Coronavírus e meio ambiente de trabalho: de pandemias, pantomimas e panaceias

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Por Guilherme Guimarães Feliciano e Paulo Roberto Lemgruber Ebert para REMIR Trabalho

 Introdução. A pandemia: escalada do desalento

Nos primeiros dias de 2020, o mundo soube do surto endêmico de uma nova forma de coronavírus – SARS-CoV-2 –, à altura restrito à cidade de Wuhan, capital da província da China central, entrecortada pelos rios Yangtzé e Han. Ao contrário de seus análogos já conhecidos (a SARS e a MERS, p. ex.), a doença provocada pelo SARS-Cov-2 – conhecida como COVID-19 – tinha por características sintomáticas a manifestação mais intensa e duradoura de coriza, febre, diarreia, vômito, falta de apetite, perda do olfato e do paladar, aguda dificuldade respiratória e dores no corpo que poderiam evoluir para um quadro de pneumonia grave.

Desde a fase epidêmica, combater o avanço da síndrome se tornou a preocupação prioritária da Organização Mundial da Saúde, que logo a classificou como “emergência de saúde pública de importância internacional” (= public health emergency of international concern”, ou PHEIC), no mais elevado nível de alerta do Regulamento Sanitário Internacional. Na dicção de Tedros Adhanom Ghebreyesus (diretor-geral da OMS) e de Roberto Azevêdo (diretor-geral da OMC),

[o] objetivo do Regulamento Sanitário Internacional é prevenir, proteger contra, controlar e proporcionar uma resposta de saúde pública à disseminação internacional de doenças de modo proporcional aos riscos à saúde pública, com vista a minimizar a  interferência no tráfego e no comércio internacionais. As regras da OMC fornecem aos governos as flexibilidades necessárias para enfrentar situações de escassez de suprimentos médicos essenciais e/ou desafios de saúde pública. No entanto, qualquer medida tomada para promover a saúde pública deve ser “direcionada, proporcional, transparente e temporária”, em consonância com os recentes apelos dos líderes mundiais. Os governos devem evitar medidas que possam interromper as cadeias de fornecimento e impactar negativamente as pessoas mais pobres e vulneráveis, notadamentee em países em desenvolvimento e menos desenvolvidos que são tipicamente dependentes de importações de medicamentos e equipamentos médicos.[4]

A sigla COVID-19 combina a expressão anglófona “Coronavirus disease” com o ano de surgimento da moléstia (2019). Nas semanas e meses seguintes, o surto ganharia o status de epidemia, atingindo as demais metrópoles chinesas e extrapolando as fronteiras daquele País em direção ao Japão e à Coreia do Sul para, então, se dispersar por todo o mundo, no embalo do frenético trânsito de pessoas e de bens a caracterizar a economia globalizada do século XXI. Em 11 de março de 2020, era reconhecida como uma pandemia: doença de alto poder de contágio, que se espalha velozmente ao longo das fronteiras nacionais, alcança vários Estados nacionais e tende à contaminação planetária.

No final de fevereiro, após a COVID-19 se propagar em solo europeu, foram registrados os primeiros casos no Brasil. No decorrer do mês de março, os doentes já eram contados aos milhares e os mortos às centenas, restando ao Ministério da Saúde reconhecer – e anunciar – a ocorrência de transmissão comunitária em todo o território nacional. Em termos epidemiológicos, tal estágio é caracterizado pela dispersão autônoma da doença em uma determinada região geográfica e pela impossibilidade de identificação e de controle a respeito de sua cadeia de contágio. No momento em que encerramos a redação deste artigo, o Brasil ultrapassa a marca dos catorze mil mortos pelo novo coronavírus (no mundo, somam-se mais de 302 mil óbitos).

1. A pandemia, a Constituição e o meio ambiente do trabalho. Coronavírus e poluição labor-ambiental. A pantomima: MP 927/2020

A partir do momento em que se reconhecia nacionalmente o fenômeno da transmissão comunitária, a dispersão do coronavírus adquiriu outro patamar, tornando-se uma questão efetivamente ambiental, na medida em que a circulação do microorganismo nos espaços naturais e artificiais que abrigam a população em geral passou a consubstanciar risco biológico sistêmico agravado.No estágio de transmissão comunitária, qualquer indivíduo está sujeito, em maior ou menor grau, a adquirir a COVID-19 nos lugares em que frequenta; e, mais, a transportar o agente transmissor para outros espaços, de modo que o vírus passou a ser um vetor biológico de base antrópica (porque disseminado pelo ser humano) passível de interferir negativamente na qualidade de vida da coletividade e de seus integrantes.

Nesse contexto, o meio ambiente do trabalho, a compreender o sistema formado pelas condições físicas, psíquicas e organizacionais que circundam os indivíduos no desempenho de suas atividades profissionais, passou a figurar como um possível espaço de entronização e circulação do novo coronavírusde modo que aquele risco agravado, presente na generalidade dos espaços naturais e artificiais, também passou a integrá-los e a condicionar decisivamente a qualidade de vida dos trabalhadores ali inseridos.

Pode-se afirmar, portanto, que a entronização e a circulação do novo coronavírus nos espaços laborais constitui, em um contexto de transmissão comunitária de base antrópica (i.e., por meio de seres humanos), um nítido suposto de poluição labor-ambiental, na medida em que tal possibilidade acaba por instituir naqueles espaços um estado de  “desequilíbrio sistêmico no arranjo das condições de trabalho [e] da organização do trabalho”, de modo a ocasionar aos indivíduos ali ativados “riscos intoleráveis à segurança e à saúde física e mental […] arrostando-lhes, assim, a sadia qualidade de vida”. Ou, na esteira da Lei 6.938/1981 – como preferimos (de modo a evitar polêmicas conceituais) –, um estado de “degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente […] prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população [e] criem condições adversas às atividades sociais e econômicas” (art. 3º, III, “a” e “b”).

No ordenamento jurídico brasileiro, com efeito, o direito ao meio ambiente equilibrado, como consagrado pelo artigo 225, caput, da Constituição, abrange todos os aspectos naturais, artificiais e culturais – logo, físicos e imateriais – que circundam os seres humanos e que interferem na sua sadia qualidade de vida, incluindo-se aí aqueles que integram e condicionam o trabalho por eles desempenhado. Nesse sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de reconhecer expressamente que “a existência digna […] perpassa necessariamente pela defesa do meio ambiente (art. 170, VI, da CRFB/88), nele compreendido o meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII, da CRFB/88).”

E como corolário do direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado (“ex vi” do artigo 225, caput, c.c. artigos 193 e 200, VIII, da Constituição Federal), a Lex legum consagrou, no seu artigo 7º, XXII, o direito social jusfundamental à “redução dos riscos inerentes ao trabalho”, que (a) realiza no plano laboral o princípio jurídico-ambiental da melhoria contínua (ou, como prefere Sebastião Geraldo de Oliveira, princípio do “risco mínimo regressivo”), (b) é titularizado por todos os trabalhadores em atividade no território nacional (ou, fora dele, se em conexão com o ordenamento jurídico brasileiro), sejam ou não subordinados, e (c) traduz-se, para os empresários, nos deveres de antecipação, de planejamento e de prevenção dos riscos labor-ambientais. Tais deveres demandam, em síntese, a adoção de todas as medidas e instrumentos disponíveis no mercado, de acordo com o estado da técnica, que sejam economicamente viáveis e tecnologicamente aptos a promover a eliminação ou a mitigação das ameaças à vida, à integridade psicofísica e à saúde dos trabalhadores, de modo a precaver prevenir a ocorrência de quaisquer vicissitudes.

Em linha com tal diretriz constitucional, a Convenção nº 155 da OIT, ratificada pelo Brasil (Decreto n. 1.254/1994) – e, a nosso viso, internalizada com força de supralegalidade (mercê da intelecção do RE n. 466.343 e do RE n. 349.703, entre outros) –,  estabelece em seus artigos 16 a 18 que as empresas são obrigadas a garantir a segurança de seus processos operacionais com relação à integridade psicofísica de seus trabalhadores, bem como a implementar todas as medidas cabíveis, segundo a melhor técnica disponível, para elidir ou minimizar os riscos existentes em seus ambientes de trabalho, incluindo-se, aí, a elaboração de procedimentos destinados a lidar com situações de urgência.

Logo, à luz do conceito de meio ambiente do trabalho contemplado pela Constituição Federal de 1988, bem como dos dispositivos constitucionais e convencionais que asseguram a sua higidez com vista ao resguardo da vida, da saúde e da segurança dos trabalhadores, convém repisar: o ingresso do novo coronavírus nos locais de trabalho, em um contexto de transmissão comunitária, configura um efetivo risco a desestabilizar o equilíbrio das condições de trabalho e a qualidade de vida dos trabalhadores, configurando típica hipótese de poluição labor-ambiental (CF, art. 200, VIII, c.c. Lei 6.983/1981, art. 3º, III, “a” e “b”), uma vez consumada a contaminação interna.  

Note-se, ademais, que, de acordo com a mesma Lei nº 6.938/81, o poluidor é classificado em seu artigo 3º, IV, objetivamente, como “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Daí porque, oportunizando a entronização e a circulação do novo coronavírus no meio ambiente artificialmente organizado, em condições de transmissão comunitária, há risco proibido ou “intolerável” – i.e., risco não inerente à atividade e desaprovado pela ordem jurídica – que convola o empregador em poluidor, para os fins do referido art. 3º, IV (ainda que indiretamente, à maneira das entidades financiadoras, licenciadoras ou “oportunizadoras” em geral), haja ou não “culpa” no fato da contaminação interna.  Daí porque os tomadores de serviços em geral se encontram obrigados, por força dos artigos 7º, XXII e 225, caput, da Constituição Federal e dos artigos 16 a 18 da Convenção nº 155 da OIT, a implementar programas e medidas concretas de prevenção destinadas a eliminar ou minimizar as ameaças derivadas do novo coronavírus.

E, nessa precisa ordem de ideias, entendíamos serem inconstitucionais, por malferimento ao art. 7º, XXII, da Constituição (risco mínimo regressivo), os artigos 15, 16, 17, 29 e 31 da Medida Provisória n. 927, de 22.3.2020. O art. 29 da MP 927/2020, em particular, era a mais cintilante das pérolas que coroavam a pantomima ensaiada naquele diploma, quanto à finalidade de proteção do trabalhador (já que o objetivo de preservação do empregoexternado no caput do art. 1º, há de ser necessariamente o de preservar o emprego decente) e de respeito à ordem constitucional (já que o art. 2º  enuncia, como perímetro de validade para os acordos individuais escritos – e, supõe-se, para todas as possibilidades engendradas pela medida provisória – “os limites estabelecidos na Constituição”).

Com efeito, se no início de março de 2020 o Ministério da Saúde reconhecia publicamente o estado de transmissão comunitária do SARS-Cov-II em todo o território nacional, como poderia ser razoável que o Poder Executivo federal editasse,  no final do mesmo mês, um ato normativo apto a suspender “a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto dos exames demissionais” (e esses, ademais, apenas se não houver exame demissional realizado há menos de cento e oitenta dias), consoante art. 15, caput e §3º, da MP 927/2020? Como tal suspensão – que aumenta sensivelmente os riscos de internalização do novo coronavírus nos ambientes corporativos (quando o comando constitucional vai na direção da redução de riscos) – poderia colaborar para com o achatamento das curvas de contaminação, cada vez mais exponenciais em todo o país (caminhando-se, como dissemos alhures, para ser o epicentro global da pandemia)? O que dizer, nesse contexto, da responsabilidade do empregador que, dispensando o exame médico admissional – como autoriza o art. 15 –, vier a inserir, em seus quadros de pessoal, trabalhador contaminado pelo SARS-Cov-2 que, ao tempo da admissão, apresentava boa parte dos sintomas da COVID-19? Poderá ulteriormente se eximir da responsabilidade civil derivada da contaminação dos demais empregados?

Entendemos que não (e, já por isso, a importância de que os coordenadores de PCMSO valham-se largamente da hipótese do art. 15, §2º). A MP 927/2020 não introduz qualquer “imunidade” contra a responsabilidade civil, ao contrário da recente MP 966/2020; e, a nosso ver, nem poderia fazê-lo, do ponto de vista constitucional, mercê da norma do art. 7º, XXVIII, 2ª parte, da CRFB (“[…] seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado […]”). Se, ademais, a responsabilidade civil se estabelece em razão da degradação das condições de higiene e de segurança biológica do meio ambiente do trabalho – pela introdução furtiva do novo coronavírus, oportunizada pela ausência de exames médicos admissionais ou mesmo periódicos –, não caberána discutir a culpa do empregador, “ex vi” do art. 14, §1º, da Lei 6.938/1981. De nada lhe valerá afirmar, portanto, que apenas dispensou os exames médicos porque “a lei” – rectius: a MP 927/2020 – autorizava-o a fazê-lo (embora o autorize, de fato e de direito, para fins administrativos). Afinal, como bem pondera Leme Machado, “pode haver poluição ainda que se observem os padrões ambientais”, i.e., ainda que o sujeito cinja-se estritamente aos limites da lei. A ilicitude da poluição – inclusive a labor-ambiental – deriva do fato da degradação (Lei 6.938/1981, art. 3º, II: “alteração adversa das características do meio ambiente”), não apenas do descumprimento de leis, de atos normativos e/ou de posturas regulamentares e administrativas. E, por potencializar os contextos de degradação do meio ambiente de trabalho – opondo-se diametralmente, insista-se, às diretrizes normativas dos artigos 7º, XXII, e 225, caput, da CRFB –, os precitados artigos da MP 927/2020 (15, 16, 17, 29, 31) padeceriam de inconstitucionalidade “tout court” (ou, ao menos, desafiariam interpretações conforme à Constituição). 

Nada obstante, o Supremo Tribunal Federal – a quem compete a função máxima de guardar a integridade do texto constitucional –, provocado a se manifestar sobre todos aqueles dispositivos, divisou inconstitucionalidade tão somente nos textos dos artigos 29 31; não nos demais preceitos. Com efeito, no último dia 29.4.2020, ao julgar a ADI 6342-MC/DF (ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista), o Plenário do STF deliberou suspender tão somente a eficácia dos artigos 29 e 31 da MP 927/2020; quanto aos demais, referendou o indeferimento da medida cautelar, como pronunciado pelo Min. Marco Aurélio Mello em 26.3.2020. Assim, ainda que não concordemos com a decisão plenária – no que diz respeito aos artigos 15, 16 e 17 –, omnium earum iudicium habemus” (ao menos neste momento).

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Fonte: REMIR Trabalho

Data original da publicação: 22/05/2020

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