NOTA da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho -ABET sobre o PLP 12/2024 dos motoristas geridos por empresas de aplicativos de transporte

A Associação Brasileira de Estudos do Trabalho – ABET, entidade que existe desde 1989 e reúne centenas de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento de todo o Brasil, vem manifestar-se sobre a proposta do PLP 12/2024, que tramita no Congresso Nacional desde 5 de março deste ano.

Sem pretender esgotar os elementos de consenso ou de controvérsia, esta nota visa à chamar a atenção para a complexidade do tema que o projeto se propõe a regular e para o perigo de ser tratado por meio de medidas superficiais, que desconsideram os problemas nodais das formas de trabalho “uberizadas”, as quais alijam os trabalhadores que atuam como motoristas de direitos laborais inscritos na Constituição de 1988 (no Brasil, são mais de 1,5 milhão de pessoas trabalhando controlados por plataformas em serviços de transporte individual e de entrega, assumindo integralmente os custos e riscos do trabalho).

Em primeiro lugar, APOIA-SE a retirada de urgência na tramitação do projeto. DEFENDE-SE a necessidade de amplo e qualificado debate, incluindo cientistas e especialistas, dado que os impactos sobre as condições de trabalho desse universo de trabalhadores têm efeitos não somente sobre sua própria condição de vida e saúde, de maneira individual. Impactam sistemas públicos de proteção à renda, sistemas de saúde, de transporte urbano, a vida de comunidades relacionadas, de trabalhadores de todos os setores. Isso não descarta os esforços da iniciativa de realização de diálogo tripartite (governo, empresas, motoristas) para a construção do presente projeto, visto que possui virtudes, mas chama-se a atenção ao fato de que há temas que transcendem o diálogo entre empregados e empregadores do setor e demandam a contribuição de especialistas, cientistas e pesquisadores.

COMPLEXIDADE DO TEMA

O PLP 12/2024, ao reconhecer e permitir juridicamente o tipo de trabalhador dito “autônomo com direitos”, abre precedente que poderá impactar toda a classe trabalhadora, espraiando-se para outras atividades profissionais cujos empregadores aleguem apenas intermediar trabalho por meio de uma ferramenta tecnológica ao invés de contratar e gerenciar trabalhadores.

A ABET possui entre seus pesquisadores e pesquisadoras associados pessoas que têm se dedicado há anos a examinar os mecanismos e impactos do crescimento do trabalho comandado por empresas que detém plataformas digitais. Parte destes pesquisadores/as, inclusive, tendo acompanhado o grupo de trabalho instituído em 2023 e que reunia representantes de empresas-plataforma, de motoristas e do governo para discutir os termos do projeto. Entre os estudos, há elementos que já vêm sendo consensuados, enquanto outros se encontram sob processo de discussão e de controvérsia.

Dentre os consensos, têm-se que as novas formas de trabalho geram postos com alto risco para a saúde e cuja forma vulnerável e desprotegida de obtenção da renda do trabalho podem apontar para um futuro de exacerbação das desigualdades sociais. Também há consenso de que há que se constituir formas de proteção desse universo de trabalhadores. O “como fazer” gera divergências.

Um aspecto que vem sendo amplamente reconhecido, trazido por pesquisadoras como Ludmila Abílio, é o de que o fenômeno chamado de uberização não ocorre exclusivamente entre motoristas cujo trabalho utiliza plataformas digitais. Aspectos fundamentais da uberização do trabalho, especialmente nos seus mecanismos de controle e gestão do trabalho, já eram difundidas em outras atividades, a exemplo de vendedoras de cosméticos, professores/as temporários. Um deles é o pagamento apenas das horas tidas como efetivamente trabalhadas ao invés da jornada durante a qual a pessoa está disponível para trabalhar. Além disso, também observa-se em diferentes categorias a dispersão espacial da execução do trabalho de trabalhadores que não tem seu vínculo empregatício reconhecido, mas que trabalham para uma mesma empresa, que estabelece junto a tais trabalhadores, na prática, uma clara cadeia de comando-execução.

Esses mecanismos resultam na concentração dos meios e informações necessários à gestão do trabalho e a descentralização e desresponsabilização pelos direitos de quem o realiza, pelos riscos e prejuízos decorrentes do trabalho – sejam econômicos, sejam os que afetem a sua própria saúde e integridade. Procura-se erodir, assim, a figura de um trabalhador ou trabalhadora empregado e construir uma figura de um/a prestador/a de serviços dito autônomo – menos por ter real condição de escolha dos modos de trabalhar, mais por estar à própria “sorte”, com direitos rebaixados. Contudo, como destaca a pesquisadora Maria Aparecida Bridi, “há ampla convergência entre os estudos sociológicos e jurídicos acerca do caráter subordinado desse tipo de trabalho”.

AUTOGESTÃO DE MULTIDÃO DE MICROEMPRESÁRIOS OU GESTÃO DO TRABALHO COLETIVO?

Como se nomeiam as relações de trabalho e seus participantes não é uma mera questão de linguagem. Empresas-plataforma têm sido objeto de estudos questionadores do caráter auto-alegado de serem empresas de tecnologia e não de transportes. Além de estarem sob escrutínio de CPIs por conta deste impasse (que as permite economizar em impostos mantendo-se como de tecnologia), as empresas proprietárias de aplicativos, mesmo não declaradamente “de transportes”, têm em seus registros de patente junto ao INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial- atividades com a finalidade não somente de fabricar aplicativos de intermediação, mas de “gerenciar movimentação de veículos”, “implementar operações para facilitar ou mitigar recursos que fazem com que os distribuidores despendam esforços ou custos ao concluir as tarefas de entrega” e mesmo fazer com que seus sistemas de computador associem“ um operador a um dispositivo móvel”, “monitorar o operador”, “determinar um ou mais subintervalos em que o veículo de carga está desligado ou que o operador deixou o veículo de carga quando o veículo de carga está ocioso”, “avaliar o operador ao longo do intervalo”, avaliação que “pode incluir o uso das informações do dispositivo móvel”. (conforme dados disponíveis no INPI, buscados pelas depositantes das patentes). São, portanto, empresas-plataforma que criam e disponibilizam a tecnologia para motoristas e passageiros, da mesma forma que utilizam tais ferramentas para o gerenciamento e controle do trabalho.

De outra parte, nomear trabalhadores de operadores, parceiros, colaboradores e similares é um eufemismo da linguagem gerencial que não é novidade entre estudiosos do trabalho. É terminologia que vem buscando atenuar relações de potencial conflito de interesses entre empregadores (patrões) e as pessoas empregadas (trabalhadores/as) em situações de vínculo de trabalho reconhecido. A novidade nestes mecanismos uberizados é que mesmo que as relações de trabalho e a existência de comando-subordinação ao trabalho existam na prática, não somente o nome de empregado sofre uma modificação de trabalhador para parceiro, mas tenta-se mudar objetivamente o estatuto da atividade realizada, alegando-se não haver empregado da empresa(porque a empresa não se reconhece como empregadora) e, concomitantemente, propaga-se a noção de empregado de si mesmo/a. Por consequência, embora seja a empresa que recrute milhares de pessoas para atuar como motoristas, não somente utilizando o aplicativo de sua propriedade, masmantendouma relação contínua de gestão do trabalho com motoristas, apresentando-se, apesar disso, como apenas quem fornece ferramenta tecnológica que possibilita o trabalho alheio Porém, sem abdicar do uso de mecanismos de monitoramento, vigilância do trabalho e de uma gestão despótica, com base em comunicações enviadas por meio do próprio aplicativo que chegam aos telefones de motoristas, as quais conduzem a forma de trabalhar em troca de recompensas ou punições, bem como determinam a remuneração. Sem mencionar a extração contínua de dados lhes permite a contínua sofisticação do controle e gestão.

Vale mencionar ainda que é incomum que empresas que sejam mera fornecedora da ferramenta sejam tão engajadas como as empresas de aplicativos de transportes em fazer campanhas sobre como deve ser o uso do aplicativo e determinar como deve ser a conduta dos motoristas que o utilizam, Ou seja, na relação com motoristas, a posição é de distanciamento do reconhecimento do vínculo. Mas quando se trata de proteger a própria marca, são ativos em promover compromissos com “valores” e possíveis punições em caso de descumprimento do modo da empresa de estabelecer o serviço de transportes junto aos clientes. Para tal, promovem campanhas antidiscriminatórias, antirracismo, contra assédio, preconceitos, códigos de conduta que incluem “regras básicas de convivência”. Ou seja, como vem sendo revelado amplamente em estudos de gestão do trabalho, determinam aos trabalhadores “como fazer” e “como ser”.

