“Bate-papo na Labuta” com Ricardo Antunes

Foto: Banco de Imagens da UNICAMP

Por Okrost | Direito do Trabalho Crítico

RICARDO ANTUNES é paulistano, Professor Titular de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e há décadas um dos grandes nomes em se tratando das modificações no mundo do trabalho.

Leciona, como convidado, diversas disciplinas em instituições de ensino da América Latina, Europa e Ásia, colabora com inúmeros sites e periódicos, sendo, ainda, autor de livros, com destaque a “Adeus ao trabalho?” (1995), “Os sentidos do trabalho” (1999), “Infoproletários: degradação real do trabalho virtual” (2009, org.), “O privilégio da servidão” (2018), “Uberização, trabalho digital e indústria 4.0” (2020, org.) e “Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado” (2020).


Recebeu o Prêmio Zeferino Vaz (Unicamp, 2003), a Cátedra Florestan Fernandes (CLACSO, 2002) e a Medalha (Comenda) do Tribunal Superior do Trabalho (TST, 2013).1


Ainda assim, em plena pandemia, premido por adversidades que “não tem sido poucas, mas nós vamos levando”, com a gentileza que lhe é peculiar, respondeu a alguns questionamentos do “bate-papo na labuta”, seção do blog “Direito do Trabalho crítico” em uma verdadeira aula sobre rumos e perspectivas do mundo do trabalho.

1. Professor Ricardo, muitíssimo obrigado por aceitar o convite do “Direito do Trabalho critico” para este “bate-papo”. Indo direto ao ponto: como o senhor, filho de um Advogado, acabou se enveredando pela carreira acadêmica, pelas Ciências Sociais e pelo mundo do trabalho?

Meu caro Oscar, é um prazer poder colaborar com o teu site. Eu me tornei sociólogo aos poucos. Quando terminei o ensino médio, que na época se chamava colegial, fui cursar Administração na Fundação Getúlio Vargas, um curso caríssimo e meu pai não tinha condições de pagar.

Então, por isso, me inscrevi e fui aprovado em Administração Pública, provavelmente uma das causas da minha mudança de profissão. Na Administração Pública tive muitos cursos de sociologia, de política, de economia, de história, que “abriram a minha cabeça” e percebi que odiava as matérias de exatas. Por exemplo, contabilidade foi a única matéria que fui reprovado (…) uma matéria horrorosa, para mim. E percebi muito rapidamente que tinha todo o sentido e tendência para as humanas.

Um segundo elemento importante nesta decisão foi que quando comecei a fazer a Faculdade, eu estava com 18 para 19 anos e tive que trabalhar para poder me manter. Aí comecei a dar aula de história, porque gostava de história e aos poucos percebi “minha queda” para as humanas. Eu já gostava de história e por isso fui dar aula em um cursinho. No primeiro ano de faculdade, ainda careca, pois naquela época se raspava a careca dos calouros, fui dar aula de história.

Mas por certo outra causa central foi ter, na FGV-SP, vários professores de sociologia, política e economia; houve, em particular, um Professor de Direito do Trabalho, Ranulfo de Melo Freire, de Minas Gerais – penso que ele faleceu recentemente – era uma pessoa muito afável e um dia disse a ele que eu queria estudar classe trabalhadora e sindicatos. Ele me sugeriu que lesse os livros do Leôncio Martins Rodrigues e o Juarez Lopes Brandão e esse foi um traço interessante da minha trajetória.

Não que o Ranulfo tivesse me influenciado, mas era muito aberto ao diálogo, um Professor de Direito do Trabalho progressista. Assim, quando me dei conta, lá por 73 e 74 eu já estava me vendo como um Sociólogo, um Cientista Social. Essa é a minha trajetória para as humanas.

2. O Direito do Trabalho, como idealizado na primeira metade do século XX, chegou ao fim? E os sindicatos?

Sim e não. Se, nós imaginarmos que o capitalismo do nosso tempo, sob impulsão neoliberal, o capitalismo que tem uma tríade destrutiva que o comanda – neoliberalismo predador, hegemonia do capital financeiro e desenvolvimento técnico-informacional digital – sob condução das corporações, processo que mais recentemente desembocou no chamado Capitalismo de Plataforma, os capitais querem eliminar completamente os direitos do trabalho. O resultado mais brutal é a degradação completa das condições de trabalho e a destruição da legislação social protetora do trabalho. Ou seja, se depender das corporações, o direito do trabalho estaria findando.

Mas enquanto há capitalismo, há luta entre classes e, consequentemente, luta por direitos. Marx demonstrou isto fortemente em “O capital”, sua obra mais espetacular e também na “Crítica ao programa de Gota”. O Direito – diz Marx -, em última instância, nasce para proteger a propriedade privada que deve ser sempre intocável. O Direito nasce, portanto, atrelado e atado à forma-mercadoria. Mas o mesmo Marx nos ensinou que, enquanto há luta de classes – uma vez que na sociedade existem classes sociais contraditórias entre si e que se antagonizam – sempre haverá luta por direitos, pois para que uma vitória possa se consubstanciar e ser duradoura ela precisa se tornar um direito do trabalho. Por isso disse: sim e não.

No presente momento, por exemplo, há uma luta decisiva, em escala global, ocorrendo na Europa, vejam-se os casos espanhol, inglês, italiano, francês e português; nos Estados Unidos e em outros países, na América Latina, na Ásia, uma luta pela regulação do trabalho uberizado, onde se expande este novo contingente do proletariado de serviços que tem sido explorado, espoliado e expropriado.

E como o trabalhador e a trabalhadora de plataformas ou o trabalhador e a trabalhadora uberizados são explorados, espoliados e expropriados os capitais resolveram operar uma falsificação, uma adulteração de sua condição de assalariamento que é apagada, tentando transfigurá-lo e metamorfoseá-lo em um não assalariado, uma manipulação ideológica profunda visando torná-lo, do dia para a noite um “autônomo” e “empreendedor”, o que joga esse setor do proletariado de serviços à margem da legislação trabalhista. Por isso ele está obrigado a lutar por direitos até mesmo para sobreviver, o que a converte em uma luta vital, pela vida.

Espero demonstrar, com isto, que há uma dialética presente na luta por direitos. Ao mesmo tempo em que os capitais querem eliminá-los, a classe trabalhadora há de lutar pela sua ampliação e mesmo reconquista de tantos direitos que foram ou que estão sendo surrupiados pelo capitalismo e pelas corporações, especialmente no Capitalismo de Plataformas.

3. Qual o papel do trabalho humano em um regime de acumulação capitalista hegemônico, global e permeado pela tecnologia? Ainda pode ser considerado central?

Não há nenhuma chance de uma sociedade capitalista existir sem trabalho humano por um motivo ontologicamente vital. É o trabalho humano que cria a riqueza. A tecnologia não cria a riqueza, mas potencializa exponencialmente a riqueza.

Este é o “golpe de mestre” das corporações capitalistas: elas ampliam a tecnologia de modo a reduzir ao máximo o trabalho vivo, mas nunca poderão eliminá-lo. Tentam demonstrar a irrelevância do trabalho vivo, mas sabem que sem ele não se cria riqueza e, consequentemente, não se tem nem lucro, nem burguesia. Mas, por certo, procuram sempre reduzir ao máximo o número de trabalhadores e trabalhadoras ativos, por isso usam destrutivamente tanto as tecnologias, que são desnecessárias para a humanidade, além de intensificar e explorar ao máximo a força de trabalho humano. É por isso que a exploração vem se intensificando em todos os pólos da classe trabalhadora e em escala global. Se o trabalho fosse irrelevante, por que haveria tanta exploração? E esta, como sabemos, vem se intensificando em todos os pólos da classe trabalhadora e em escala global.

Assim, o capitalismo ou, ainda mais abrangentemente, o sistema de metabolismo social do capital, para usar uma categoria que é de István Mészáros, vai extrair do trabalho humano tudo o que ele puder extrair, retirar e surrupiar. Não importa se o trabalho humano é altamente qualificado, se está no topo do trabalho e das tecnologias de informação ou se está na base e é mais manual. Sem falar que não se pode fazer uma separação absoluta entre eles, dadas as inter-relações e interconexões presentes nas cadeias produtivas de valor hoje.

Dou um exemplo: um celular. Ao mesmo tempo em que ele traz embutido na mercadoria um trabalho que se realiza no âmbito das tecnologias de informação, de comunicação e de Inteligência Artificial, deste mundo maquínico-informacional digital, todos sabemos que não existe celular, assim como não existe internet, nuvem e nada disso sem a extração mineral, que é o trabalho mais basal, das cavernas, de entrar no fundo do subsolo e extrair minério e sem o qual, entretanto, não há celular e o mundo digital sequer poderia ser cogitado. Não existiria a internet sem um leque imenso de trabalhos manuais, a começar pela extração mineral, o que mostra que o trabalho é vital, ainda que o capital tenha aprendido a lidar com e contra o trabalho.

Então, o capital diz que o trabalho é inútil, mas não fica um dia sem. E o exemplo decisivo disto nós vimos na pandemia: o horror para a burguesia brasileira e mundial ver o isolamento, o lockdown, parando a produção. Porque quando para a produção, para de haver a realização da atividade humana laborativa e a mais valia não cresce, não nasce e, consequentemente, não se expande.

mais valia só pode resultar da interação complexa entre trabalho humano, falando nos termos do Marx, entre trabalho vivo e trabalho morto. O que é o trabalho morto? A maquinaria que potencializa a riqueza. Portanto, a tese do fim do trabalho é profundamente eurocêntrica e desconhece a realidade de que a classe trabalhadora e 2/3 do mundo do trabalho, senão ¾, se encontram no sul do mundo, neste imenso quintal que vai da China, países asiáticos, passa pela África do Sul, continente africano e chega na nossa América Latina, e que entra nos bolsões dos Estados Unidos e também da Europa através da exploração e sucção das suas respectivas classes trabalhadoras e, em particular, a europeia e norte-americana, e da brutal exploração da força de trabalho imigrante que ao mesmo tempo o capitalismo trata como algo supérfluo, mas que sabe que o trabalho imigrante é vital para rebaixar, constantemente, o custo de remuneração da força de trabalho da classe trabalhadora.

Portanto, falar em fim do trabalho é um equívoco ontológico profundo, inaceitável para quem olha o mundo em sua globalidade. Eu tentei aprofundar estas teses no meu livro “Adeus ao trabalho?”, que é uma pergunta, e “Os sentidos do trabalho”, livros que tentaram enfrentar teórica e empiricamente estas questões.

4. O que esperar da Justiça do Trabalho em um país desigual e de economia periférica, como o Brasil?

Primeiro, a Justiça do Trabalho, em qualquer país do mundo, só defende a classe trabalhadora quando há pressão e luta social. Veja bem, quando houve o “breque dos apps” , no dia 1º de julho de 2020, uma greve que já entrou para a história da classe trabalhadora brasileira, ficou evidenciado o vilipêndio, aquele tripé que falei anteriormente – exploração, espoliação e expropriação. A Justiça do Trabalho, então, responde quando há luta social.

Segundo, a Justiça do Trabalho responde também quando há um clamor da sociedade, percebendo que não é possível aceitar que jovens, moços – homens ou mulheres -, no caso dos trabalhadores uberizados a predominância no Brasil é masculina, mas há um forte contingente também bastante jovem e feminino, contingente que trabalha 10, 12, 14, 16 horas por dia, jornadas semanais ininterruptas, por vezes sem nenhum dia para descanso. Eu já entrevistei um trabalhador que dizia que só não trabalhavam um dia no mês por imposição de sua família que queria que um dia por mês ele passasse o domingo com a família.

Não é possível que esse vilipêndio, esta empulhação, este Frankenstein social que foi criado, de que são “autônomos” e “empreendedores”, obviamente uma mistificação, seja perpetuado. A Justiça do Trabalho tem que estar atenta e atuar no sentido humano e social em reconhecer um mínimo de dignidade do trabalho.

E, por último, como todo o aparato público e estatal (como também ocorre nas Universidades públicas), há claramente setores que são completamente conectados e atuam segundo os interesses do capital, mas há também aqueles e aquelas que são profundamente vinculados, na sua ação e reflexão científica, aos interesses da classe trabalhadora.

A Justiça do Trabalho, portanto, também é assim. Eu tenho a felicidade, há décadas, muitas décadas, porque o tempo está passando, de dialogar com uma parcela importante da Justiça do Trabalho no Brasil que é a Justiça do Trabalho – e não a Justiça do capital, no qual as corporações querem que sempre a Justiça aja segundo os interesses delas. Porém, a Justiça do Trabalho só avança e avançará, em qualquer país do mundo, quando há luta social e pressão social por parte da classe trabalhadora.

5. Para o Professor Ricardo Antunes, “Direito do Trabalho crítico” é:

Direito do Trabalho crítico é, primeiro, saber que em uma sociedade de classes eu não posso defender os interesses do capital, mas sim os interesses da classe trabalhadora. O capital tem um volume infindável de aparatos públicos para defendê-lo.

Alguém poderá acrescentar: o papel do Direito é conciliar! Mas como conciliar se estamos tratando de entificações sociais que são inconciliáveis? É por isso que não há nenhum país do mundo onde haja uma conciliação eterna entre capital e trabalho. Isto é ontologicamente impossível, porque enquanto uma classe se apropria de tudo o que é produzido e enriquece, a outra se vê desprovida do básico e se pauperiza, como demostra tragicamente a enorme miséria no Brasil e em tantas partes do mundo.

Por óbvio, em alguns países escandinavos, você pode falar na Finlândia, poderia falar, mais no passado, na Suécia, Noruega e etc, há avanços sociais. Países que conseguiram manter alguns traços do Welfare State, ainda que muito menos do que tinham no passado recente, e assim conseguem (à custa especialmente da exploração da classe trabalhadora do Sul), manter condições de trabalho razoáveis em seus países. Mas tudo ainda longe de uma efetiva igualdade substantiva.

Assim, como a tendência da precarização do trabalho é global, o Direito do Trabalho crítico, no meu entendimento, no contexto de uma sociedade de classes, é ter claro que o lado em que me encontro ou defendo os interesses do capital, como faz uma parte do Judiciário, na maior parte dos países do mundo, no qual os interesses da sociedade são em ultima instância os interesses das classes proprietárias.

Basta dizer, por exemplo, que o direito à propriedade privada, que funda o Direito, é intocável na sociedade capitalista. Agora, um Direito do Trabalho crítico é aquele, que na contradição e na contraposição entre o capital social total, de um lado, e a totalidade do trabalho social, de outro, garante conquistas da classe trabalhadora na trilha e nas tantas batalhas que a classe trabalhadora tem pela frente e que nunca foi tão candente e premente. Sem deixar de dizer que hoje, mais ainda, estamos obrigados a reinventar um novo modo de vida.

Hoje, qualquer pessoa com o mínimo de lucidez vê que a sociedade capitalista destrói o trabalho em proporção inimaginável, destrói a natureza, que nós sequer estamos conseguindo respirar sem adoecer, além de ser um sistema metabólico destrutivo, como indiquei no e-book “Coronavírus o trabalho sob fogo cruzado”: De modo sintético: o capitalismo do nosso tempo se tornou pandêmico e letal, um capitalismo virótico como o denominei. Daqui para frente nós teremos cada vez mais vírus que resultam do aquecimento global, das queimadas, da energia fóssil, da extração mineral, da criação desmedida da agroindústria, da criação bovina, das queimadas, todos esses horrores, de tudo o que trava a natureza.

Sem a natureza, a humanidade não funciona. A natureza pode descartar a humanidade. A humanidade não pode prescindir da natureza. E, apesar disso, cada vez mais o capitalismo destrói a natureza. Como eu resumiria este encontro que houve recentemente para tratar da questão ambiental, na Escócia: blá-blá-blá-blá-blá. A síntese não podia ser mais feliz daquela jovem, que resumiu assim o resumiu.

O mundo do capital e seus governos, de concreto, não tomaram nenhuma medida efetiva para barrar a destruição ambiental. Salvar a natureza, hoje, e resgatar a dignidade humana do trabalho nos obriga a assumir uma postura clara e em direção a um outro modo de vida, para além do capital.

São estas as questões com que eu gostaria de ajudar, neste teu blog e deixo meu abraço afetuoso a você. Peço desculpas pela demora em ter respondido estas questões, pois as adversidades não tem sido poucas, mas nós vamos levando, na esperança de que no próximo ano possamos ter, em 2022, o fim de alguns horrores, pelo menos de alguns horrores, que maculam letalmente a nossa vida. Um grande abraço!

* Agradecimento à Professora Viviane Vidigal por generosamente viabilizar este bate-papo.

1 Fontes: <http://www.iea.usp.br/pessoas/pasta-pessoar/ricardo-antunes&gt; e  <https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ricardo_Antunes&gt;. Acesso em: 02 jan. 2022.

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Fonte: Direito do Trabalho Crítico

Data original de publicação: 02/01/2022

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