A inconstitucional tarifação das indenizações por dano extrapatrimonial nas relações de trabalho

Foto: Nelson Jr./ STF

Por Eunice Zanatta e Jurema Costa | Observatório Trabalhista do Supremo Tribunal Federal

Estão em tramite perante o Supremo Tribunal Federal as ADIs nºs 6.050, 6.069 e 6.082, nas quais é questionada a constitucionalidade do art. 223-A e dos §§ 1º e 2º do art. 223-G da CLT, introduzidos pela Lei nº 13.467/2017.

Na ADI 6.050, ajuizada pela ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas, busca-se a declaração de inconstitucionalidade dos incisos I, II, III e IV do § 1º do artigo 223-G da CLT, os quais estabelecem o salário contratual do ofendido como base de cálculo para a fixação do limite máximo da indenização a ser paga a título de dano extrapatrimonial, de acordo com a natureza da ofensa.

A Associação autora defende a impossibilidade de o preceito impugnado limitar a atuação do Poder Judiciário na fixação de indenizações por danos extrapatrimoniais, ao estabelecer os parâmetros a serem observados pelos julgadores. Afirma que a questão controvertida na referida ação é semelhante ao objeto da ADPF 130, na qual o STF decidiu que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição Federal, na medida em que a tarifação nela imposta não era compatível com o tratamento conferido à reparação do dano moral pelo texto constitucional, nos incisos V e X do seu artigo 5º.

Sustenta, ainda, que o dispositivo da CLT ora impugnado, além de impor uma tarifação ao dano extrapatrimonial, viola o princípio da isonomia, ao considerar que empregados que venham a sofrer a mesma ofensa percebam indenizações distintas, considerando apenas o valor do seu salário contratual, o que ofende o inciso XXVIII do artigo 7º da Constituição Federal.

A ANAMATRA requer, na hipótese de não ser reconhecida a inconstitucionalidade do dispositivo questionado, que a ele seja conferida interpretação à luz do texto constitucional, de modo que os limites nele estabelecidos não impeçam a fixação de indenização em montante superior.

A ADI nº 6.069, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB, e a ADI nº 6.082, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria – CNTI, questionam a constitucionalidade dos artigos 223-A e 223-G, §§ 1º e 2º, da CLT, ambos inseridos pela Lei nº 13.467.

O argumento central adotado em ambas as ações, para justificar a declaração de inconstitucionalidade dos aludidos preceitos, centra-se no fato de as disposições neles contidas violarem o dever constitucional de reparação integral do dano (art. 5º, V e X, da CF), o dispositivo que veda retrocesso dos direitos sociais trabalhistas, além de ferir a independência funcional dos magistrados (art. 93, IX, da CF) e os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).

O CFOAB sustenta que os mencionados artigos subverteram a base principiológica do Direito do Trabalho, ao fixarem, para o processo do trabalho, teto de indenização inexistente para o processo civil; ao inserirem o tabelamento da indenização, em flagrante afronta aos princípios da reparação integral do dano e da dignidade da pessoa humana, tal como dito acima; ao impedirem a correta valoração do dano pelo magistrado, interferindo no exercício da jurisdição e em seu livre convencimento motivado; e ao precificarem o dano sofrido pelo trabalhador de acordo com a remuneração por ele recebida.

O CFOAB alega, ainda, afronta ao princípio da isonomia, a qual é ilustrada a partir da tragédia ocorrida com o rompimento da barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho. Segundo o paralelo traçado pelo autor, no caso de as vítimas acionarem a Justiça do Trabalho, em razão de o vínculo decorrer da relação de trabalho, a indenização por dano extrapatrimonial submeter-se-á aos limites estabelecidos no § 1º do art. 223-G da CLT. Na hipótese, contudo, de as ações serem ajuizadas perante a Justiça Comum, a indenização não se submeterá a qualquer teto.

Afirma que o legislador, por meio da Lei nº 13.467/2017, afastou a incidência da legislação cível aos danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho, ao prever, no art. 223-A da CLT, a aplicação exclusiva dos dispositivos contidos no Título II-A da CLT. Defende que a CLT regulou a matéria de forma mais restritiva, na medida em que o que o rol previsto no artigo 223-C da CLT não assegura, para fins de indenização, todos os direitos fundamentais do trabalhador, o que não se coaduna com o texto constitucional.

O CNTI, por sua vez, consigna que, no caso de haver ofensa gravíssima à vida, saúde ou integridade física do trabalhador, o valor da compensação estará limitado a 50 vezes o seu último salário contratual, independentemente da necessidade da vítima, da gravidade da ofensa, das circunstâncias do caso e da capacidade econômica do ofensor, em contrariedade aos diversos dispositivos constitucionais que disciplinam a matéria (arts. 5º, V e X, e 7º, XXVIII, da CF).

Sustenta que a tarifação, inserida pela Lei nº 13.467/2017, ofende os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da não discriminação e da igualdade de tratamento, bem como a garantia de vedação ao retrocesso trabalhista, considerando que vítimas de um mesmo acidente de trabalho receberão tratamentos distintos para a reparação dos danos extrapatrimoniais por ela sofridos.

Em parecer apresentado na ADI nº 6.050, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela procedência do pedido, com a declaração de inconstitucionalidade do art. 223-G, § 1º, I, II, III e IV, da CLT e, por arrastamento, dos parágrafos 2º e 3º do art. 223-G e dos arts. 223-A e 223-C da CLT, todos introduzidos pela Lei nº 13.467/2017. A PGR, na oportunidade, reportou-se ao parecer apresentado na ADI 5.870, também ajuizada pela ANAMATRA, julgada extinta, sem resolução do mérito, por perda superveniente de objeto.

No aludido parecer, A PGR manifestou-se pela inconstitucionalidade da interpretação numerus clausus do rol de bens jurídicos extrajudiciais contido no art. 223-C da CLT, por permitir a “exclusão de tutela a direitos fundamentais não previstos no enunciado normativo”[1], mas garantidos tanto pela Constituição Federal quanto pelas normas internacionais de direitos humanos que integram o ordenamento jurídico nacional, por força do § 2º do art. 5º da Constituição Federal.

Opinou, ainda, pela declaração de inconstitucionalidade dos incisos I, II, III e IV do § 1º do artigo 223-G da CLT, sob o fundamento de que restringem a tutela do direito fundamental à incolumidade moral, ao estabelecerem limitações prévias e abstratas aos valores máximos a serem pagos a título de indenização por dano moral no âmbito trabalhista. Ressaltou que está consagrado no art. 5º, V e X, da Constituição Federal o princípio da indenizabilidade irrestrita do dano moral, de modo que a limitação estabelecida no dispositivo questionado refoge “ao campo de ação discricionária do legislador”.

Foi registrado, ainda, no parecer, que, por meio do art. 223-A da CLT, pretendeu o legislador impedir a aplicação, às relações de emprego, das normas previstas no Código Civil que disciplinam a responsabilidade civil, em especial o seu art. 944, do qual é possível extrair o princípio da reparação integral.

Percebe-se, pois, conforme registrado pela PGR, que esse tratamento distintivo e limitador da tutela dos direitos da personalidade decorre do simples fato de a vítima ser um trabalhador, em flagrante afronta aos dispositivos da Constituição Federal que reconhecem o valor social do trabalho e a relevância, na ordem social, da garantia ao meio ambiente de trabalho saudável, além de esvaziar o direito fundamental à indenização por acidente do trabalho (art. 7º, XXVIII da Constituição Federal).

Defendeu, de igual modo, e de forma acertada, que o § 1º do artigo 223-G afronta o princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF), bem como as garantias previstas nos arts. 1º, III (princípio da proteção à dignidade da pessoa humana), 5º, V e X, 6º, 7º, e 12 da Constituição Federal, ao definir como parâmetro indenizatório o salário contratual do empregado, de modo que, quanto maior o seu status remuneratório, maior será o limite indenizatório devido em razão de ofensa promovida pelo empregador.

Em sessão realizada no dia 27/10/2021, o Ministro Relator Gilmar Mendes votou no sentido de conhecer das ADIs e, no mérito, julgar parcialmente procedentes os pedidos nela formulados, estabelecendo que:

1) As redações conferidas aos art. 223-A e 223-B, da CLT, não excluem o direito à reparação por dano moral indireto ou dano em ricochete no âmbito das relações de trabalho, a ser apreciado nos termos da legislação civil; 2) Os critérios de quantificação de reparação por dano extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e § 1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade[2].

Na referida sessão, após o voto do Ministro Relator, o julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista dos autos formulado pelo Ministro Nunes Marques, estando, até a publicação do presente artigo, pendente de solução.

A matéria em exame é de grande relevância para a classe trabalhadora, uma vez que, como visto, os dispositivos questionados regulam as indenizações por dano extrapatrimonial provenientes das relações de trabalho. Por essa razão, inclusive, as Centrais Sindicais relacionaram as aludidas ações constitucionais em sua Agenda Jurídica para 2022, com o propósito de acompanhar a sua tramitação, bem como a atuação do Supremo Tribunal Federal no âmbito trabalhista.

A fim de evidenciar a magnitude do assunto tratado, como bem destacado pelo CFOAB em sua petição inicial, toma-se o caso do rompimento da barragem da Vale, na mina do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, em janeiro de 2019, como exemplo da ofensa à dignidade dos trabalhadores e da desigualdade do tratamento entre trabalhadores que foram vítimas do mesmo evento fatal.

Das 270 pessoas mortas no desastre e já identificadas, 258 eram trabalhadores que estavam a serviço da Vale. Dentre eles, mineradores, engenheiros, auxiliares administrativos, auxiliares de limpeza, administradores, médicos, motoristas. Esses profissionais tiveram suas vidas prematuramente arrastadas por toneladas de rejeitos de minérios no mesmo evento danoso, decorrente da mesma conduta da empresa. Caso sejam aplicados os dispositivos questionados nas ADIs nºs 6.050, 6.069 e 6.082, a reparação de um engenheiro será maior que a reparação de um auxiliar administrativo, apesar de terem falecido em virtude do rompimento da barragem da mina do Feijão.

Os danos morais experimentados pelas famílias dos trabalhadores mortos, em um mesmo evento danoso, deveriam ser indenizados em valores proporcionais à remuneração que recebiam em vida? A dor de cada vida perdida deve ser discriminada em razão do que era percebido a título de salário?

Não há compatibilidade material entre as normas constitucionais vigentes no ordenamento jurídico brasileiro e o uso do salário do trabalhador como parâmetro na fixação do valor da indenização por danos morais.

O sistema tarifário trazido pela reforma trabalhista viola o Princípio da Reparação Integral do Dano, fere a isonomia material entre pessoas que sofrem o mesmo dano, na medida em que são compensadas de maneiras distintas em decorrência de seus salários, além de desconsiderar que todos os homens são merecedores do mesmo tratamento digno.

Texto elaborado por Eunice Zanatta e Jurema Costa, com apoio da equipe do Observatório.

[1] Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5335465. Acesso em: 17.abr.2022. [2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5612680. Acesso em: 17.abr.2022.

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Fonte: Observatório da Reforma Trabalhista no STF

Data original de publicação: 21/04/2022

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