Livro Digital “O Supremo e a Reforma Trabalhista”

Por Renata Dutra e Sidnei Machado (org.)

PREFÁCIO (POR ADALBERTO CARDOSO)

“A regulação do contrato de trabalho é um ramo do direito privado, e
tem sua origem histórica na tradição romana individualista, que fazia
repousar a relação contratual na órbita do direito das obrigações, dos
contratos de aluguel, sendo, portanto, acolhido no Código Civil dos países
ocidentais até fins do século XIX.

Contudo, o fato de o trabalho mobilizar a pessoa do trabalhador introduz uma ambiguidade importante na relação de trabalho, que o Código Civil não pode amparar: o contrato de trabalho é um contrato de prestação de serviços por alguém que é proprietário da capacidade de trabalho. Contudo, essa capacidade emana de um corpo ele mesmo inalienável. É o que Supiot (1994) resume na ideia de uma antinomia entre a patrimonialidade (jurídica) do trabalho, consubstanciada no contrato de aluguel, e a suprapatrimonialidade (jurídica) do corpo do trabalhador.

O objeto do Direito do Trabalho, então, em lugar do serviço prestado ou do contrato de trabalho, não pode ser outro senão a pessoa do trabalhador, já que ela não pode ser separada da capacidade de desempenhar tarefas em nome de outrem.

Tal ambiguidade foi resolvida no direito ocidental do trabalho através da síntese, algo antinômica, da tradição romana individualista, com a tradição germânica, originária das corporações de ofício e de viés comunitarista, segundo a qual a fonte verdadeira da relação jurídica de trabalho é a pertença da pessoa a uma comunidade de trabalho, ou seja, a empresa. Porque o Direito do Trabalho confere ao trabalhador assalariado o estatuto de membro dessa comunidade, o trabalhador encontra-se “numa posição estatutária, e não contratual.

Esse estatuto confere um conjunto de direitos e obrigações, cuja vigência depende da posição que o trabalhador ocupa na comunidade [de trabalho]” (Supiot, 1994: 18). Nestas condições a tradição germânica coloca a relação de trabalho na órbita do estatuto das pessoas. Em lugar de uma relação entre homens e objetos e meios de trabalho que torna possível a troca de um trabalho assim objetivado por um salário, o Direito do Trabalho de inspiração germânica regula relações entre pessoas. Isso implica a necessidade de tratar a relação de trabalho para além do direito das obrigações. Em lugar do contrato, o estatuto.

Trata-se da combinação de tradições, e não da substituição de uma pela outra ou a passagem de um modelo a outro na história. Como bem marca Supiot (idem: 27 e ss.), um acordo inicial voluntário é necessário à constituição de uma relação de trabalho assalariada. Mas a permanência dessa noção no Direito do Trabalho só é possível por meio de uma completa revisão da noção tradicional do contrato como aluguel de serviços, fazendo-o referir-se à pessoa que presta os serviços. Assim como o brasileiro até muito recentemente, os direitos mexicano, venezuelano e argentino, e aquele dos outros países latinos da Europa, como Itália, Portugal e Espanha, tinham a mesma característica, ser legislado.

É justamente a centralidade da lei no modelo brasileiro que torna relevante o estudo do funcionamento das instituições do mercado de trabalho. Se uma norma legal só existe de fato, só faz sentido sociológico se tem efetividade no mundo, então, nos modelos legislados o problema da validade e da faticidade da norma jurídica é central, porque esses dois momentos esquadrinham o próprio horizonte de possibilidades das relações de trabalho. A validade da norma jurídica tem a ver sobretudo com os procedimentos decorrentes de sua produção e interpretação (papel dos órgãos legislativos, da Administração, dos tribunais5), enquanto a faticidade6, com alguma licença aqui, pode ser definida como a probabilidade de que ações e expectativas de ação de capital, trabalho e Estado tomem a norma como referência principal.

É da natureza do Direito do Trabalho, de caráter intrinsecamente distributivo, ser constantemente testado pelos agentes da produção, capital e trabalho, em sua luta pela apropriação da riqueza socialmente produzida. Essa é uma afirmação banal, mas de suas consequências decorrem os problemas de legitimidade da norma. A afirmação denota um intrincado ambiente espaço-temporal de disputa, múltiplo em sua distribuição de recursos e nos resultados possíveis das ações normatizadas, ambiente que não é outra coisa senão o rosto contemporâneo da luta de classes.

Entretanto, se aceitarmos, em caráter provisório, que o Direito do Trabalho define um subsistema de relações sociais modelado por expectativas de ação referenciadas pela própria norma jurídica e sua operação,7 então, em modelos legislados, a legitimidade da norma trabalhista é aspecto estruturante das ações recíprocas de capital e trabalho. É porque os trabalhadores têm expectativas normativas quanto à obediência dos capitalistas e vice-versa, expectativas que têm que ser confirmadas a cada momento das relações de classe, que o Direito se legitima enquanto uma ordem supraindividual de deveres, obrigações e recompensas com vigência real no mundo.

A consequência lógica é o fato de que a negação sistemática daquelas expectativas normativas quer dizer, ao mesmo tempo, que o Direito deixou de estruturar as relações de classe e que a ordem legal perdeu legitimidade.
Definido nesses termos, o problema da validade da lei pode ser
empiricamente operacionalizado em dois âmbitos: por um lado, tendo em
conta os mecanismos de produção do direito; por outro, os mecanismos
de operação do direito. Assim, se o modelo de relações de trabalho é
legislado, seria de se esperar que a disputa entre capital e trabalho, ou a
luta de classes, ocorresse preferencialmente no parlamento ou nas
agências do executivo encarregadas de propor projetos de lei.
Parlamentares e administradores, de um lado, e grupos de pressão de
outro, analisados enquanto tomam decisões, esgotariam o universo
empírico relevante. A análise da produção legislativa em seus vários
momentos seria a expressão mais pura da luta democrática de classes, e a
legislação resultante, sempre em transformação, refletiria equilíbrios mais
ou menos instáveis de poder e distribuiria aos agentes (capital, trabalho e
Estado) quinhões da riqueza social.

Mas sabemos que as leis têm que ser aplicadas, e mesmo que capital
e trabalho acolham como válidos tanto os processos decisórios quanto o
resultado das deliberações, ainda assim o direito resultante será
interpretado nos tribunais, e a jurisprudência, fruto dos mecanismos
judiciais de interpretação da norma, é outra maneira crucial de se produzir
normatização. Os tribunais são, então, palco das disputas entre
representantes de capital e trabalho pela interpretação da norma legal. São palco da luta de classes tanto quanto o parlamento, o balcão ministerial ou
os restaurantes de Brasília, locais de pressões de toda ordem de agentes
interessados.

Capital e/ou trabalho podem legitimar os processos legislativos mais
gerais, no parlamento, no executivo ou no judiciário, mas ter razões para
contestar (isto é, não se sentir obrigados pela) legislação produzida, vendoa,
por exemplo, como injusta segundo algum critério material ou moral.8
Podem, ao contrário, reputar ilegítimos os canais legislativos, mas
concordar com o resultado geral da ordem jurídica produzida, segundo
uma relação também material ou moral com a regra. Essa disjuntiva quer
simplesmente dizer que a legitimação dos mecanismos decisórios, isto é,
do sistema jurídico-político como um todo, não contamina
necessariamente a relação dos indivíduos com o direito daí resultante, e
isso tanto mais intensamente quanto mais esse direito regule relações
materiais e obrigações, que põem em causa acesso a bens, subordinação
pessoal ou dominação de indivíduos ou coletividades por outros indivíduos
ou coletividades.

Eis, em poucas palavras, a natureza contemporânea da luta
democrática de classes no Brasil.9 Instâncias regulatórias nas mais
variadas repartições estatais; instrumentos de vigilância e punição de
empregadores recalcitrantes; ordenamento jurídico de garantia da
execução do Direito do Trabalho; aparelho judiciário de interpretação e
operação do direito; Ministério Público do Trabalho; organizações
sindicais de trabalhadores; tudo isso tem uma função saliente dentre
outras: a de garantir, em nosso modelo (ainda) legislado de relações de
trabalho, que a lei seja cumprida pelos empregadores. Na verdade, é possível demonstrar, como tem feito a nova historiografia brasileira, que
a disputa entre capital e trabalho pela efetivação da legislação trabalhista
é constitutiva da própria identidade coletiva dos trabalhadores, bem como
de sua consciência de classe ao longo da história10. Logo, inquirir sobre a
efetividade da lei entre nós põe em alça de mira os mecanismos pelos quais
o mundo do trabalho constrói seus sentidos mais profundos.

O problema da faticidade da lei, pois, passa necessariamente pelas
instituições responsáveis pela operação do Direito do Trabalho. E nos
últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou-se peça central
daquele problema. Isso porque, se a reforma trabalhista de 2017 e as
normas e leis editadas desde então mudaram profundamente o
enquadramento legal existente, flexibilizando contratos, reduzindo o papel
dos sindicatos na intermediação e regulação das relações contratuais, e da
Justiça do Trabalho como guardiã de suas promessas (ver Krein, Véras de
Oliveira, e Filgueiras, 2019), os direitos consagrados no Título II, Capítulo
II, Artigo 7º da Constituição Federal permanecem íntegros. Isso inclui
salário mínimo nacional fixado em lei, seguro desemprego, FGTS,
irredutibilidade dos salários (salvo o disposto em acordo ou convenção
coletiva), garantia de salário nunca inferior ao mínimo (no caso de
remuneração variável), férias remuneradas, licença gestante, exigência de
normas de saúde e segurança no trabalho e muito mais. Ou seja, por mais
que o direito do trabalho tenha sido flexibilizado, e que, com a reforma de
2017, algumas normas negociadas (individual ou coletivamente) entre
patrões e empregados tenham passado a ter prevalência sobre a lei (caso
da jornada de trabalho, horas extras e mesmo remuneração), as normas
constitucionais seguem em plena vigência, garantindo mínimos
civilizatórios que têm no STF o intérprete em última instância.

E esse é o ponto central, que confere a este livro organizado por
Renata Dutra e Sidnei Machado, lugar de destaque na literatura recente
sobre o mundo do trabalho no Brasil. O Supremo é o intérprete em última
instância da Constituição, e julga movido por entendimento expresso pelo
ministro Marco Aurélio Mello em 2007, no julgamento do Mandado de
Segurança (MS) 26.602, impetrado pelo então Partido Popular Socialista
(PPS, hoje Cidadania) contra o presidente da Câmara dos Deputados.
Arlindo Chinaglia se negava a dar posse aos suplentes do PPS no lugar de
deputados que haviam deixado a legenda, e que deveriam por isso perder
seus mandatos segundo a lei da fidelidade partidária. O MS provocou
extenso debate entre os ministros do Supremo, que mudou seu
entendimento sobre a matéria e decidiu que o mandato parlamentar
pertence aos partidos, portanto que é constitucional a regra da fidelidade
partidária e a perda de mandato de quem mudar de partido. Ao final da
votação e dos debates, Marco Aurélio disse: “Confirma-se hoje que a
Constituição Federal é o que o Supremo diz que ela é”11.

Ora, os estudos deste livro não deixam sombra de dúvida sobre isso,
e têm, a meu juízo, um substrato comum: a percepção de que a reforma
trabalhista não teve início em 2017, sendo, na verdade, um processo de
mais longo prazo que tem no próprio STF artífice central. O STF não
apenas tem referendado o espírito neoliberal daquela reforma, muitas
vezes contra preceitos constitucionais, como atribuiu “a si próprio a
definição a respeito dos limites concretos da livre iniciativa nos contratos
de trabalho”, como afirmam Renata Dutra e João Gabriel Lopes no capítulo
3 desta coletânea. O julgamento de temas como terceirizações no serviço
público e no setor privado, prescrição do FGTS, jornada de trabalho, direitos das mulheres gestantes e outros, relativos a direitos individuais; e
de temas como o fim da ultratividade das convenções e acordos coletivos,
direito de greve dos servidores públicos, obrigatoriedade da contribuição
sindical, flexibilização de direitos individuais e coletivos na pandemia da
Covid-19, dentre outros direitos coletivos; são apenas alguns exemplos dos
temas aqui estudados minuciosamente, que dissecam a ação
jurisprudencial do Supremo na direção da supressão, restrição ou
redefinição de direitos constitucionais dos trabalhadores, sempre no
sentido de dar maior poder às empresas, “numa atuação que caracteriza o
Supremo como player político”, nos dizeres dos mesmos autores.

Trata-se, como se vê, de um livro incontornável na conjuntura atual,
por desvendar, de forma original e arguta, o papel decisivo do STF na luta
de classes no Brasil. Ao arrepio das normas constitucionais, o Supremo
vem reescrevendo o Direito do Trabalho em favor das classes
proprietárias, portanto contra os trabalhadores e suas prerrogativas
constitucionais. (…)”

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