Entregadores de aplicativos: condições de trabalho e organização coletiva | Entrevista exclusiva com Andréia Galvão, Luci Praun, Ludmila Abílio e Marco Santana
Por Bruna Gomes | Equipe ABET
Submetidos a extensas jornadas de trabalho, baixa remuneração e desproteção social, os entregadores de aplicativos têm se sobressaído no atual contexto de crise sanitária enquanto uma das categorias de trabalhadores mais explorada. A realidade dos trabalhadores de aplicativos é a cara das novas relações de trabalho que se estabelecem no país a partir da aprovação da Reforma Trabalhista de 2017 e do aumento do chamado “trabalho uberizado”.
As condições de trabalho dos entregadores, que já realizam uma atividade perigosa em tempos normais, foram ainda mais precarizadas durante a pandemia da Covid-19 com a falta de equipamentos de segurança, aumento da jornada e diminuição da renda. Operando um dos serviços considerados essenciais no período de pandemia e isolamento social, os entregadores demonstraram no começo deste mês a potência da luta dos trabalhadores, a partir da greve nacional que aconteceu dia 1 de julho e que atingiu tanto os aplicativos quanto os consumidores[1].
“A força de trabalho faz tudo! Então por que que a gente tá passando fome?” questiona Paulo Galo, líder do movimento Entregadores Antifascistas. A pergunta de Galo revela que as pautas da organização coletiva dos entregadores dizem respeito, sobretudo, a condições básicas de trabalho e sobrevivência. A greve deste mês evidenciou a realidade destes trabalhadores e suas demandas, e revelou ainda as consequências do avanço da uberização do trabalho, tendência que avança a passos largos para as experiências de trabalho em geral.
Para refletir sobre as condições de trabalho desta categoria e os efeitos de sua organização política, a ABET buscou ouvir as contribuições de estudiosos do mundo do trabalho que têm se debruçado sobre o movimento dos entregadores no último período.
Para tanto, entrevistamos as pesquisadoras Andréia Galvão (Unicamp/REMIR), Luci Praun (UFAC), Ludmila Abílio (CESIT/REMIR) e o pesquisador Marco Santana (IFCS/UFRJ).
Confira o resultado da entrevista a seguir. Boa leitura!
Quais são as principais transformações recentes no trabalho dos entregadores com a chegada dos aplicativos?
LUDMILA ABÍLIO: A profissão dos motoboys sempre foi arriscada e precária. Entretanto, podemos seguramente afirmar que com a entrada das empresas-aplicativo no mercado, seu trabalho se reorganizou e as condições de trabalho deterioraram. É preciso compreender que o processo de uberização opera numa informalização das relações de trabalho por um lado e por outro em uma monopolização das empresas, que centralizam o controle sobre uma crescente e gigante multidão de trabalhadores. Com isso, os trabalhadores vão vendo mudanças estruturais na definição e nas condições de seu trabalho. Podemos elencar alguns elementos importantes: 1) há uma redução muito significativa do valor da hora de trabalho ao longo destes anos; 2) há extensão da jornada de trabalho, que não vem acompanhada de maior remuneração, pelo contrário; 3) há uma incerteza permanente sobre o viver cotidiano destes trabalhadores. Inicia-se o dia sem se saber quanto irá ganhar, quantas horas será necessário trabalhar para receber o mínimo necessário para sua reprodução, além das ameaças permanentes de desligamento; 4) o trabalhador arca com custos e todos os riscos de sua atividade.
A uberização também vai ocasionando uma transformação na identidade profissional do trabalhador. A adesão ao trabalho ao invés da contratação e as formas de gerenciamento que operam sobre a multidão vão transformando a profissão em trabalho amador, ou seja, algo precário, passageiro, instável, que qualquer um teoricamente pode fazer, o que está longe de ser verdadeiro. Veja que simbólico, a própria nomeação se desloca – de motoboy/motofretista para entregador, o que homogeiniza diferentes perfis e modos de trabalho – dos bike boys, entregadores de patinete ou até mesmo a pé –– pela forma que estão subordinados.
Quais as principais reivindicações dos entregadores de aplicativos e o que elas nos dizem sobre suas condições de trabalho?
MARCO SANTANA: A pauta apresentada publicamente pelo movimento de entregadores e entregadoras traz pontos como o aumento do valor mínimo da entrega, o aumento do valor por Km percorrido, seguro de roubo, acidente e vida, o fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) como álcool em gel e máscaras, auxílio-doença em caso de afastamento por contaminação pela Covid e o fim dos bloqueios e desligamentos indevidos. Dada a diversificação interna da categoria, vários outros pontos surgem aqui e ali, mas esse primeiro conjunto é aquele que tem sido o mais convergente em termos de demandas unitárias possíveis.
Para se ter uma visão mais ampliada desse movimento, temos de levar essas reivindicações em conta, mas também é preciso incorporar muitas outras que estão presentes nas falas de trabalhadores e trabalhadoras na grande ocupação que esse movimento faz nas redes sociais. Somadas, entre outras possibilidades, elas dão conta de um movimento de luta por reconhecimento social e dignidade no trabalho.
As falas de entregadores e entregadoras têm sido muito elucidativas nesse sentido ao dizerem que estão a demandar “o básico do básico”. Isso nos remete diretamente não apenas às condições de trabalho desse setor da classe trabalhadora brasileira, mas também sobre o contexto mais geral do mundo do trabalho em nosso país. Temos visto desde o governo Temer um intenso ataque aos direitos de trabalhadores e trabalhadoras, claramente exposto no desmonte das proteções sociais ao trabalho com a chamada reforma trabalhista e a lei da terceirização, por exemplo, e continua até o governo Bolsonaro com a reforma da previdência. O cenário antes da chegada da pandemia já é de desproteção social, precarização informalidade e desemprego. A pandemia deixa isso escancarado e agrava ainda mais os seus impactos.
É nesse quadro que se situam as demandas de entregadores e entregadoras em sua luta contra a precarização do trabalho e da vida. Uma categoria que passou por mudanças quantitativas e qualitativas nos últimos tempos, que já vinha cumprindo atividade importante em termos de reprodução social e que, hoje, sobretudo, cumpre atividade essencial em termos da política sanitária de isolamento social.
A categoria já exposta cotidianamente pelo trabalho desprotegido socialmente, pois, como eles e elas mesmo percebem estão “por sua conta e risco”, “não tem direito à nada”, “quem só corre? Quem socorre?” etc., durante a pandemia se viu no trágico dilema de escolher entre morrer do vírus ou morrer de fome. Ela foi jogada na exposição de alto risco nas cidades durante a pandemia e sem sequer o parco auxílio emergencial do governo.
As empresas de aplicativos, que buscam constantemente fugir de qualquer vínculo e responsabilização para com a categoria, considerando-os apenas como “parceiros”, “prestadores de serviços” etc. – o que está claro que não são -, utilizaram-se do contexto pandêmico – com aumento no uso do serviço -, bem como de informalidade, precarização e desemprego, para aumentar sua lucratividade. A entrada massiva de novos trabalhadores e trabalhadoras produziu o aumento de ganhos das empresas e a diminuição dos possíveis ganhos de entregadores/as.
É por isso que suas demandas, ao mesmo tempo em que falam das duras especificidades em termos de sua atividade laboral, lançam luz sobre os processos sociais e de trabalho que foram destituídos e constituídos no Brasil recente.
É possível relacionar as condições de trabalho atual dos entregadores à reforma trabalhista aprovada em 2017? Se sim, de qual maneira?
ANDRÉIA GALVÃO: Sem dúvida, pois a reforma trabalhista de 2017 ampliou as formas de contratação precárias. Embora elas já existissem no mercado de trabalho, muitas não eram admitidas pela legislação. Algumas delas até podem levar à formalização do trabalho, mas em condições rebaixadas, como o contrato intermitente, por exemplo, no qual o trabalhador só ganha o correspondente às horas trabalhadas, sem a garantia de receber sequer o salário mínimo. A possibilidade de contratar prestadores de serviços como autônomos permanentes, por meio de figuras como Pessoa Jurídica (PJ) e Microempreendedores Individuais (MEI), estimula a burla, permite a substituição de assalariados por falsos autônomos e transfere para o trabalhador, convertido em empreendedor de si mesmo, o ônus de assegurar sua proteção social. A extensão da terceirização para qualquer atividade permite contratar trabalhadores com salários mais baixos e menos benefícios, além de fragmentar coletivos de trabalho em categorias profissionais e, portanto, em sindicatos distintos. A reforma promoveu a legalização do bico, autoriza formas de contratação que não dão acesso a direitos, ou que asseguram menos direitos, instituindo uma espécie de cidadania de segunda classe, que tende a se expandir para diferentes setores de atividade. Essas medidas, somadas às mudanças nas formas de organização e gestão do trabalho e às novas tecnologias, ampliaram a vulnerabilidade e a insegurança no mercado de trabalho. O teletrabalho e o trabalho por plataforma são apresentados como facilidades, como expressão de uma tendência inevitável de modernização das relações de trabalho, quando, na prática, são formas das empresas economizarem, transferindo os riscos e os custos inerentes ao processo de trabalho ao trabalhador e à trabalhadora.
Além disso, a prevalência do negociado sobre o legislado, combinada à individualização das relações de trabalho e às estratégias para contornar os sindicatos (permitindo acordos individuais e a exclusão dos sindicatos do processo de negociação), fomenta duas ideias nocivas para a organização e a ação coletiva: a flexibilização de direitos e o empreendedorismo como solução para a crise de emprego. A despeito de serem duas falácias, a difusão dessas ideias favorece sua assimilação tanto pelos trabalhadores, quanto pelos legisladores e pelos membros do judiciário - que tendem a decidir em favor das empresas, negando o reconhecimento do vínculo de emprego com os aplicativos, por exemplo -, o que dificulta a resistência a esse discurso, mas não a impede, como a mobilização dos entregadores demonstra. Os entregadores têm contribuído para desmistificar esse discurso, mas ainda falta muito para que se possa ampliar e consolidar esse processo. É preciso ter clareza de que a flexibilização é um eufemismo para reduzir ou retirar direitos através da lei e da negociação; que empreendedorismo é um mito que oculta, por trás do discurso da criatividade, da autonomia e da liberdade, o fato de que as pessoas não têm as mesmas condições de empreender, e que, portanto, o mérito e o esforço individual não são suficientes para assegurar proteção social; e que não é natural, ou justo, que cada um tenha seu bem-estar determinado por aquilo que pode comprar no mercado. É preciso defender o papel do Estado, do direito e das políticas públicas contra o aprofundamento do projeto neoliberal e, ao mesmo tempo, construir uma identidade coletiva na qual trabalhadoras e trabalhadores, independentemente de sua situação ocupacional, de sua profissão, de seu tipo de vínculo de emprego, se reconheçam. Dito de outro modo, é preciso reconstruir um pertencimento de classe. Esse é um desafio e tanto, pois requer enfrentar não só o governo e as empresas que descumprem acordos e retiram direitos, mas a ideologia que acompanha essas medidas.
Quais os efeitos dos discursos de “empreendedorismo” e “meritocracia” para a realidade dos entregadores de aplicativos?
LUCI PRAUN: O discurso do empreendedorismo articula múltiplas pretensões. É difícil hierarquizá-las, ainda que possamos colocar em destaque sua ambição de destituir o trabalho de sua essência coletiva, enfraquecendo-o enquanto poder de classe. Busca, dessa forma, desconstruir uma dada consciência forjada ao calor das mobilizações da classe trabalhadora e consolidada no período que antecede a ascensão das políticas neoliberais. Essa consciência estabelecia vínculos muito claros entre relações de trabalho e acesso a direitos. A ideologia do empreendedorismo busca rompê-los de forma a abrir espaço para a hiperflexibilização e superexploração do trabalho.
Sabemos, claro, que o mercado de trabalho brasileiro sempre foi historicamente marcado pela persistência dos vínculos informais, da alta rotatividade e do amplo desemprego. Isso implica em observar que uma parcela expressiva de homens e mulheres que vivem do seu trabalho jamais teve acesso aos direitos trabalhistas. Outra, também importante, acessou esses direitos de forma parcial e esporádica.
Entretanto, é bastante pertinente também notar que o emprego formal e, de preferência em empresas de médio e grande porte, locais em que os trabalhadores tendiam a ter maior poder de força e, consequentemente, mais direitos assegurados, sempre esteve no horizonte da maior parte da classe trabalhadora, inclusive dos segmentos mais jovens.
Essa perspectiva, também ancorada no acesso aos direitos sociais, a exemplo do previdenciário, expressou-se ao longo de décadas (e em alguma medida ainda se expressa) na projeção de que uma vida dedicada ao trabalho duro poderia ser recompensada com o acesso à aposentadoria, ao merecido descanso na velhice.
O discurso de empreendedorismo, que traz consigo a noção meritocrática, busca desmontar essa consciência herdada das gerações mais velhas da classe trabalhadora. Visa também, portanto, moldar, sobretudo entre os mais jovens, percepções e comportamentos, adequando-os às necessidades de um mercado global, financeirizado, propenso a crises constantes, que avança progressivamente sobre áreas sociais antes reservadas à atuação do Estado. Apesar da incapacidade de oferecer algo que vá além da instabilidade, precariedade e ausência de direitos, o capitalismo, por meio de seus gestores, precisa convencer a todas e todos que a única saída existente está ao alcance da mão de cada um, que o sucesso na vida equivale ao que cada um pode demonstrar por meio de seu esforço, flexibilidade e resiliência.
Essas ideias, que lastreiam a sociabilidade contemporânea, não avançam à toa. Ganham força em meio a um conjunto de condições socioeconômicas que lhes são, ao menos do ponto de vista imediato, favoráveis (vale aqui destacar o papel da contrarreforma trabalhista de 2017). É em meio às pressões para a adesão nada espontânea aos Plano de Demissão Voluntária (PDV), ao acentuado medo do desemprego, à perda progressiva de direitos, ao estar exposto aos humores do mercado, que a ideologia da liberdade de escolha e da possibilidade de ser dono de seu próprio destino ganham espaço. No fundo, entretanto, o que todos e todas buscam e não tardam a descobrir é que são movidos, de fato, pela urgência da Sobrevivência. A dura experiência cotidiana das longas jornadas de trabalho, da baixa remuneração, da ausência completa de direitos, vai aos poucos derrubando da falsa sensação de ser vantajoso, em nome de ser patrão-de-si-mesmo, não ter salário fixo, não ter uma jornada de trabalho legalmente limitada, não ter férias, não ter nada.
As mobilizações lideradas pelos entregadores de aplicativo, assim como as de outros segmentos que compõem o que temos denominado de trabalho uberizado, resultam em grande medida desse confronto entre a ideologia do empreendedorismo e a realidade da exploração do trabalho a que nos encontramos submetidos. Esse confronto, ao ser capaz de reestabelecer, também no campo das ideias, o lugar que ocupamos no mundo, abre o caminho para a solidariedade de classe, ainda que com todas as nuances que essa possa conter.
De que forma a greve dos entregadores pode nos ajudar a pensar as transformações na organização coletiva dos trabalhadores no Brasil?
ANDRÉIA GALVÃO: A greve nos mostra que os trabalhadores precários e informais, submetidos a uma relação de assalariamento disfarçada e tratados equivocadamente como prestadores de serviços, podem se organizar e se mobilizar para reivindicar melhores condições de trabalho das empresas que os exploram. Mostra também que a tecnologia, que controla e subordina o trabalho dos entregadores às determinações das detentoras dos aplicativos, pode ser usada para aproximar trabalhadores territorialmente dispersos, permitindo-lhes trocar informações, fazer denúncias e construir uma rede de solidariedade. As manifestações nas redes sociais e grupos de whatsapp mostraram que a insatisfação com os aplicativos era generalizada, possibilitaram a constituição de associações ou coletivos alternativos aos sindicatos e fomentaram a busca de uma saída comum para enfrentar as dificuldades detectadas. Essa forma de organização e de mobilização pode se alastrar para outros segmentos em que os sindicatos têm pouca presença, mas também pode inspirar os sindicatos existentes a buscar novas maneiras de se aproximar de suas bases. O fechamento das sedes de sindicatos devido às medidas de distanciamento social durante a pandemia tem levado muitos deles, até mesmo em setores com menos tradição de organização sindical, a assumir um papel mais ativo no contato com seus filiados, recorrendo às redes sociais e formas de comunicação remota, realizando inclusive assembleias não presenciais. Mas, como o próprio exemplo dos entregadores indica, é preciso qualificar esse contato, pois não basta encontrar novos veículos para informar a base sobre as condições de trabalho na pandemia e disponibilizar canais para ouvir suas reclamações. É preciso discutir tanto as demandas da categoria, quanto para quem devem ser endereçadas e como devem ser encaminhadas. Esse processo pode se prestar à reafirmação de posições econômico-corporativas ou contribuir para ampliar o alcance das propostas apresentadas, fomentando a unidade com outras categorias de trabalhadores e disputando o conteúdo da política, pois as questões levantadas pelos entregadores extrapolam o campo econômico. Temos visto a emergência de lideranças que defendem posições diferentes (por exemplo: defesa da CLT, do trabalho autônomo ou de regulação específica para trabalhadores de plataformas digitais), e é preciso que o debate entre essas posições possa efetivamente ocorrer, para que se possa avançar na construção de alternativas socialmente mais inclusivas, que assegurem proteção e direitos para quem trabalha[2].
Mas não há apenas uma disputa política em curso, há também uma disputa organizativa, que precisa ser acompanhada. A despeito da existência de sindicatos de motoboys em algumas cidades do país, e mesmo de uma federação em âmbito nacional (Febramoto), a queixa dos entregadores é que eles representam apenas os trabalhadores formais, sendo necessário criar associações específicas para defender os interesses dos informais, o que não deixa de expressar uma desconfiança ou rejeição em relação aos sindicatos existentes. O que se pretende com a criação de associações? Deslegitimar e substituir os sindicatos? Atuar nas áreas em que eles não alcançam? Estimular embriões de novos sindicatos, para concorrer com os existentes? Os sindicatos, por sua vez, ainda que apresentem de fato dificuldades para representar os trabalhadores informais, têm revelado preocupação com o aumento da informalidade, pois suas bases são diretamente afetadas por esse processo. Alguns têm procurado incorporar esses trabalhadores, uma vez que sua sobrevivência está diretamente ameaçada pelo desemprego e pela generalização de formas precárias de contratação. Podem fazê-lo em diálogo com as associações ou em oposição a elas. Os trabalhadores não têm a ganhar com o enfraquecimento ou a destruição de nenhum tipo de organização que defenda seus interesses. As associações têm a vantagem de escapar dos limites da legislação sindical brasileira e podem ajudar os sindicatos a encontrar caminhos para modificá-la. Já os sindicatos têm uma história que não pode ser desprezada, de modo que seria interessante que as associações buscassem estabelecer algum tipo de articulação com eles, bem como com as centrais sindicais, que podem promover a unificação de pautas distintas e tem o potencial de canalizar o debate para a esfera política.
Em um contexto de crise sanitária, em que as saídas possíveis são, em sua maioria, pensadas no âmbito individual, como o movimento dos trabalhadores de aplicativos nos ajuda a retomar o debate sobre a coletividade?
LUCI PRAUN: A atual crise sanitária, que assume feições particulares no Brasil, tem operado no sentido de acentuar contradições e evidenciar desigualdades pré-existentes. Por um lado, temos assistido ao avanço da pandemia entre os segmentos mais pauperizados, evidenciando que a prevalência do adoecimento e do óbito tem classe, raça e etnia. Diferentes pesquisas já indicam claramente a tendência seletiva do contágio e do óbito. A razão da seletividade, vale afirmar, está longe de ser biológica. Ela é essencialmente política e social. Por outro lado, assistimos a pandemia se espalhar em um país onde a já bastante frágil legislação social e do trabalho foi recentemente devastada. Para os patrões, a segurança jurídica. Para a classe trabalhadora, o desemprego crescente, a falta de amparo e proteção legal. Não é um detalhe que desde 2017 tenham sido adotadas diversas medidas que têm como foco esvaziar o poder de representação das entidades sindicais. Em meio à pandemia, as Medidas Provisórias 927 e 936 reforçam essa lógica.
Parte dos efeitos desse processo pode também ser observado no crescimento dos chamados trabalhadores por conta própria, em sua maioria informais, grupo do qual fazem parte a maioria dos entregadores de aplicativo. É interessante observar como tanto a pandemia como a ampliação do desemprego incidiram de forma particular na atividade dos entregadores. Com a pandemia, e o isolamento social de parte da população, esse tipo de atividade assumiu maior relevância. O aplicativo iFood, por exemplo, reajustou suas tarifas de entrega, aproveitando-se da maior procura para ampliar sua margem de lucro. O mesmo, entretanto, não se observou na renda dos entregadores. Com o espraiamento do desemprego em meio à crise sanitária, o trabalho de entrega por aplicativos converteu-se em uma das poucas possibilidades de atividade remunerada para um contingente crescente de pessoas. Um dos problemas é que em uma modalidade de trabalho que tem sua remuneração vinculada à quantidade de entregas realizadas, o ingresso de uma nova leva de trabalhadores opera no sentido de rebaixar a renda geral da categoria. Para manter a quantidade de entregas diárias, os entregadores ser viram impelidos a prolongar a jornada de trabalho, ampliando também a vivência cotidiana com condições e situações de trabalho para lá de precárias. Esse contexto, de compartilhamento de condições e situações de trabalho comuns, capazes de evidenciar a condição do direito a nada, esteve na base do fortalecimento de laços capazes de converter trabalhadores talhados em sua origem como patrões-de-si-mesmos em categoria mobilizada, em greve, em torno de uma longa pauta de reinvindicações.
Mas a greve nacional dos entregadores sinalizou para outras questões. Seu ineditismo também está na reinvenção da greve em si, agora também exercida para além dos muros das empresas, em meio ao barulho dos motores das motos, das buzinas das bicicletas, do movimento das ruas. Evidenciou, portanto, a vitalidade da velha estratégia de luta dos trabalhadores e trabalhadoras, agora reinventada nas ruas. Ao pararem suas atividades, os grevistas fizeram sobressair que a suposta autonomia e liberdade de escolha, prometida pela ideologia do empreendedorismo, nada mais é que uma servidão disfarçada. Evidenciaram também a necessidade e urgência de pensarmos formas de resistência que considerem as profundas mudanças no mundo do trabalho, heterogêneo e fragmentado, mas submetido à crescente degradação de direitos e à profunda descartabilidade humana.
Quais as repercussões possíveis da greve dos entregadores do dia 1 de julho?
MARCO SANTANA: O movimento, sem qualquer sombra de dúvidas, foi um sucesso em termos políticos e organizativos. Nem todo mundo acreditava que submetida a tal grau de informalidade e precarização, sob o controle e pressão de sofisticados mecanismos tecnológicos, mas também de relações de trabalho autoritárias já bem conhecidas de nós, obrigada a intensos e extensos ritmos e jornadas de trabalho, no “corre” sem poder parar, pudesse conseguir efetivar um movimento nacional de monta. E conseguiu. Lançando mão de rico ativismo digital e forte mobilização concreta, ele foi expressivo em várias capitais importantes, impactou o oferecimento de serviço, conseguiu redução de pedidos em alguns momentos, indicando relativa solidariedade social ativa dos usuários, logrou a publicização de suas condições precárias de trabalho, bem como expôs negativamente as marcas das empresas nelas envolvidas.
Mas, para além disso, ganhos importantes foram sendo conseguidos no bojo da constituição e desenrolar do movimento. A constituição de um sujeito coletivo com demandas que se organizam e são postas na cena pública, a preparação da mobilização via articulação nacional que demandou intenso fluxo de comunicação eletrônica, bem como, em uma categoria bastante diversificada nesse sentido, a importante politização à esquerda de setores do movimento como os “entregadores antifascistas”. Sobretudo, colocou explicitamente a centralidade do trabalho e a potência das lutas oriundas desse universo.
Pensar as repercussões desse movimento impõe mirar em diferentes níveis e dimensões. Como sabemos, “movimentos movimentam” e, creio, o mundo social, político e laboral tem se movimentado tendo em vista o protesto de 1º de julho. A máquina institucional legislativa se movimentou nos níveis estaduais das assembleias legislativas, por exemplo de Rio e São Paulo, na tentativa de dar conta das demandas sobre algum tipo de regulação protetiva do trabalho presentes em setores do movimento; e, em nível federal, com a reunião entre o presidente da câmara dos deputados e representantes de contingentes da categoria, lembrando que já existem cerca de vinte projetos tramitando no parlamento brasileiro. Essas movimentações não significam alterações imediatas, pois aí também se terá a pressão das empresas no sentido de reduzir ao máximo as possibilidades de regulação de suas formas de gestão e uso do trabalho, que é central para elas nas suas estratégias de negócios.
O mesmo ocorre em termos das máquinas de representação da categoria que é atravessada por organizações autônomas, sindicatos, associações etc. que concorrem pela representação de trabalhadores e trabalhadoras e que vêm demonstrando maior presença e atividade desde o anúncio do movimento. Agora, é acompanhar para ver, entre outros, os desdobramentos das possibilidades de aproximação ou não das organizações de corte mais horizontal com aquelas mais verticais, ou daquelas com estrutura mais de movimento social com aquelas mais institucionalizadas.
As empresas, que também apostaram no fracasso do movimento, e trabalharam por isso, sentiram o impacto e têm buscado, via notas públicas e campanhas de publicidade, produzir versão alternativa sobre as condições de trabalho da categoria no debate público. Mesmo que isso também não queira dizer que aceitarão as demandas colocadas, elas foram forçadas a sentar para negociar saindo de sua postura olímpica de que nada estava acontecendo e seus/uas “parceiros/as” viviam no melhor dos mundos.
Houve grande repercussão na opinião pública que tomou conhecimento das condições de trabalho daqueles e daquelas que são notados/as visualmente, mas invisíveis socialmente, em nossas paisagens urbanas e nas portas de casas e prédios em todas as cidades, com suas mochilas coloridas com nomes de empresas às costas, até então anônimos. Isso graças, em grande medida, ao intenso ativismo digital da categoria nas redes sociais. O relativo engajamento por parte dos usuários na diminuição do volume de pedidos no dia da paralisação pode ajudar como possível indicador.
Os ganhos políticos e organizativos e as repercussões desse primeiro #brequedosapps já produziu, inclusive, a possibilidade da marcação do segundo, a ser realizado no dia 25 de julho. Esse movimento está em uma das pontas mais agudas de processos que atingem muitos outros setores, incorporando grandes contingentes de trabalhadores e trabalhadoras. O destino de sua luta contra a precarização da vida e do trabalho pode ajudar a abrir e orientar caminhos para muitos outros nessa direção.
Quais saídas possíveis para a categoria dos trabalhadores de aplicativos em um contexto de intensificação do trabalho uberizado?
LUDMILA ABÍLIO: Algumas possibilidades se apresentam de forma mais clara. Vejo com enorme preocupação as dezenas de projetos de lei que pipocaram frente à mobilização dos entregadores, e a possibilidade de uma regulação que se traduzirá na prática em uma legalização da uberização. Precisamos nos apropriar melhor dos termos e das características que constituem a uberização, entendendo que não estamos regulando apenas o trabalho dos entregadores e nem exclusivamente o dos trabalhadores subordinados a empresas-aplicativo ou, em outros termos, a plataformas digitais. O que está em jogo agora é regular um modo de gerenciamento e controle que atravessa o mundo do trabalho de diferentes maneiras, com diferentes especificidades, mas que têm em comum a transformação do trabalhador em um trabalhador disponível, que, entretanto, recebe estritamente pelo que produz, ao mesmo tempo em que não tem qualquer garantia sobre sua carga de trabalho. O atual projeto da deputada Tábata Amaral, que perigosamente se apresenta como o mais palatável, legaliza essa condição, criando a categoria de “trabalho sob demanda” e igualando tempo de trabalho remunerado a tempo de produção, entre outros elementos.
A saída mais comumente apresentada por posicionamentos de esquerda defende o reconhecimento do vínculo empregatício, trazendo os uberizados para a proteção da CLT. Este é um caminho importante, mas não se pode perder de vista que se não olharmos para o gerenciamento algorítmico do trabalho, mesmo sob essa fundamental tela de proteção, há modos de garantir a degradação do trabalho, rebaixamento do valor da força de trabalho, a manutenção do trabalhador nesta condição de ser just-in-time. Inclusive, não podemos perder de vista que categorias como a do trabalhador intermitente e do autônomo exclusivo já estão formalizadas.
Há debates que ultrapassam a regulação para tratar da apropriação dos trabalhadores deste meio de produção central que é a tecnologia materializada nas plataformas. Desenham-se assim saídas que nos levam aos debates e princípios muito semelhantes aos da economia solidária, tal como se desenhou há algumas décadas no Brasil. Hoje vemos discussões sobre o cooperativismo de plataforma e outras perspectivas que pensam na organização e propriedade coletivas dos meios de produção. Por fim, é importante compreender como a mobilização dos entregadores nos abre para o imprevisível e ainda pouco formulado.
[1] Ver “Greve dos entregadores atingiu consumidores, afirma DIEESE”, em http://abet-trabalho.org.br/greve-dos-entregadores-atingiu-consumidor-afirma-dieese/
[2] Remeto aos textos que publiquei sobre esse assunto em: http://www.esquerdadiario.com.br/A-greve-o-breque-o-trampo-a-luta-do-entregadores-e-a-luta-dos-trabalhadores e https://aterraeredonda.com.br/tag/andreia-galvao/