Salário por peça: Categoria chave e desestruturante

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Por Marcelo Tolomei Teixeira | Justificando

“Das muitas previsões de Karl Marx sobre o destino do capitalismo, consta em sua obra madura – O Capital – a alusão de que o processo do capital daria preferência  ao salário por peça e que, além de uma forma específica do pagamento da força de trabalho, seria uma forma de administração da força de trabalho muito mais afeta aos interesses capitalistas. No Brasil, se adota o termo como salário por unidade de obra, em que, de fato, o salário é calculado com parâmetro na produção alcançada, como, por exemplo, pelo número de peças ou percentagens e comissões de vendas, mas a utilização por Marx (2015) do termo “salário por peça” tem aspecto bem mais amplo, já que não se restringe apenas a uma modalidade salarial do trabalhador formalmente empregado.

Em síntese, podemos considerar que, para Marx (2015, p. 612-615):  

“[…] 1. o salário por peça não é senão uma forma modificada do salário por tempo, e assim como o salário por tempo, se trata do valor ou preço da força de trabalho e que não se trata de medir o valor da peça pelo tempo de trabalho nela incorporada, mas, ao contrário, de medir o trabalho gasto pelo trabalhador pelo número de peças por ele produzido, o tempo de trabalho que se incorpora numa quantidade de mercadorias previamente determinada e fixada por experiência vale como tempo de trabalho socialmente necessário e é remunerado como tal; 2.  a qualidade do trabalho é controlada aqui, pelo próprio produto, que tem que possuir uma qualidade média, ele toma supérflua grande parte da supervisão do trabalho; 3. o salário por peça se torna a fonte mais fértil de descontos salariais e de fraudes capitalistas; 4.  salário por peça tem, assim, uma tendência a aumentar os salários individuais acima do nível médio e, ao mesmo tempo, a baixar esse nível.”

Ela constitui, assim, o fundamento, tanto do moderno trabalho domiciliar anteriormente exposto, quanto de um sistema hierarquicamente concatenado de exploração e opressão em que o próprio trabalhador se encarrega de contratar e pagar seus auxiliares, que passa o explorado a empregar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau normal de intensidade da própria exploração, e o que é mais irônico e contraditório:  há um sentimento de liberdade, independência e de autocontrole por parte do trabalhador.

Assim sendo, o trabalho por peça mede o trabalho despendido de acordo com o número de peças produzidas, ao passo que o tradicional salário por tempo se mede pela duração de tempo à disposição do empregador. Podemos ainda considerar que é o trabalho por peças uma forma metamorfoseada do valor ou do preço da força de trabalho e, ainda, o fato de que o proprietário dos meios de produção se coloca, então, frente ao produtor do trabalho já objetivado e não potenciado. O que é excelente para o capitalista, considerando as dificuldades de se controlar a mão de obra contratada por tempo, pois o patrão tem que controlar muito para evitar prejuízos. Já no trabalho por peça, temos a qualidade controlada no produto (que pode ser adquirido ou não dependendo do estilo de contrato), sendo certo ainda que o tempo de trabalho está corporificado numa quantidade de mercadorias previamente determinada e fixado pela experiência como tempo socialmente necessário, e é pago como tal. E mais uma vez: com supervisão supérflua, o seja, a mão de obra se torna muito mais barata sem a necessidade de tanto controle como ocorre com a tradicional produção fordista. Devemos analisar, então, de que forma tal estilo de administração se desenvolve na modernidade.

E quando pensamos em modo de ser do mercado de trabalho ou da forma de gerenciamento capitalista da mão de obra, devemos compreender que há inúmeras possibilidades, dependendo da região e em que setor da produção está atuando o capital, já que podemos ter uma produção análogo ao escravismo até os setores de ponta da chamada indústria toyotista. Mais alguns fenômenos podemos chamar quase de estruturantes, a começar pelo grande sistema de subcontratações, como explica Boltanski e Chiapello (2009, p. 612): 

São subcontratações de vários níveis, são redes ramificadas de centenas de empresas integradas à marcha da empresa líder, sendo que as subcontratadas são as grandes utilizadoras do trabalho precário (temporário, por prazo determinado, tempo parcial ou variável), sempre contratando o menor número de pessoas possíveis. Exemplo das montadoras de automotores que possuem uma rede de empresas dedicadas aos seus interesses.

Por outro lado, até a forma de pagamento dos salários dos trabalhadores formais, mesmo tendo como referência o tempo à disposição, é um salário atrelado à produção. Haja vista, os acordos e convenções coletivos, ou até mesmo os acordos individuais, estipulando variados incentivos de produtividade ao alcance de determinados objetivos qualitativos / quantitativos – são as chamadas metas, algumas desumanas.  Trabalhadores, “companheiros” cobram de “companheiros” o alcance de metas; são, então, encarnações dos patrões, sem necessidade de supervisores. Nesse diapasão, as mentes e corações dos trabalhadores são cooptados pelas empresas (não é fortuita a utilização pelas organizações do termo cooperado ou colaborador ao invés de empregado), sendo o mais fácil, muitas vezes, o empregado ter mais diálogo com o empregador do que com os sindicatos. 

Há, seguindo ainda Boltanski e Chiapello (2009), um culto ao desempenho individual, exigência de mobilidade e qualidades pessoais como abertura, autocontrole, disponibilidade, bom humor ou calma que são valorizados e, é claro, o trabalho em equipe, com cobranças horizontais.  Ainda podemos conjecturar de uma forma mais ampla, que é a adesão aos padrões de consumo burguês dos trabalhadores e a ascensão das igrejas pentecostais com seus padrões de individualismos.

Por sua vez, ao contrário do fordismo, a produção do toyotismo é voltada e conduzida diretamente pela demanda, com a existência de estoque mínimo (as greves são caóticas para o sistema, uma das razões dos sindicatos serem rechaçados) e, nesse sentido, o controle do trabalhador se dá através de sistemas especiais como “kaban”, “just in time”, CQC (controle de qualidade total), eliminação de desperdício, gerência participativa. O controle de qualidade é feito pelo próprio trabalhador para o aumento da produtividade de equipe, para a maior autonomia no trabalho, etc., levando para uma intensificação da exploração do trabalho com direitos flexíveis, de modo a dispor desta força de trabalho em função direta das necessidades do mercado consumidor.

Outro aspecto está na Uberização, seguindo as lições de Abílio (2019, p. 07-09):

“Se trata de uma forma de gestão, organização e controle da produção, com o  entrecruzamento do Estado neoliberal, novas formas de gerenciamento proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico (algoritmo) e ainda a ideologia do empreendedorismo. “

Informa, ainda, a socióloga que o Uber conta com a adesão de 600 mil pessoas no Brasil e mais de 3 milhões no mundo, sendo certo de que 5 (cinco) aplicativos juntos se tornaram os maiores “empregadores” do país. A opção pelos aplicativos se dão por uma tentativa de eliminação das empresas terceirizadas que representam maiores ganhos para o trabalhador e mais autonomia no gerenciamento de seu trabalho. Explica que a maioria das empresas terceirizadas não logrou se manter na concorrência com as empresas de aplicativo. Faço, particularmente uma advertência: embora tal forma de gestão afeta o setor de serviço, pode ocorrer sua expansão para outras áreas da economia.  

A questão é que a subordinação e o controle sobre o trabalho são mais difíceis de reconhecer e mapear. Alguns países estão reconhecendo o vínculo de emprego, o que não deixa de ser positivo, mas questionável se será capaz de impedir o processo em curso. 

A uberização traz um tipo de circulação da força de trabalho que conta com a disponibilidade do trabalhador, mas a utiliza quando necessário de forma automatizada e controlada e, também, alavanca um autogerenciamento em que o empregado é chamado para seguir metas econômicas. Significa ser um just-int-time, o motoboy não sabe quando vai trabalhar e receber, assim como o motorista do Uber. Ao mesmo tempo, desafiadores termos vão surgindo para designar o trabalho do Uber, como “crowdsowcing”, ou trabalho amador, e “gig economy”, ou economia de bicos – são avassaladores, já que afirmam a precarização da vida de milhões de pessoas.

Todos esses prismas vão demonstrando a existência de um trabalhador cada vez mais cooptado, com uma jornada de trabalho mais intensificada e volumosa, consequentemente, aumentando o volume da extração da mais-valia absoluta (as corporações desconsideram os direitos sociais conquistados) combinado com o aumento também da mais-valia relativa (tecnologia). Há o que os economistas chamam de aceleração de rotação do capital, o que é matéria complexa para ser tratada aqui, já que nosso objetivo é demonstrar que a previsão marxiana para o mercado de trabalho no capitalismo, ou seja, de apostar no salário por peça, se assentou nas diversas dimensões demonstradas.

Todo esse quadro aponta a impressionante fragmentação da classe proletária, justamente a apontada por Marx (2015) como capaz de anunciar a dissolução da ordem mundial, até então existente, com negação da propriedade privada e da divisão do trabalho.  Era a perspectiva de uma classe em si (uma certa uniformidade e até universalidade) e para si (sua consciência política, até para a construção de um partido político com visão revolucionária). 

Atualmente, muito se tem debatido sobre as reais possibilidades de tal classe, tão corrompida pela fragmentação e que, em tese, perdendo tanto volume e importância, seria, de fato, capaz de manter tal protagonismo no sentido marxiano. A questão é boa, valeria até um outro artigo para a coluna, ou seja, definir quem seriam os sujeitos revolucionários. Mas, por ora, podemos expectivar como Marx (2015), que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas […]”, razão pela qual, independente de tais sujeitos, a América Latina, por exemplo, arde nas ruas, nas redes sociais e até em suas instituições (Chile, Bolívia, Peru, etc.) em busca de resolver tanta exploração e miséria.”

Marcelo Tolomei Teixeira é juiz titular da 7ª Vara do Trabalho de Vitória/ES e professor universitário. Doutor em Direitos e
Garantias Fundamentais pela FDV. Mestre em Filosofia do Direito pela UFSC. Membro da AJD.

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Fonte: Justificando

Data original da publicação: 21/10/2021

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