ADPF 828, prorrogação do “despejo zero” e o STF perante o mundo do trabalho

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por Douglas Mota e Renata Dutra | Observatório Trabalhista do STF

Em decisão proferida na última quarta-feira (30/03), o Min. Luiz Roberto Barroso prorrogou os efeitos da medida cautelar deferida na ADPF nº 828, estendo até o dia 30 de junho de 2022 as regras que restringem ações de remoção, despejos e reintegrações de posse durante a pandemia de coronavírus.

Ajuizada em colaboração com a campanha nacional “Despejo Zero”[1], a ADPF 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) pretende resguardar os direitos fundamentais à moradia, à saúde e à vida de famílias vulneráveis e ameaçadas de remoção de suas casas, em face do estado de calamidade pública deflagrado pela pandemia de SARS-COVID-19.

Em junho de 2021, o pedido liminar foi deferido pelo Relator, o Min. Barroso, por decisão que suspendeu aquelas ações que pudessem implicar no desalojamento de famílias de imóveis ocupados antes da pandemia, além de condicionar a desocupação de habitações consolidadas durante a pandemia à apresentação de um plano de realocação pelo Poder público.

Ainda em outubro passado, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.216/2021, que também suspendeu a tramitação de ações possessórias e de despejo até o dia 31/12/2021, além de determinar que, após aquela data, deverão ser realizadas inspeção judicial nos imóveis ocupados e audiência de mediação, com participação do Ministério Público e da Defensoria Pública.

Na nova decisão, o Min. Barroso observou que “os fundamentos que justificaram a concessão da primeira medida cautelar deferida em 03.06.2021 seguem presentes” e fez apelo ao poder legislativo, para que deliberasse sobre “meios que possam minimizar os impactos habitacionais e humanitários eventualmente decorrentes de reintegrações de posse após esgotado o prazo de prorrogação concedido”.

São mais de 132.290 famílias sob risco imediato de desalojamento

Decorridos mais de 02 anos do estado de calamidade provocado pela pandemia de coronavírus, a quantidade de famílias em situação de vulnerabilidade habitacional e, portanto, de alto risco sanitário não diminuiu.

De acordo com dados levantados pela campanha nacional “Despejo Zero”, foram identificadas ao menos 132.290 famílias sob risco despejo ou remoção imediata, caso não prorrogados os efeitos da cautelar deferida na ADPF nº 828[2].

Ao drama sanitário, social e econômico aprofundado pela pandemia – dados do IBGE apontam a existência de 12 milhões de desempregados, com taxa de subutilização de 24%[3] –, soma-se a ocorrência de tragédias ambientais, especialmente em áreas de assentamento precário, como as enchentes verificadas na Bahia em janeiro de 2022, que desabrigaram mais de 800 famílias.

É também o caso, para ilustrar, das mais de 200 famílias abrigadas na ocupação “Carlos Marighella”, do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas – MLB, em Salvador/BA: vítimas de ação de reintegração ajuizada após a pandemia, que se encontra suspensa aguardando a apresentação de plano de realocação pelo Estado da Bahia, as famílias permanecem sem uma resposta do poder público e sob risco de desalojamento, caso não prorrogada a medida cautelar.

Registram-se ainda casos de despejos promovidos contrariamente à decisão do STF, como a remoção violenta promovida pela Prefeitura de Vitória da Conquista – BA contra cerca de 80 famílias residentes no Acampamento Terra Nobre, em março deste ano.

De um lado, a falta de salário; do outro, o salário que não paga habitação

O crescimento vertiginoso do número de famílias desabrigadas durante a pandemia – dados do IPEA apontam a existência de 221.869 pessoas em situação de rua em março de 2020[4] – articulado à taxa crescente de desemprego e subutilização denuncia uma realidade ainda mais profunda, ligada à constituição histórica do sistema de proteção social ao trabalho no Brasil.

Por meio do conceito de “racismo fundiário”, a pesquisadora Tatiana Emília Dias Gomes (UFBA) denuncia como a Lei de Terras de 1850 (Lei nº 581/1850) distribuiu racialmente o direito à propriedade de terras no Brasil[5], com a exclusão de escravizadas/os, indígenas e outras pessoas que só tiveram acesso à terra pelo exercício do direito de posse.

Contrariamente a propostas como a de André Rebouças (1838-1898), engenheiro abolicionista negro que defendia a cessão de terras devolutas desocupadas para o cultivo de libertos no pós-abolição[6], as medidas de embranquecimento vieram consolidar a inserção da população negra numa “franja marginal” ao sistema de trabalho assalariado, como aponta Clóvis Moura[7].

Embora resguardado o direito social à moradia no texto constitucional (art. 6º da CR/88), observa-se, pelos termos em que se delineia tal direito, que o Constituinte se limitou a assegurar o acesso aos direitos sociais, incluída a habitação, por meio do direito ao salário (art. 7º, inc. IV, da CR/88), remanescendo sem acesso à plena proteção social a massa de trabalhadoras/es excluídas/os de uma relação de emprego formal.

Ao mesmo tempo, dados do DIEESE apontam a discrepância entre o salário-mínimo nominal e aquele necessário para a satisfação das necessidades básicas dos trabalhadores, inclusive a moradia. Com base na pesquisa nacional de cestas básicas e alimentos, o DIEESE estima que o valor necessário, em março de 2022, seria o de R$6.012,00, mais de 5 vezes superior ao valor vigente[8].

