas nos horários de pico, pois as aulas estavam suspensas.

Em nota, a Semob afirmou: “As operadoras estão higienizando as partes internas dos ônibus, tais como corrimãos, barras de apoio de sustentação, roletas, apoios de porta, antes e após cada viagem. Também foi determinada a realização das viagens com as janelas abertas”. Contudo, isso não é o que os passageiros acompanham no dia a dia. 

Pastor Willy Gonzales Taco, mestre em transportes urbanos pela UnB e doutor em engenharia de transportes pela USP, acredita que o principal problema é a falta de fiscalização. “Determinar limpeza e segurança é uma coisa. Agora, a viabilidade disso para as empresas é outro assunto. A implementação dessas medidas na rodoviária, por exemplo, foi um pouco lenta. Não teve muito encaminhamento.”

Alessandra Borges Silva, de 48 anos, faturista de convênio, conhece o transporte público de Brasília há 46 anos. Para ela, nem a redução de passageiros durante a pandemia melhorou a qualidade dos serviços de ônibus no DF. “Ainda há muita poluição sonora, lotação e pouca frequência”, reclama. Ela faz o possível para evitar esse tipo de transporte na pandemia, mas, como trabalha todos os dias longe de casa, essa não é uma opção. “Não me sinto segura. Os ônibus estão lotados, dependendo da linha e do horário, todas as cadeiras estão ocupadas e ainda tem pessoas em pé. Às vezes, a janela de ventilação do teto do ônibus não pode abrir porque está quebrada”, relata. A faturista, que trabalha no Sudoeste e mora em Samambaia, leva aproximadamente uma hora no trajeto. Às vezes, há demanda profissional externa e Alessandra tem que pegar outras linhas para chegar ao destino. 

Thiago Leonardo Distretti, de 18 anos, jovem-aprendiz, mora em Ceilândia e usa transporte público para sacar o benefício social do governo e visitar a família, que mora em Samambaia. Para ele, a limpeza dos ônibus é precária. “Sinceramente, eu acho que só são higienizados quando saem do terminal, ou seja, uma vez por dia. Isso não é o ideal”, lamenta. Ele testou positivo para a Covid-19 e, desde então, já não tem tanto medo de usar transporte público, pois acredita que as chances de se reinfectar são mínimas. 

Os problemas do transporte público da capital federal sempre existiram. A pandemia apenas evidenciou a segregação socioespacial promovida pelo arranjo da cidade e pela mobilidade ineficiente. “A pandemia só reforçou o quadro de desigualdade e de um desenvolvimento urbano centrado na ideia do carro, que acaba gerando uma série de impactos ambientais do ponto de vista da perda da qualidade de vida e de exposição ao risco”, explica o pesquisador Breitner Tavares. 

Capital planejada e ícone da arquitetura mundial, Brasília foi construída por “candangos” que dormiam nas cidades-satélites e se deslocavam diariamente para o centro. Hoje, 60 anos depois, essa realidade permanece. Esses locais ainda abrigam a maior parte dos trabalhadores. São 33 Regiões Administrativas (RAs), onde vivem 2,57 milhões de pessoas, que ficam em média a 30 quilômetros do Plano Piloto, a região que mais emprega no DF.

Uma distância que nem seria tão complicada para os trabalhadores se a maior cidade construída no século 20 não fosse também uma das dez piores do mundo em sistemas de transporte, segundo o instituto de pesquisa americano Expert Market. O que, para os trabalhadores, significa muito tempo perdido no deslocamento diário. 

De acordo com o estudo “Como anda meu ônibus”, elaborado pelo Instituto de Fiscalização e Controle (IFC) em parceria com o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), entre agosto de 2019 e janeiro de 2020 a maior parte dos entrevistados espera de 30 minutos a uma hora para embarcar no ônibus e avalia como ruim ou péssimo o tempo de espera e a pontualidade do veículo para chegar na parada. Quanto ao tempo de viagem, as avaliações com maior percentual de respostas foram “regular” e “péssimo”. Um problema que só se agravou com a pandemia. 

“Morar a 30 ou 40 quilômetros de distância não é tão problemático, porque você gastaria 15 minutos em um sistema eficiente. A questão fundamental é o tempo de deslocamento”, explica o doutor em sociologia urbana Benny Schvarsberg. Para ele, é necessário ajustar a quantidade de frota nos horários de pico, que são os mais importantes. “Nesse período até existe uma maior disponibilidade da frota, mas é pequena em razão da demanda. Então, é ineficaz.” (…)

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Fonte: Agência Pública

Data original da publicação: 10/09/2020

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