Uberização e a apropriação monopolizada do modo de vida da periferia: entrevista com Ludmila Costhek Abílio

Imagem: Documentário GIG – A Uberização do Trabalho

Por Digilabour

“Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi uma das primeiras intelectuais a falar de uberização no Brasil a partir do texto Uberização: subsunção real da viração, publicado em fevereiro de 2017. De lá para cá, tornou-se referência obrigatória para quem estuda trabalho digital no país.”

“Ludmila Costhek Abilio é uma das principais conferencistas do Simpósio Brasileiro de Trabalho Digital, que acontecerá em abril na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em Porto Alegre. Em entrevista à DigiLabour, ela falou sobre as mudanças na uberização do trabalho, a importância de pensar as categorias a partir de nossa realidade, o gerenciamento algorítmico, a interseccionalidade no trabalho em plataformas e a generalização produtiva e monopolizada do modo de viver da periferia.”

Confira abaixo alguns trechos da entrevista

DIGILABOUR: O seu texto sobre uberização tem quase três anos, você foi uma das primeiras a falar sobre a questão no Brasil, e de lá para cá o termo se popularizou e o fenômeno também se alastrou. Para você, o que é de fato a uberização e o que mudou de três anos para hoje?

LUDMILA COSTHEK ABILIO: Não tinha pensado nisso, que já faz três anos. A uberização, na verdade, trata da transformação do trabalhador nesse trabalhador just in time. Acho que é uma forma de resumir essa história. Mas é uma definição complexa. A ideia do trabalhador just in time é a de que você consegue consolidar uma forma de subordinação e gerenciamento do trabalho que está inteiramente apoiada num lado, em um trabalhador desprotegido. E essa desproteção é mais perversa do que simplesmente a ausência de direitos, de uma formalização do trabalho. É um trabalho totalmente desprotegido em termos legais, transformado nesse nanoempreendedor de si próprio, que não conta com nenhuma garantia associada aos direitos do trabalho. Mas eu acho que isso é uma coisa ainda mais profunda. Não que essa desproteção não seja muito importante já de saída, mas há a ideia de que você constitui uma multidão de trabalhadores disponíveis ao trabalho e que vão sendo recrutados. Você tem meios tecnológicos hoje para organizar isso. Então, eles vão sendo recrutados na exata medida das demandas das empresas ou do capital, se a gente quiser falar de uma forma mais genérica, e que não tem garantia alguma sobre sua própria forma de reprodução social. Ser just in time também trata dessa eliminação, que já estava em curso com a flexibilização do trabalho, das definições entre o que é tempo de trabalho e o que não é, o que é o local de trabalho e o que não é. Então, eu acho que a uberização envolve basicamente a consolidação do trabalhador just in time. Isso tem a implicação de que você não terá mais a garantia sobre sua própria remuneração e sua carga de trabalho. Aí entra um processo também muito importante que é a amadorização do trabalho, ou seja, um deslocamento da figura do Estado como regulador das relações de trabalho e que confere legalmente uma identidade profissional. Não só o Estado, mas as próprias relações de trabalho que constituem essa identidade. E isso vai sendo deslocado para a formação de uma identidade amadora. Ser amador é ser extremamente flexível, polivalente e com novas formas de reconhecimento social. É um deslocamento grande em jogo. Eu venho pensando muito como, de repente, o termo se espraiou. Mas eu acho que ele tem essa raiz comum e talvez ele esteja causando impacto porque existe uma percepção social de que isso é uma tendência que está costurando o mundo do trabalho muito além do motorista Uber ou do motoboy, como se todo mundo se soubesse potencialmente uberizável, atravessando as relações afetivas, uma série de formas e esferas da vida que às vezes nem estão se configurando como parte do mundo do trabalho, mas estão postas ali.

DIGILABOUR: O que será que é especificamente brasileiro nessa uberização do trabalho? Ou ainda, como não importar acriticamente categorias de análise sobre uberização?

ABÍLIO: A uberização vem junto com uma série de desafios que a gente vive permanentemente a partir da periferia. Tem a questão das nossas categorias de análise. A gente sempre constrói nossas categorias a partir do que nós não somos e do que deveríamos ser. Nunca damos conta de escrever de fato o que somos. E isso tem uma capacidade e uma potência de invisibilização social gigantesca. Você invisibiliza a realidade da maioria da população brasileira em nome de categorias que não nos servem. O trabalho formal é um exemplo. Não que isso não nos sirva de horizonte ou que tenhamos que jogar isso fora, mas a forma como a gente vai constituindo nossas categorias de análise reafirmam sempre que aquilo que não cabe na categoria é exceção. Aí é uma regra que nunca se generaliza e você não dá conta de explicar a realidade. E o que eu acho que a uberização faz, assim como outros processos, é mostrar que o que a gente entendeu como exceção, na verdade, é a regra. Se já era assim ou não, é uma discussão: o trabalho informal era um resíduo? Eu acho que nunca foi. O trabalho informal é central no desenvolvimento capitalista, mas há teorias que entendem que ele se configurou como um sinônimo de subdesenvolvimento, como algo a ser superado. E essa ideia se desfez, né? A gente não pensa mais “ah, o trabalho informal vai desaparecer”. Não, até a gente vê o Presidente da República falando “olha, a informalidade é a regra”. A gente vê uma reforma trabalhista que mira na informalidade e traz para dentro do trabalho formal. O que a uberização mostra é uma outra possibilidade também da gente compreender o que é a própria periferia, quando você tem essa tendência generalizante de características que são estruturais da periferia e tomam dimensões também nos países do Norte. Acho que a gente sempre tem que ter muito cuidado com termos como gig economy, economia dos bicos, como se isso fosse uma exceção, uma forma transitória de sobrevivência. Isso é uma coisa estrutural que está tomando novas dimensões e uma nova visibilidade. Acho que esse é um caminho importante para nós pensarmos.

Clique aqui e confira a entrevista completa

Fonte: Digilabour
Data original de publicação: 31/01/2020

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »