‘Passa a existir uma concorrência selvagem entre os entregadores’, diz pesquisador
Professor da UFRB, Bruno Durães conversou com o CORREIO sobre a uberização
Por Thais Borges
Há um grau de estresse e de exigência e de concorrência interna nunca antes imaginado para esse tipo de atividade.
A afirmação é do professor e sociólogo Bruno Durães, coordenador do curso de Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Em entrevista ao CORREIO, ele explicou os principais aspectos e consequências do processo que ficou conhecido como ‘uberização’ – a nova forma de trabalho que chegou até os entregadores de encomenda. Até 14 horas de trabalho e 80 km pedalados por dia: conheça os entregadores por aplicativo
São elementos que colocam novas situações e mazelas sociais. Um exemplo da perda de direitos é que as vezes parece que, de tão moderno que é esse trabalho, é como se ele não tivesse raiz social e nem histórica
Nos últimos tempos, o termo ‘uberização’ do trabalho tem sido muito usado em alguns segmentos. Na prática, o que realmente significa a uberização?
A uberização é um termo que acabou virando sinônimo das mudanças digitais e tecnológicas. As pessoas acabaram usando esse termo para se referir às transformações que estavam acontecendo no capitalismo e, às vezes, esse termo pode passar uma falsa impressão de que foi criado pela Uber, quando na verdade a Uber é apenas mais uma empresa.
A uberização é um processo mais ampliado de transformações que ocorrem no trabalho e, às vezes, tem determinados autores que tratam como sinônimo uberização e economia do compartilhamento, outros incluem capitalismo de plataforma.
Tem um professor da USP (Universidade de São Paulo), Ricardo Abramovay, que tenta justamente fazer uma crítica a essas transformações e ao uso do termo. Ele diz que, sob a retórica do compartilhamento, escondem-se a acumulação de fortunas impressionantes, a erosão de muitas comunidades, a precarização do trabalho e o consumismo.
Dentro desse termo, existe uma inovação da forma e no estilo do trabalho, é inegável. Em alguns casos, até a noção de trabalho parece sumir. Às vezes, falam que é complemento de renda, que é troca de serviços, que é lazer. Existe uma espécie de slogan que ‘é aproveite o seu tempo livre’. Então, a uberização é colocada como algo extremamente positivo e que, às vezes, não é nem trabalho. É como se trouxesse um mundo encantado, que, não importa o lugar, o território.
O que há por trás disso?
Por trás desse debate, existem elementos constitutivos que não são benéficos para os trabalhadores e trabalhadoras. São elementos que colocam novas situações e mazelas sociais. Um exemplo da perda de direitos é que as vezes parece que, de tão moderno que é esse trabalho, é como se ele não tivesse raiz social e nem histórica.
É como se estivesse suspenso por linhas invisíveis digitais e globais, mas, do outro lado dessas linhas, existem empresas muitas vezes multinacionais que verdadeiramente ganham, como é o caso da própria Uber. Ela não está ali trabalhando, está recebendo gratuitamente. Ela não gasta com construções de prédio, não compra carro, não gasta com acidentes, não custeia os carros.
E isso ocorre também com os entregadores de app. É como se fossem trabalhadores informais e autônomos, mas uma espécie de empreendedor digital, quando na verdade quem assume todos os custos e riscos é o trabalhador, não a empresa.
É uma ideia que a gente pensa que é uma forma nova de trabalho, mas ao mesmo tempo, dado esse contexto que o trabalhador ou a trabalhadora assume todos os riscos do processo, inclusive com longas jornadas, as vezes de domingo a domingo, por mais de oito horas por dia, parece um grande tipo de trabalho homogêneo global de pessoas que precisam sobreviver. É uma realidade global desde 2008 e mais recentemente ainda temos alguns países em crise. A depender da situação do país, isso se torna mais calamitoso ainda, como é o caso do Brasil.
Muitas dessas empresas não pagam impostos porque existe o problema de regulação do ponto de vista do direito e das leis. Muitas são startups de aplicativos, então, nem estão ainda regulamentadas do ponto de vista da legislação.
Outro elemento ainda para tratar desse processo de uberização é que externaliza a ideia do controle do trabalho. Esse controle era feito pela própria empresa, que tinha um gerente, um supervisor. Agora, a empresa exerce o controle de duas maneiras: uma é externa, que o cliente faz isso para ela. O consumidor também termina trabalhando para a empresa de app diretamente porque vigia – a pessoa entrega o produto e você faz uma avalição.
Existe uma inovação que essas empresas de app passam a exercer um controle que nunca ocorreu antes, como se fosse um grande Big Brother do trabalho. Ou seja, a empresa acaba gerando um grande sistema de controle como se fosse uma ideia de que aprisiona, literalmente, esses trabalhadores e trabalhadoras.
