Carta em homenagem ao sociólogo Francisco de Oliveira – XVI Encontro Nacional da ABET

Imagem: Ana Paula Paiva/Valor/Agência O Globo

XVI ENCONTRO NACIONAL DA ABET
Salvador, 03 a 06.09.2019

Mesa de Abertura
Reitoria da Universidade Federal da Bahia, 03 de setembro de 2019

HOMENAGEM AO SOCIÓLOGO FRANCISCO DE OLIVEIRA

Por Anete Ivo

(Inicialmente gostaria de cumprimentar a Profª Dra. ANGELA BORGES, Presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, estendendo esse cumprimento às demais autoridades que compõem essa mesa, aos membros da diretoria da ABET e a toda equipe de organização desse evento.)

Meus colegas professores, pesquisadores, alunos e funcionários aqui presentes.

Boa noite!

Hoje, nesse auditório da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, que tantas vezes acolheu o sociólogo Francisco de Oliveira, nós gostaríamos de homenageá-lo pelo reconhecimento das instigantes reflexões que dele recebemos ao longo da sua trajetória intelectual. Trajetória marcada por uma relação íntegra entre o autor e sua obra, autoconsciente da sua função como intelectual crítico. Também entendemos que essa é uma celebração da amizade e respeito pela pessoa e o intelectual comprometido, que se dedicou, num esforço contínuo, a repensar as relações contraditórias do capitalismo periférico, no Brasil, e a partir do Brasil. Entendemos que esses dois objetivos, o do reconhecimento intelectual e o da celebração da amizade, não se anulam, mas, na verdade, revelam o alcance das suas contribuições, a sua legitimidade na produção do conhecimento científico e a sua grandeza humana.

Agradeço esse convite aos organizadores desse Encontro, em especial às profªs Graça Druck e Ângela Borges, pela generosidade e confiança de me fazerem porta-voz dessa justa homenagem, que não é só minha, mas de todos. Com sinceridade, não me sinto a pessoa mais competente para essa tarefa, já que alguns colegas produziram consistentes reflexões sobre a sua obra e estiveram mais próximos do seu trabalho nos últimos anos (refiro-me aqui a Cibele Rizek, Ruy Braga, Roberto Shwarz, além de outros resenhistas dos seus trabalhos).

Também na Bahia, outros colegas do CRH seguiram mais de perto suas contribuições, em diversas oportunidades de congressos e grandes reuniões realizadas na UFBA, nos anos mais recentes. Portanto, essa ousadia de me dispor a essa justa homenagem ao “Chico” (com perdão dessa intimidade), só se justifica como um exercício de tornar evidentes as suas relações com a trajetória institucional do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades – CRH, que, esse ano, completa 50 anos e que, em diversas oportunidades dialogou com suas ideias, compartilhou projetos e dele recebeu contribuições relevantes na área dos estudos sobre trabalho, classes e desenvolvimento.

Evidentemente, essa homenagem impõe escolhas e um esforço de síntese, para ajustá-la a uma cerimônia de abertura. E falar do sociólogo Francisco de Oliveira, nesse caso, nos faz voltar a momentos da vida institucional do Centro (CRH), que teve nele um crítico, um amigo e um conselheiro. Dessas lembranças eu citaria, em pinceladas intuitivas, alguns encontros:

  • A sua elaboração do Prefácio do livro, Bahia de Todos os Pobres, publicado em 1980 pelo Cebrap organizado pelos saudosos Guaraci Adeodato A. de Souza e Vilmar Farias, com resultados da pesquisa “Força de trabalho e Emprego”, numa parceria institucional entre o CEBRAP e o CRH (nesse livro comparecem yambém como autores, Vilmar Farias; Paul Singer; José Reginaldo Prandi; Elizabeth Jelin e as pesquisadoras da Bahia CRH: a própria Guaraci Adeodato A. de Souza; Inaiá Mª M. de Carvalho e Ângela Ramalho Vianna)
  • A sua presença como consultor externo no seminário de formulação das linhas de pesquisa do CRH, em 1981, por ocasião da discussão de um amplo programa de pesquisas sobre a dinâmica da força de trabalho, da população e da educação, numa perspectiva temporal, de 1960 a 1980 (quando também estiveram presentes como consultoras a Dra. Elsa Berquó e a Profª Neide Patarra).
  • A sua presença ativa nos encontros e seminários realizados pela articulação de pesquisadores em Ciências Sociais do Norte e Nordeste, entre os quais lembro o IV Encontro das Ciências Sociais, realizado em Salvador, especialmente no debate sobre classes sociais, em 1987.
  • E, mais recentemente, a sua presença em grandes encontros e conferências, nessa universidade, como os Encontros de São Lázaro (organizados à época pelo Prof. Dr. João Carlos Salles, então diretor da FFCH- e hoje Reitor dessa Universidade), para discutir as mudanças na conjuntura política brasileira no contexto do neoliberalismo. Momentos marcados pela presença massiva de estudantes e professores cujo interesse e mobilização ultrapassavam a capacidade de acomodação desse auditório.

Como sabemos, a construção de um texto de homenagem não é tarefa simples, pois combina traços biográficos e a discussão de um legado, num esforço de síntese. Aqui não vamos tratar dos caminhos biográficos (já apresentados anteriormente, nessa sessão- ver Power Point) e escolhemos ressaltar algumas singularidades intelectuais de “Chico” de Oliveira, que caracterizam, ao mesmo tempo, a sua forma de trabalho, o seu campo de estudos e o seu perfil intelectual, tais como, o que chamo de sua pedagogia crítica, associada ao seu papel de intelectual; o seu compromisso com o presente (nas análises de conjuntura), de uma perspectiva da mudança histórica; e sua tentativa de compreensão totalizadora, permeando campos interdisciplinares entre a Economia, a Sociologia e a Política, sem complacência ou ressentimento de dois mundos: o da natureza do capitalismo periférico e o das reconfigurações das classes e agentes, como sujeitos produtores e resultantes desses caminhos.

A pergunta norteadora é: o que aprendemos com “Chico” de Oliveira?

  • Em primeiro lugar (e em relação ao momento presente) importa registrar a clareza de “Chico” quanto à Universidade como um lugar essencial de expressão da inteligência, da cultura e da crítica. Ruy Braga relata em vídeo que, quando pretenderam homenageá-lo, em São Paulo, ele só aceitou sob condição de que aquela homenagem fosse realizada no espaço da Universidade. Com essa recomendação ele reafirmava a condição essencial da autonomia e da liberdade intelectuais, só possíveis, acrescentamos, num pensamento livre e democrático das Universidades Públicas. E é exatamente sob essa inspiração que realizamos hoje, aqui, nessa Universidade, as diversas atividades e reflexões sobre o mundo do trabalho.
  • Na sua trajetória intelectual destaca-se uma singularidade principal: um exercício de crítica vigilante às modalidades contraditórias e combinadas do capitalismo periférico para as quais, e nas quais, a ação do Estado brasileiro e dos seus agentes dominantes, e as especificidades assumidas pela democracia, são elementos decisivos. Essa pedagogia crítica expressa, em realidade, uma forma e caminho do trabalho intelectual de Francisco de Oliveira que ultrapassa os limites dos seus objetos de análises e é mais ambiciosa: pensa-se a si mesmo como intelectual orgânico, comprometido com o seu tempo e as suas circunstâncias, com capacidade de avaliar e reavaliar processos, formular “desejos” e ambições sociológicas.
  • Dessa perspectiva, ele observava uma necessária articulação entre o mundo acadêmico, a política e a vida pública, fazendo com que a sua obra ultrapassasse um saber fechado sobre si mesmo, para assumir um papel público, conectando o seu conhecimento à dinâmica de expansão da sociedade civil e às diversas formas de ação e lutas, na formulação de um projeto político que contemplasse os “subalternos”. Assim, contribuiu para a criação de instituições políticas, partidos e sindicatos de trabalhadores e atuou também como jornalista, como engajamentos inerentes à sua práxis intelectual e acadêmica.
  • Uma quarta contribuição das suas análises é o seu compromisso com o presente. Os seus artigos e livros sempre dialogaram com o presente, com excelência, sofisticação de estilo e elaboração teórica.

Pode-se aludir que as análises de conjuntura muitas vezes têm pouca validade porque não abarcam maior fôlego teórico. Na obra de “Chico”, o acompanhamento das diversas conjunturas nacionais tem uma perspectiva temporal, da mudança social, e não se descola da necessária teorização sobre o caráter do capitalismo periférico e o papel dos seus agentes, governos, classes e partidos. Assim, uma obra como A Crítica à Razão Dualista, de 1972, mantém-se uma referência do pensamento social brasileiro, pela sua originalidade na interpretação do desenvolvimento periférico, revisitada pelo próprio autor, em O Ornitorrinco, em 2003. Ali ele superava a funcionalidade dicotômica e mecanicista que opunha o tradicional ao moderno, e observava como esse tradicional assume, nessa sociedade, uma forma de ser moderno, produzindo, no entanto, uma violência extremada de subalternidade dos trabalhadores e das classes populares.

Do ponto de vista metodológico, a natureza macroestrutural de sua obra contribui para um universalismo intelectual que busca, exatamente, explicar as singularidades do desenvolvimento brasileiro sem perder a sua dimensão histórica, os traços combinados e as formas específicas da sua integração periférica no processo de acumulação capitalista global. Assim, ele decifrou teoricamente a heterogeneidade do mercado de trabalho, a subalternidade das classes populares no circuito de um país altamente modernizado, e, também, a questão regional. No contexto de hegemonia neoliberal mais recente (que ele denomina de “totalitarismo neoliberal”), “Chico” faz um retorno aos autores clássicos do pensamento social brasileiro e demonstra como as transformações recentes ocorridas no Brasil levaram a um processo de “irrelevância da política” e a um tipo de “sociabilidade regressiva”.

Por fim, no seu livro: Brasil: uma biografia não autorizada (2018), ao retomar o caráter nacional brasileiro, “Chico” de Oliveira reinterpreta o “jeitinho brasileiro” não somente pela capacidade de improvisar soluções ou combinar traços culturais das elites brasileiras – egoístas e predatórias -, com a modernização econômica, mas como uma forma de se adotar o capitalismo como solução incompleta – que avançou no âmbito da revolução produtiva, mas não aprofundou soluções civilizatórias, típicas dos países do centro, na periferia do sistema. Conquanto esse diagnóstico possa ser polemizado, considerados os avanços políticos dos atores sociais, pactuados na Constituição de 1988, e o funcionamento, mesmo problemático, das instituições da República, “Chico” de Oliveira afirma que o movimento central desse Jeitinho brasileiro abriu-nos as portas para um horizonte ainda mais rebaixado de expectativas quanto à nossa potencial civilidade (Oliveira, 2018).

Portanto, na ocasião da abertura do XVI Encontro Nacional da ABET, na Bahia, sob a liderança de um dinâmico núcleo de sociólogos do trabalho, Francisco de Oliveira não poderia estar ausente. Como que num ritual de memória, agradecimento e reconhecimento, mais uma vez o conclamamos a essa Reitoria e o tornamos PRESENTE, fechando um ciclo da trilogia da dádiva acadêmica, que, no “retribuir”, abre-se a um espírito crítico, aqui renovado pelas centenas de pesquisadores de várias gerações, seja como inspiração e/ou forma de polemizar com a sua obra e as suas ideias, num momento em que o diálogo, o reconhecimento e o afeto, para além da crítica, também assumem um estatuto político de caminho civilizatório, nesse “País tão desconcertante e desconcertado”.

Muito obrigada!

Anete Ivo

Fonte: XVI ENCONTRO NACIONAL DA ABET
Data original da homenagem: 03/09/2019 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »