O mito do herói imigrante que faz fortuna com suor e trabalho encobre a escravização do século XXI. Entrevista especial com Carla Menegat

Foto: IHU

Por João Vitor Santos | Instituto Humanista Unisinos

Agora no final de fevereiro, uma notícia aterrorizante encharcou os noticiários: 207 pessoas foram resgatas depois de submetidas a um regime de trabalho análogo à escravidão, com direito a pouca comida, uso de spray de pimenta e banho frio, entre outras atrocidades. O fato ocorreu em Bento Gonçalves, na serra do Rio Grande do Sul, autoproclamada como uma das regiões mais desenvolvidas do Brasil.

Quase tão horripilante quanto o fato em si foi a reação de autoridades e comunidade local, ao defenderem que o caso dos trabalhadores trazidos da Bahia foi uma situação isolada na colheita da uva e que as três vinícolas – AuroraSalton e Cooperativa Garibaldi – não sabiam o que se passava porque essa mão de obra era terceirizada. “Empresas que contratam terceirizadas têm a obrigação de fiscalizar as condições de trabalho e contrato de quem está a serviço da contratada. Cartas de pesar não bastam, é preciso apurar responsabilidades e impor consequências, sob pena de que perpetuemos a ideia de que a lei serve apenas para alguns”, enfatiza a historiadora Carla Menegat.

A afirmação de Carla parece óbvia, mas, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ela revela que há pelo menos uma grande questão estrutural nessa história: o mito do herói imigrante que sai da Europa como desvalido e, com o suor de seu trabalho, faz fortuna no Brasil. “O mais grave, e até um pouco contraditório, é colocar o imigrante como um desesperado que atravessa o Oceano por não ter alternativa e, com isso, retirar toda sua capacidade de escolha”, observa. Segundo a historiadora, havia redes de apoio, e muitos imigrantes chegam a partir do contato e apoio desses grupos, empreendendo práticas que tinham em seu país de origem.

O problema é que a constituição de uma narrativa laudatória e ufanista desse passado torna o imigrante um herói, sob a justificativa de preservar suas histórias e origens. O mito que se estabelece não só apaga os processos de cooperação e toda experiência pregressa como também torna uns sujeitos mais dignos ao sucesso do que outros. A historiadora, que também é descendente de imigrantes italianos, argumenta: “eu não acredito que honrar meus antepassados seja transformar eles em mitos. Eu acredito na honestidade que herdei deles, no meu caso foi só isso mesmo, ninguém alcançou fortuna com seu trabalho”.

Carla também destaca a importância da compreensão de que “os imigrantes foram inseridos aqui num grande processo de tornar grupos sociais despossuídos da terra e que isso começa em 1850. As mesmas pessoas que lucravam vendendo a terra para os imigrantes eram as pessoas que, em geral, invalidavam a possibilidade de mestiços, brancos pobres, caboclos e quilombolas reivindicarem títulos para as terras que ocupavam, muitas vezes por gerações”.

Para ela, mudar essa realidade é assumir que “quando falamos de imigração, nossa cultura nos leva imediatamente a pensar na imigração europeia, especialmente essa que não é portuguesa. (…) É um projeto de embranquecimento. Ao embranquecer a narrativa da sociedade gaúcha, é preciso depreciar tudo que não remete ao europeu e apagar aquele que não é o branco europeu. Por isso nunca nos referimos a nenhum outro processo como imigração”, acrescenta. Para romper isso, é preciso investimento intenso em educação para as relações étnico-raciais. “Faltam-nos políticas públicas de memória, nos falta política educacional, nos faltam ações de história pública. E isso tem que ser política de Estado”, indica.

E, se apesar de tudo, ainda há quem considere este caso um exagero, um fato isolado pelo qual não se pode criminalizar toda a cultura italiana da Serra GaúchaCarla encerra com uma provocação: “como pode aquele que enriquece com seu próprio trabalho precisar escravizar 207 pessoas, não em 1875, quando começa a imigração, mas 2023?”.

Carla Menegat possui graduação, bacharelado e licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É mestra e doutora em História pela mesma instituição, tendo realizado estágio de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense – IF-Sul. Suas pesquisas têm ênfase em História da Bacia do Rio da Prata, atuando principalmente em história do Rio Grande do Sul, caudilhismo, Revolução Farroupilha, estratégias e fronteiras.

Confira a entrevista.

IHU – 200 trabalhadores trazidos da Bahia estavam vivendo em condições de trabalho análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. O que isso revela sobre o Brasil de hoje e nossa relação com a escravização desde o século XVI, quando da chegada oficial dos colonizadores?

Carla Menegat – O Brasil teve 2.575 pessoas resgatadas de situações de trabalho análogas à escravidão em 2022, atingindo um índice de 60.251 trabalhadores resgatados nessas condições desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel em 1995 (dados do Ministério do Trabalho e Emprego). Isso diz muito sobre a permanência de uma percepção de que algumas pessoas não merecem dignidade em relação a outras e que seus corpos estão disponíveis para serem explorados.

É importante marcar que, durante os 350 anos em que a escravidão foi legalizada no Brasil, existiam regulações e essas de certa forma abriam algumas brechas para a resistência dos escravizados, seja através da busca por alforrias, seja em projetos de liberdade coletivos, como os quilombos. O que vemos aqui é o extremo oposto, é a resistência fora da lei de grupos da sociedade brasileira à ideia de que todos os cidadãos brasileiros têm direitos e que as atividades econômicas têm limites que não podem atentar contra a dignidade do outro.

Esse quadro revela como não realizamos, enquanto sociedade, uma transição completa da abolição da escravidão, como não construímos um pós-emancipação que realmente construísse a percepção (e o fato) de que os ex-escravizados – e, por consequência, seus descendentes – eram cidadãos brasileiros, com plenos direitos.

Município de Bento Gonçalves no contexto do Rio Grande do Sul | Mapa: Wikipédia

IHU – Em que medida o caso de Bento Gonçalves tensiona a máxima, existente na região de colonização italiana e alemã no sul, de que “os colonos que vieram para o Brasil sem nada e fizeram fortuna apenas com seu trabalho”?

Carla Menegat – É interessante como esse tensionamento foi imediatamente apontado por muitas pessoas nas redes sociais. Primeiro, foi um caso evidente de exploração ilegal de pessoas, o que não coaduna com essa imagem de que as fortunas dos descendentes de italianos (e outros imigrantes europeus) são fruto exclusivo de trabalho destes próprios imigrantes. Talvez, a grande questão esteja justamente nesse episódio revelar que nem todo trabalhador, mesmo que trabalhe arduamente, tem direito a ter sua própria fortuna.

A segunda questão, bem-marcada nesse episódio, é a de se perguntar ao trabalho de quem se refere a afirmação. Quem enriqueceu com o trabalho das pessoas escravizadas, em sua maioria trabalhadores recrutados na Bahia, foram aqueles que os contrataram, seja diretamente, seja de forma terceirizada.

IHU – Como podemos compreender esse imaginário de sucesso e fortuna que, inclusive, confere um ar de superioridade sobre outras populações do Brasil, tecido nas colônias do Rio Grande do Sul?

Carla Menegat – Esse discurso de prosperidade cria um mito de terra sem desigualdades. Esse imaginário não é de todo único, ele é uma releitura da ideia de que “nessa terra tudo dá”, claro com os contornos muito particulares que os eventos da segunda metade do século XIX em diante trazem consigo. Estamos falando de um imaginário que se funda numa sociedade que nasce como um processo periférico da Segunda Revolução Industrial, então essa ética do trabalho e de seu valor, de que não trabalhar e, portanto, não estar disponível para ser um trabalhador não é compatível com a ética burguesa que surge nesse momento.

Nada melhor do que revestir com uma nova roupagem um processo exploratório do território usando a ideia de que essa é uma terra de sucesso e fortuna, basta empenho. E, nesse quesito, é extremamente importante entender que, para que esse imaginário se realize, é preciso conferir ao imigrante capacidades únicas, que o permitiram transformar aquilo que os outros não conseguiram antes.

Essa é a fonte desse ar de superioridade que os imigrantes europeus costumam receber sobre outros povos, como indígenasnegros e mestiços, que inclusive foram desalojados dos territórios que formaram a maior parte das colônias. Acho importante dizer que o período da imigração europeia para o Brasil também acompanha o surgimento de teorias racistas no Velho Mundo, teorias que, depois, fundamentarão ideias perversas como a de que a mestiçagem gera criminosos, de que os indígenas são povos infantis ou que pessoas negras não são capazes de aprender.

O mito de “não trabalham para tanto”

Nesse processo, temos o surgimento de outra concepção muito equivocada, a de que aqueles que não prosperam, assim o fazem porque não trabalham para tanto. Essa percepção se perpetua às vezes de forma anedótica, com memes como aquele do mapa do Brasil destacando o Sul e dizendo que, enquanto o resto do país pula carnaval, aquela região trabalha, desmerecendo uma festividade que gera bilhões de reais e que tem uma importância cultural e religiosa imensa.

Às vezes, perpetua-se de forma escancaradamente perversa, como vemos na nota do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves. Seu texto sugere que existe uma parte da população que vive sem trabalhar porque recebe benefícios sociais e que, portanto, deveria ser forçada a ser produtiva economicamente, justificando, com isso, a situação de trabalho análogo à escravidão em que os trabalhadores se encontravam.

Veja bem, para além de dezenas de pesquisas robustas que demonstram que pessoas assistidas por programas sociais buscam estas iniciativas como uma forma de transição para acessarem possibilidades sociais que não lhes são ofertadas, e nisso cito a pesquisadora Denise de Sordi da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz como referência no assunto. Esse discurso acaba por justificar condições indignas de trabalho, negação de direitos trabalhistas e sociais e o lucro acima da vida humana. Foi assim em muitos momentos históricos, e é lamentável ver esse processo se repetindo hoje.

Clique aqui e leia a entrevista completa

Fonte: Instituto Humanista Unisinos

Data original de publicação: 02/03/2023


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