Conversamos com sete entregadores dos três aplicativos de entrega disponíveis em Salvador: Rappi, Uber Eats e Ifood. Quais são as consequências desse processo de uberização para uma categoria como a dos entregadores de encomenda? E quais as consequências para o mercado de trabalho em geral?
No início, parece algo fantástico e encantador, que estimula o consumo de produtos. Parece ser algo muito bom, pois facilita o acesso aos pedidos, a localização da rua, realmente, isso é fabuloso. Esse capitalismo de plataforma, quando tem a mediação de determinados apps, você ganha um amplitude para o serviço que antes era ofertado sem isso.
Porém, tem elementos de controle nunca vistos, que a gente já colocou um pouco como isso se dá. Existe uma lógica informacional de vigilância, que é baseada em software, algoritmo, que, a partir de repetições, gera um perfil. Pode avaliar a pessoa e expulsar. E isso é feito dentro do próprio aplicativo.
Porém, precisa-se pensar nas consequências sociais, laborativas culturais e humanas disso. Ou seja: existe impacto? Esse impacto é em que? Muda o estilo de vida das pessoas, o modo de ser, a subjetividades das pessoas envolvidas? Será que as pessoas não acabam ficando mais estressadas ali?
Tem uma dicotomia: de um lado tem as trabalhadoras e trabalhadores que estão correndo para sobreviver e, do outro, tem a empresa que é a dona do negócio, apesar de tudo ser caracterizado como uma relação livre entre autônomos, empreendedores digitais.
Um segundo aspecto negativo é a concorrência interna entre entregadores e entregadoras. Isso quebra a organização coletiva dessas pessoas. Se antes você poderia ter um grupo como uma associação ou até sindicato que iria seguir as convenções, como piso salarial mínimo, agora, tudo isso pode cair por terra e de forma volátil. É a ideia do ‘se você não quer, outra pessoa quer’. Se o entregador tradicional não quiser continuar na atividade, terão inúmeras outras pessoas que vão entrar na atividade e não apenas com moto – pode ser com bicicleta ou até andando.
Ao mesmo tempo que permite que pessoas que estão necessitando trabalhem, essa facilidade de acesso pelo celular – de que qualquer um pode ser entregador – quebrou uma barreira de acesso que protegia a profissão. Como diversas profissões, você tem que ter a formação para virar tal coisa. Quando você começa a quebrar essa ideia de que todos podem virar tudo, por um lado, isso é interessante, num momento de calamidade, ou seja, de necessidade social, de crise como esse que a gente passa, porém, tem um elemento aí perigosíssimo. É que agora passa a existir uma concorrência selvagem entre os trabalhadores.
Todo mundo está correndo para bater pontuação, ter metas, ser bem avaliado, tem que estar sempre sorrindo, alegre. Ou seja: é um grau de estresse e de exigência e de concorrência interna nunca antes imaginado para esse tipo de atividade.
Isso gerará, com certeza, um mal-estar laboral. (O sociólogo francês) Pierre Bourdieu chama de gestão racional da insegurança. Só que dessa vez é feita por uma ação racional na empresa e não é feita nem de modo presencial, mas de modo digital e vigilante. Assim, é uma gestão racional da insegurança online. É como se todos esses entregadores passassem a viver num oceano de incertezas digitais.
E um terceiro elemento é que, se você tem mais trabalhadores disponíveis ou em atividade, tem uma consequência imediata na economia. Inclusive na economia clássica, (o economista britânico) Adam Smith já falava isso, que é reduzir o salário. Se você tem muita gente e muita oferta de trabalho, você, mesmo tendo muita procura do serviço, pode reduzir salário, pode pagar menos. Se uma pessoa não quer, a outra vai querer. Isso é uma lógica perversa.
(O sociólogo alemão) Karl Marx, em meados do século 19, no conjunto da sua obra, chega a cunhar um terno chamado ‘exército de reserva’, que é o exército de pessoas aptas ao trabalho. Passa a ideia de que, se você não quer continuar trabalhando com aquele salário, você sai e outra pessoa passa a trabalhar. Se você reduzir sua pontuação e suas metas, você vai ser descartado pelo algoritmo.
Isso vai terminar gerando uma condição da precarização do trabalho, inclusive, da vida e da renda da pessoa. Vai gerar um processo que a professora Graça Druck (da Universidade Federal da Bahia) chama da precarização social do trabalho.
Um dos maiores debates sobre os entregadores de aplicativo diz respeito às bicicletas. A maioria chega a pedalar 50, 60 quilômetros em um único dia para fazer as entregas. De uma forma geral, a maioria deles está muito entusiasmada com a possibilidade de aumentar a renda. Quais são os aspectos que levam a esse entusiasmo?
Primeiro, é a necessidade de sobrevivência. Se analisar os dados das pessoas que iniciam nessas atividades, são pessoas que estão precisando, ou porque estão no início da vida adulta ou para sua sobrevivência mesmo, e aí acabam aceitando esse tipo de trabalho, que é puxado. O trabalho de entrega não é um trabalho qualquer. É um trabalho muito cansativo e de alto risco. Imagine trabalhar numa capital como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, capitais com trânsito complicadíssimo e com violência urbana muito alta.
