Não há trabalho ou capitalismo sem comunicação: entrevista com Roseli Fígaro

Imagem: Pixabay

Por DigiLabour

“Roseli Fígaro, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), é coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho e pesquisa o tema há mais de vinte anos. É autora dos livros Comunicação e Trabalho – um estudo de recepção com trabalhadores da Mercedes – e Relações de Comunicação no Mundo do Trabalho e coautora de As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista.

Ela tem dedicado seus esforços nos últimos anos a compreender os arranjos produtivos alternativos no trabalho jornalístico. Um dos resultados é o relatório As relações de comunicação e as condições de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos alternativos às corporações de mídia.

Em entrevista à DigiLabour, Roseli Fígaro fala sobre o papel central da comunicação em dar respostas aos dilemas do capitalismo e do mundo do trabalho e analisa as mudanças no mundo do trabalho dos jornalistas, em especial nas mídias independentes e alternativas.”

Confira abaixo alguns trechos da entrevista

DIGILABOUR: O que é considerar a comunicação como trabalho no contexto do capitalismo de plataforma?

ROSELI FIGARO: De início, preciso falar que comunicação não é transmissão de informação. É uma característica específica e especial do ser humano porque tem a ver com a ontologia do ser social. Falar que comunicação tem a ver com capitalismo de plataforma é dizer que comunicação é trabalho, que está no trabalho e que, portanto, o capitalismo, ao explorar o trabalho, explora a capacidade humana de comunicação. Por que o Marx estudou o capitalismo? Não é porque gosta do capitalismo, mas porque quer entender como a sociedade acumula riquezas e onde elas vão parar. Há um aspecto filosófico na compreensão de Marx sobre o que é humanidade, de extrema empatia e solidariedade com o humano. Se nós dissermos que o ser humano é um animal específico, diferente de outros animais, isso não é só porque tem um corpo humano, diferente de outros, porque um animal também é diferente de outro animal. O que diferencia o ser humano enquanto espécie é a sua capacidade de produzir instrumentos e conceitos. Os conceitos são instrumentos do nosso pensamento. As ideias de planejar, pensar-se no tempo, no antes e no depois, tem a ver com essa capacidade de criar uma cultura específica, que se dá pela capacidade do ser humano produzir o seu próprio meio de vida. E ao produzir o seu próprio meio de vida, produz-se a si mesmo, o seu corpo, à sua cultura. Na ontologia do ser social, a comunicação e o trabalho são aspectos imbricados. O trabalho é impossível sem a relação com o outro, sem o acúmulo de experiências repassadas adiante, sem a criação de conceitos, sem a mediação dos signos. Aí está a comunicação. E se nós buscarmos entendermos o capitalismo hoje, ele entra numa fronteira que, até o século XX, só bordeou por meio de uma tecnologia que era física. Máquinas pesadas, instrumentos pesados, ferramentas, por exemplo. Nessa práxis simbólica, a ciência é um aspecto do trabalho. Mas no momento atual do capitalismo e do desenvolvimento das forças produtivas, estamos vivendo um momento fantástico da espécie humana em que o ser humano cria as condições de conexão que ultrapassam a dimensão de tempo e espaço. Quando o ser humano cria essa coisa maravilhosa da potencialidade de certas ferramentas que permitem essa relação, o que se fez foi criar ferramentas que potencializam a capacidade humana de produzir bens materiais ou imateriais – eu não gosto muito dessa ideia – que faça a nossa sociedade manter-se viva e cumprir as suas necessidades. Como dizia Marx, a cada tempo histórico as necessidades de uma sociedade são outras. E não estamos falando só das necessidades básicas de sobrevivência, que o capitalismo de plataforma não conseguiu suprir. Ao contrário, não vai suprir. Portanto, a comunicação é um fundamento desse desenvolvimento tecnológico e uma fronteira a mais para a exploração do capitalismo.

DIGILABOUR: O que você diz, então, é que a comunicação, por um lado, é expressão humana, e por outro, tem sido cada vez mais apropriada pelo modo de produção capitalista, inclusive no âmbito do trabalho digital.

ROSELI: Exatamente isso. O capitalismo sempre se apropriou do tempo social do trabalho humano e transformou em riqueza, apropriando-se daquela potência do fazer do trabalhador. A gente sempre pensou essa força de trabalho só como corpo físico, como se o ser humano fosse aquilo que o Taylor falou. Um boi tem força, né? Carne e osso. Nós não pensamos que essa força, desde sempre, era subjetividade e comunicação. É toda a potencialidade de recriação e renormalização. E o trabalhador produz a partir disso porque as normas, o conhecimento dado, estabelecido e estabilizado não dão conta do real do trabalho. Isso não foi o Marx que viu, mas os avanços do século XX nos estudos de trabalho mostraram isso. O real do trabalho exige o potencial da força de trabalho física, da subjetividade e tudo mais no real do trabalho, ou seja, no momento mesmo do trabalho. Então, isso sempre foi apropriado e transformado num valor que não voltava para o trabalhador no ponto de vista de bens culturais e de capacitação intelectual do ponto de vista escolar. O trabalhador sempre teve que se virar sozinho, sempre foi deixado à míngua. Hoje é a mesma coisa com esse discurso do empreendedor. Você que tem não só que suprir o seu plano de saúde, mas a sua formação, a sua capacitação para ir pro trabalho. E o que ele se apropria cada vez mais é da nossa capacidade de comunicação, de interação com os outros por meio dos dados. São os dados como nossos corpos, subjetividades, olhares e gostos.  Isso tudo é também apropriado e transformado num dado que será trabalhado e transformado em informações disputadas e valorizadas para o bem do capitalista.

DIGILABOUR: Você fala das relações entre comunicação e trabalho há mais de vinte anos. Mas, por um lado, os estudos de comunicação sempre relegaram o trabalho para um segundo plano. Por outro, as pesquisas sobre trabalho também têm na comunicação um ponto cego. O que você acha que mudou de vinte anos para cá?

ROSELI: Muito pouco. Essa pergunta me dá oportunidade de dizer que, no campo da comunicação, há exatos vinte anos, os estudos que fizemos sempre foram lidos como: “ela é uma pessoa séria, mas deixa essas coisas para lá”. E a área continua vendo a própria comunicação de uma maneira instrumental, pensando em público-alvo. Ainda hoje, com a inteligência artificial, o que se busca em termos de dados é cada vez mais aperfeiçoar uma aproximação com esse alvo. E nos estudos do trabalho quem tem alguma preocupação com a comunicação é a ergonomia. Mas, é também de uma maneira funcional, mais preocupada em observar o corpo e os gestos. Pensam a comunicação de uma maneira também sistêmica entre departamentos, setores e no fluxo de ferramentas e normas. Mas a área de comunicação precisa assumir a responsabilidade de responder a algumas perguntas que só a comunicação pode responder, dado o momento que nós estamos vivendo em relação às tecnologias, à desestruturação completa do Estado – nacional inclusive, por causa dos fluxos do financismo e do rentismo. Tudo o que nós temos aí são meios, fluxos e ferramentas que possibilitam fluxos de dinheiro, matérias e mercadorias, mas nós temos mais do que isso: a apropriação das informações das pessoas, que é o grande banco do capitalismo hoje, os dados das pessoas. E é a comunicação que tem que responder como a sociedade vai interagir com essa realidade. As disputas hegemônicas estão aí. Como nós vamos fazer uma contra hegemonia se nós não compreendemos do ponto de vista comunicacional o que que está acontecendo? Como o capitalismo se apropria dessa capacidade humana de comunicação e trabalho? Do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, o capitalismo abriu uma nova fronteira para aprofundar a expropriação. As forças produtivas estão preparadíssimas. Nós nunca estivemos tão próximos das condições ideais para o socialismo, para um outro mundo possível, para humanização da humanidade. Mas nós não temos, do ponto de vista da organização, forças políticas que possam dar respostas à essa base que está preparada. E se a comunicação não estudar o que está acontecendo, nós não teremos respostas políticas para isso e não teremos organização política para dar conta do que está acontecendo.

Acesse aqui a entrevista completa

Fonte: DigiLabour
Data original de publicação: 18/04/2020

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