Quilombo do Bracuí, Angra dos Reis (RJ)

Foto: Guilherme Hoffmann/Labhoi

Por Martha Abreu e Hebe Mattos | Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

O quilombo do Bracuí, situado em Angra do Reis (RJ) foi, e ainda é, palco de muitas lutas de trabalhadores descendentes de africanos escravizados. Na defesa de direitos, seus moradores transformaram em bandeira de luta e afirmação da identidade quilombola a sua própria história, a vigorosa tradição oral e o patrimônio do jongo (expressão de dança, canto e versos diretamente ligados ao legado africano no Brasil).

Contar “causos” de antepassados escravizados para os filhos, sobrinhos e netos foi uma estratégia dos mais velhos de um grupo não letrado para que não se esquecesse a história da comunidade. Através de conversas, também falavam sobre antigos senhores, lembravam de casos de resistência dos escravizados e das muitas violências da escravidão e do tráfico. 

A narrativa mais estruturante da comunidade é a memória coletiva sobre a doação de lotes de terra para os escravizados da antiga fazenda no testamento de José de Souza Breves, de 1878, então proprietário da Santa Rita. A família Souza Breves era proprietária de muitas fazendas e de centenas de escravizados e sempre esteve envolvida com o lucrativo comércio ilegal de africanos. 

A área da fazenda de Santa Rita, de frente para as calmas águas de Angra dos Reis, suficientemente distantes do Rio de Janeiro para as atividades ilegais e estrategicamente próximas do Vale do Paraíba paulista e fluminense, foi local de chegada dos milhares de africanos. Recuperados da longa viagem na fazenda, logo subiam a Serra do Mar, em direção a Bananal, para suprir as plantações de café de mão de obra.

Por isso, a narrativa mais impactante diz respeito à memória coletiva dos quilombolas sobre os negócios ilegais do tráfico, emblematicamente representada pelo depoimento do Sr. Manoel Morais, um dos mais antigos moradores do quilombo e hoje já falecido. Neto de escravizados de José Breves, esse depoimento relata um desembarque clandestino ocorrido em 1852, que, ao que  tudo indica, foi um dos últimos ocorridos nas águas da Baía de Angra. 


A narrativa do Sr. Moraes é, sem dúvida, uma poderosa versão oral do episódio que ficou conhecido como o “caso do Bracuí”, quando o Brigue Camargo, vindo de Moçambique com 540 africanos, afundou e o governo imperial não poupou esforços para mostrar que estava realmente decidido a eliminar o tráfico de africanos para o Brasil.  A comunidade do Bracuí nunca esqueceu os desembarques ilegais. 


Ao falecer em 1878, José de Souza Breves deixou as terras da Fazenda do Bracuí, então de muito pouco valor depois do fim do tráfico ilegal na década de 1850, para seus antigos escravizados, tornados livres a partir daí. Sem nunca terem tido acesso aos direitos de legítimos proprietários, os libertos e descendentes permaneceram em seus lotes utilizando coletivamente os recursos do rio e as máquinas do engenho de cana, hoje em ruínas. Ao longo de grande parte do século XX, reconheciam os limites dos lotes de suas famílias e trabalhavam na agricultura de subsistência e na pesca. A única atividade monetária era a produção de banana, vendida a comerciantes de Angra dos Reis.  

Na primeira metade do século XX, há notícias de grileiros e as terras dos camponeses negros da Fazenda Santa Rita teriam sido registradas em nome de Honório Lima. Entre os anos 1950 e 70, os herdeiros negros do Bracui, apesar das tentativas jurídicas infrutíferas de fazerem valer seus direitos, não conseguiram reconhecimento de sua propriedade. Relatam, entretanto, que as maiores ameaças de expulsão começaram mesmo a partir da construção da Rodovia Rio-Santos, responsável pela abertura da região à produção de energia nuclear, ao turismo e à especulação imobiliária.

A estrada cortou a fazenda de Santa Rita em duas: a parte do mar e a parte do sertão.  Novos grileiros passaram a chegar e o grande empreendimento da Imobiliária Porto Bracuí tomou posse da fazenda ao comprar Santa Rita de proprietários ilegítimos. Com apoio do poder público, a imobiliária começou a utilizar de medidas coercitivas para os moradores abandonarem suas terras e conseguiu ocupar a maior parte da antiga fazenda do lado do mar. No entanto,  não deixou de explorar os recursos do lado do sertão, onde a comunidade conseguiu, com muita luta, permanecer, apesar das diversas pressões e violências.

A partir dos anos 1980 e 1990, com apoio da Pastoral da Terra da Igreja Católica e envolvimento com as lutas dos trabalhadores de Angra; com as mobilizações do movimento negro, com o apoio do Quilombo do Campinho em Parati e da Fundação Palmares, a organização da comunidade começou a ser feita em outras bases. Na luta pelos direitos historicamente negados e pela legitimidade das terras ocupadas há mais de cem anos, os herdeiros do Bracuí, acionaram o artigo 68 dos ADCT da Constituição de 1988 e o decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003. Em 2005, com 250 famílias, fundaram ARQUISABRA (Associação dos Remanescentes de Quilombo de Santa Rita do Bracui). Em 2012, obtiveram o reconhecimento da comunidade do Bracuí como Remanescente de Quilombo pela Fundação PalmaresAté hoje, porém, o quilombo do Bracui, ainda não foi titulado, mas a comunidade segue organizando a luta por seus direitos, mobilizando esforços na construção da escola quilombola, na sede da associação, na valorização da cultura negra local com o jongo, na criação de locais de visitação e na participação em redes maiores de associações quilombolas e de jongueiros, como o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu.

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Fonte: Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Data original de publicação: 26/05/2022

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