O segundo elemento é a esperança de uma vida melhor. Esse novo formato de capitalismo acaba vendendo ou passando essa imagem de que é possível melhorar de vida e melhorar pela tecnologia, pelo meio digital. Mas os três primeiros meses são diferentes de a pessoa estar há um ano ou mais de um ano, quando já começa a ter um desgaste físico ou de um carro. Isso termina impactando, a médio prazo, na permanência dessas pessoas.
O terceiro aspecto, então, que pode ser considerado como elemento motivador é uma espécie de fetichismo da tecnologia. Ela tem seus elementos de encantamento.
É possível citarmos outras categorias de trabalho que também passam pela uberização?
Vou me ater em três tipos principais que são os mais representativos no momento, mas existem outros. Acho que a tendência é essa do capitalismo digital ir se expandindo. Você tem transportes, que é a forma que temos mais evidente; as entregas, que são o setor de serviços. Dentro dos serviços, tem conserto, limpeza, camareira, aulas particulares idiomas; sistema de hospedagem como Airbnb, e existem outras formas de hospedagem e serviços de transporte.
Pode fazer uma síntese do sistema atual?
O capitalismo de plataforma ou a lógica de uberização é como se fosse uma resposta à crise do capitalismo de 2008, dos Estados Unidos. Ou seja, esse sistema atual, essa configuração atual que estamos vivendo é uma espécie de retomada do ideário do sistema capitalista – de trabalho e de consumo. Porque o sistema capitalista, inclusive, vai se remodelando a depender da crise que passa. São novas formas de extração de riqueza, no caso, agora via dados e serviços, mas principalmente de dados.
O mais problemático para pensar nesse sistema atual seria como regular essas empresas intermediárias de plataformas que são, muitas vezes, multinacionais. A Uber, por exemplo, não é brasileira. Tudo que ela arrecada aqui do trabalhador, do motorista, vai para outro país, para uma bolsa de valores de outro país. Tem que pensar na proteção social do trabalho e, ao mesmo tempo, na forma de regulação que não expulse por completo esse trabalho. A forma como está hoje é que a balança pende mais do lado do trabalho.
Autores que pesquisam e já escreveram sobre o tema (indicações do professor Bruno Durães:
- Ricardo Abramovay
- Ricardo Antunes – professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 2009, já tinha lançado um livro falando sobre os novos trabalhadores proletários digitais: Infoproletários, da editora Boitempo.
- Tom Slee – O canadense é autor de um livro chamado Uberização: A Nova Onda do Trabalho Precarizado, publicado em 2017, pela editora Elefante. O título original, em tradução livre, seria algo como ‘O que é seu é meu: contra a economia de compartilhamento’. De acordo com o professor Bruno Durães, no livro, Slee explica que esse momento da economia digital formou grandes conglomerados de empresas que ganham muito através da intermediação das pessoas por meio de aplicativos.
“Ele diz que isso terminou gerando uma nova forma de exploração e de acumulação e riqueza em poucas empresas. Ele chama isso de capitalismo de plataforma e diz que isso se diferencia da economia do compartilhamento”, reforça. Para Slee, a economia de compartilhamento, como se pensou originalmente, tinha um imaginário mais solidário, de reciprocidade, numa perspectiva até de cooperativismo, de conectar as pessoas.
Podia ser vista até como alternativa à lógica do próprio capitalismo. “Essa economia do compartilhamento, ele diz, terminou suplantada por uma lógica do negócio, do lucro, inclusive de destruição do meio ambiente, da manutenção da própria ideia do que é o capitalismo, mas reconfigurado ao estilo digital”. - Nick Srnircek – O canadense é autor do livro Capitalismo de Plataformas, publicado em 2017. Ele defende que não é todo trabalho que se torna digital, mas o meio de exercer o trabalho.
- Trebor Scholz – Pesquisador americano, é autor de Cooperativismo de Plataforma: os perigos da Uberização, lançado em 2017. “Isso ajuda a mostrar que esses termos não são um consenso – economia de compartilhamento, economia por demanda. Existem divergências acadêmicas de entendimento dessas realidades”, diz o professor Bruno Durães.
- Juliet Schor: Economista americana e professora de sociologia, estuda a economia do compartilhamento a partir de desigualdade de consumo e impacto ambiental.
- Shoshana Zuboff – Psicóloga americana, estuda o tema a partir do chamado ‘capitalismo de vigilância ou comportamento controlado’.
- Ursula Huws – Socióloga inglesa, é autora de A Formação do Cibertariado – Trabalho Virtual em um Mundo Real, publicado em 2017.
Fonte: Correio
Data original de publicação: 30/06/2019