E o que a reforma trabalhista tem a ver com isso?

O Observatório Trabalhista do STF, para além de considerar o papel da Corte Constitucional em relação à reforma trabalhista de 2017 – considerados os seus antecedentes e o seus desdobramentos –, se debruça sobre esse tema, tendo em vista que o direito à moradia, enquanto direito social, insere-se no conjunto de proteções jurídicas dedicadas à classe-que-vive-do-trabalho, no intuito de atenuar os efeitos da questão social.

Como visto, uma vez que o direito de morar não foi vinculado, historicamente, a um direito à ocupação dos territórios de forma equânime, a questão remonta ao salário e sofre os impactos da retração da renda decorrente do trabalho, do desemprego e, também, da precarização do trabalho, elementos que tem sido recorrentes nas análises do mercado de trabalho nos últimos 3 anos[9].

Assim, ao julgar uma demanda sobre despejos, o STF está necessariamente a lidar, senão com os termos e fundamentos da reforma trabalhista e dos atuais contornos da regulação do trabalho no país, com os seus efeitos concretos sobre a vida de quem trabalha.

Os impactos da reforma de 2017 se deitam não só sobre uma não recuperação do nível de emprego, como também sobre uma piora da qualidade do emprego, com retração da renda oriunda do trabalho. A crise econômica e sanitária que atravessamos, com as quais vieram também medidas de emergência chanceladas pelo STF (ADI 6363, por exemplo), agravaram essas condições, sobretudo no que concerne à redução dos salários.

Portanto, o acompanhamento da questão colocada na ADPF nº 828, porque intimamente relacionada com as escolhas sobre a regulação do trabalho e sobre o enfrentamento da pandemia, interessa a um olhar atento sobre a relação entre o STF e o mundo do trabalho.

Curiosamente, a decisão proferida pelo Ministro Barroso ontem indica, como fundamento da extensão do prazo para suspensão das ordens de despejo, que “sob o ponto de vista socioeconômico, a pandemia tem agravado significativamente a pobreza no país, que retornou para o mapa da fome”. O Ministro também motiva sua decisão considerando que “o aumento da inflação atinge de maneira mais acentuada as camadas mais pobres e existe fundada preocupação com o aumento do flagelo social”.

A salutar preocupação do Ministro com a questão social no país convergiu, nesse caso, para o atendimento de uma demanda por moradia que foi defendida pelos movimentos sociais. Entretanto, a vinculação desse agravamento da questão social à pandemia, desconsiderando a questão do trabalho, não apenas implica uma visão limitada da complexidade da crise econômica atual, como resulta contraditória com a ponderação feita pelo próprio Barroso no último capítulo da decisão.

Ao final do julgado, além de estender o prazo da suspensão das ordens de despejo, Barroso faz um apelo ao legislador “a fim de que delibere a respeito do tema não apenas em razão da pandemia, mas também para estabelecer um regime de transição depois que ela terminar”. E o faz por que considera que existem mais de 132 mil famílias, ou aproximadamente 500 mil pessoas, ameaçadas de despejo quando se esgotar o prazo de suspensão ora determinado”. Nessa altura, fica evidente que o relator considera que existem elementos para além da questão pandêmica a determinar a persistência do problema social colocado, bem como a complexidade dos seus impactos. Assim, o relator pondera que:

“É preciso, portanto, estabelecer um regime de transição, a fim de evitar que a realização de reintegrações de posse por todo o país em um mesmo momento conduza a uma situação de crise humanitária. A conjuntura demanda absoluto empenho de todos os órgãos do poder público para evitar o incremento expressivo do número de desabrigados”.

O reconhecimento da iminência de uma crise humanitária e a sensibilização do STF enquanto garante de direitos fundamentais a esse fato é louvável. Entretanto, não é possível desvincular a dimensão dessa crise humanitária da crise do trabalho e das escolhas político-jurídicas realizadas pelo mesmo STF, em convergência aos demais poderes da República, quanto à regulação do trabalho desse cenário. A atenuação do contexto pandêmico, como o próprio Barroso reconhece, não encerra o problema, que lhe é anterior. Resta saber se as duas pontas de uma mesma questão social podem ser reunidas pela Corte Constitucional.

Douglas Mota e Renata Dutra, com o apoio da equipe do Observatório.

[1] Informações sobre a campanha disponíveis em: https://www.campanhadespejozero.org/.

[2] Balanço dos dados da campanha “Despejo Zero” até 02/2022, disponível em: https://uploads.strikinglycdn.com/files/ebb1e782-bb8b-47f9-82d2-1e747cb2bfdf/S%C3%ADntese%20Despejo%20Zero%20fevereiro%202022%20-%20final.pdf.

[3] Dados de desemprego e subutilização no Brasil, disponíveis em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. [4] Nota técnica nº 73 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf.

[5] Disponível em: https://cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/artigos/4669-racismo-fundiario-a-elevadissima-concentracao-de-terras-no-brasil-tem-cor. [6] REBOUÇAS, André. Agricultura nacional estudos econômicos. Propaganda abolicionista e democrática. 2ª ed. Recife: Massangana, 1988.

Clique aqui e leia o texto completo

Fonte: Observatório Trabalhista do STF

Data original de publicação: 30/03/2022

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »