Arbítrio patronal e contrato intermitente
Por Lawrence Estivalet e Paula Cozero | JOTA
“(…) medem as jornadas de trabalho com aqueles relógios derretidos de Salvador Dalí.” – Eduardo Galeano
“A insegurança e a imprevisibilidade caracterizam nossos tempos e, ao que tudo indica, marcarão o pós-pandemia, como recentemente o Banco Mundial apontou, em estudo referente ao comportamento da produtividade do trabalho após acontecimentos adversos, como crises financeiras, guerras, pandemias e outros eventos classificados como desastres naturais. Na publicação, o órgão multilateral estima queda de 9% da produtividade nos próximos três anos e atribui o problema à redução de investimentos, cuja causa tem relação com o aumento da imprevisibilidade e incerteza[1].
Diante do cenário de insegurança, a solução encontrada pela classe patronal – que conta não apenas com a conivência, mas com o estímulo do governo federal – parece ser a transferência da incerteza às trabalhadoras e trabalhadores. A destinação orçamentária para fiscalização de violações de direitos trabalhistas foi fortemente reduzida[2]. A tendência de legalização da fraude – ou de vistas grossas em relação a ela – parece explicar o comportamento de parcela significativa da classe patronal, à espera de fórmulas jurídicas que lhes garantam mais segurança e reduzam os riscos inerentes à atividade econômica.
O contrato intermitente expressa justamente uma dessas “fórmulas mágicas” que, com um grau muito baixo de comprometimento das empresas no que se refere a direitos, transfere os riscos da atividade econômica a quem trabalha. Esvaziam-se de sentido o princípio da alteridade, os deveres contratuais do empregador, bem como o compromisso e a conciliação que caracterizam o artigo 2º da CLT.
A adoção do contrato intermitente, na prática, é bem menor do que a apregoada quando se apresentavam as justificativas para aprovação da reforma trabalhista. Ainda assim, as notícias sobre a maior expressividade de contratações nessa modalidade durante a pandemia[3] trazem à tona tanto a questão do aumento do poder patronal nos processos de regulação das relações trabalhistas – que se encontra garantido tanto pela legislação quanto pela ausência de fiscalização –, quanto da ampliação da população subocupada por insuficiência de horas trabalhadas.
Como o mais impactante exemplo de legalização de contratos com jornadas insuficientes no Brasil, o controverso “contrato zero hora”, na esteira do contrato em tempo parcial, expressa a tendência à formalização de trabalhos com jornadas reduzidas, que não garantem um patamar mínimo de renda mensal. Impera o puro arbítrio patronal: a pessoa contratada é chamada quando a empresa decidir e recebe apenas pelas horas trabalhadas.
O aumento da população subocupada por insuficiência de horas já era uma tendência antes da pandemia: passou de 4,9 milhões, em 2014, para 7,5 milhões, em 2019, segundo o IBGE. Mas a dinâmica de despadronização de jornadas de trabalho reforça-se no contexto pandêmico, colocando-se em um movimento paradoxal. Muitas pessoas trabalhando demais. Outras tantas, de menos.
De um lado, empregos com jornadas extensas, com impactos à qualidade de vida e à saúde. Nessas situações, as horas extras não são, em regra, remuneradas adequadamente, devido a medidas como a adoção massiva de banco de horas ou a utilização das exceções ao controle de jornada previstas no inconstitucional artigo 62 da CLT, como o caso do teletrabalho.
De outro lado, pessoas trabalhando menos tempo do que o necessário para garantir renda suficiente para sua reprodução e de sua família, como nas hipóteses dos contratos em tempo parcial e intermitentes ou, ainda, dos contratos afetados pela medida de diminuição de jornada com redução de salários prevista na Lei nº 14.020/2020, referente ao Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
Os dois casos vêm acompanhados da tendência de não pagamento por horas à disposição e de uma dinâmica de mais flexibilidade na distribuição do tempo de trabalho[4]: jornadas menos previsíveis, mais elásticas e em horários tradicionalmente tidos como de descanso – à noite ou aos domingos, por exemplo. Ápice da elasticidade, a uberização do trabalho[5], cada vez mais difundida, apresenta-se ligada tanto às jornadas extensas quanto às insuficientes.
No caso das empregadas e empregados intermitentes, como a regulação sobre a matéria na CLT, nos artigos 443, §3º e 452-A[6], não garante nem jornada mínima mensal nem renda, reina a imprevisibilidade.
Pesquisa do DIEESE, divulgada em janeiro de 2020, aponta que, em 2018, quando o salário mínimo era de R$ 954,00, a média da remuneração do emprego intermitente foi de R$ 763,00 mensais, sendo que 11% dos vínculos não geraram qualquer atividade ou renda durante todo o ano. Em dezembro de 2018, 43% dos vínculos de empregos intermitentes que registraram trabalho tiveram rendimentos inferiores ao salário mínimo.
Não é à toa que as pessoas contratadas na modalidade intermitente, ao invés de serem abarcadas pelas regras da Lei nº 10.020/2020, que trata das medidas que podem ser adotadas no âmbito das relações de emprego durante a pandemia, fazem jus ao recebimento do benefício emergencial, implementado para ser pago em casos de desemprego ou informalidade.
Isto é, no que se refere à garantia de renda e direitos, empregadas e empregados intermitentes guardam mais proximidade às pessoas que estão desempregadas ou trabalhando na informalidade do que às que estão em contrato de trabalho padrão[7]. (…)”
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Fonte: JOTA
Data original da publicação: 16/10/2020