AUTÔNOMOS?

Quando se fala de trabalhador autônomo, remete-se à ideia de um profissional liberal e à capacidade de quem trabalha em dirigir sua própria atividade, sem subordinação. Isso significa a possibilidade de definir rotinas, jornadas, modos de realização do trabalho, bem como decidir se deve ou não alienar o resultado do trabalho realizado.

Os trabalhadores que atuam como motoristas, com veículo próprio ou por vezes locado, com aparelho celular e acesso à internet próprios, mas que precisam recorrer à adesão a uma empresa por meio de um aplicativo que concentra as informações sobre as corridas e as distribui, estabelece mecanismos de pontuação e ranqueamento, benefícios e punições de acordo com a conduta do motorista, podem de fato ser considerados trabalhadores que realiza suas atividades de forma autônoma? Se há escolhas, será que é possível a opção de trabalhar apenas o suficiente para si, respeitando a própria saúde e limites do corpo? Ou a suposta autonomia se converte em pressão para trabalhar sempre mais a fim de não sofrer punições do “algoritmo”? Neste sentido é pertinente o argumento do pesquisador Rodrigo Carelli que afirma que o projeto não prevê autonomia nem direitos. Ele ilustra a figura proposta por meio do PLP 12/2024 como um minotauro, com “cabeça de autônomo, corpo de empregado”. O que se alega como previsão de autonomia dentro do projeto, não é necessariamente novidade legal – nenhum trabalhador tem exigência de exclusividade, por exemplo. Além disso, o próprio estabelecimento de “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos que se conectará ao aplicativo” previsto no PLP parece ser uma faca de dois gumes, pois prevê liberdade em abstrato, sem regrar explicitamente sobre como, depois de “logado”, o motorista pode usufruir de direito a pausas, recusas de corridas, desconexão e outros mecanismos que costumam justamente ser punidos e, assim, ferem essa dita liberdade de escolha sobre quando trabalhar e seu modo.

COM DIREITOS?

O projeto PLP 12/2024 se apresenta com o propósito de “estabelecer mecanismos de inclusão previdenciária e estabelecer outros direitos para a melhoria das condições de trabalho”. Porém, somam-se as inúmeras críticas ao fato de que bem poucos direitos no projeto são efetivamente novos.

O que parte de especialistas reconhece como ganho previsto pelo projeto é responsabilizar as empresas por uma alíquota de contribuição previdenciária por parte destas. Pois para trabalhadores, a contribuição já é possível sem a necessidade de vínculo empregatício. Contudo, em termos de oferta de direitos previdenciários, merece atenção o fato que vem sendo salientado por pesquisadores como Jorge Luiz Souto Maior, de que apenas há previsão de benefício previdenciário acidentário nos casos em que há efetivo vínculo de emprego. Ou seja, na modalidade prevista pelo PLP 12/2024, que dispensa reconhecimento de vínculo empregatício, obter um benefício acidentário não estaria garantido e o trabalhador seguiria desprotegido.

Além disso, embora alegue prever direitos para melhoria das condições de trabalho, o projeto não prevê nenhum mecanismo limitador das formas de trabalho prejudiciais às condições de trabalho que possam gerar adoecimentos, isto é, preventivas a tais agravos, inclusive acidentes de trabalho letais. Com isso, como já evidenciado amplamente por pesquisas e também salientado em manifestações de motoristas, parece normalizar o caráter perigoso e danoso à saúde e segurança deste trabalho, como se tais características fossem inerentes a esta atividade profissional. Como se somente coubesse remediar este caráter perigoso e danoso do trabalho depois de o trabalhador já ter se acidentado, adoecido, falecido – e como se o “remédio” coubesse apenas ao Estado, não à empresa-plataforma. As empresas estabelecem o modo de trabalhar, mas seguem desresponsabilizadas pelas consequências desta forma de trabalho por elas gerido na redação do PLP 12/2024.

Questiona-se a normalização dessas condições de trabalho, também expressas nas longas-exaustivas jornadas de trabalho e o constante ritmo de urgência e competição no qual se trabalha, estimulados pelas empresas por meio de recursos como a “gamificação” . No que tange ao tema da jornada e da remuneração pelo trabalho, fica previsto no PLP 12/2024 um parâmetro de 12h diárias máximas de trabalho – o que supera o máximo de 44h semanais estabelecidas na Constituição, tornando legais jornadas que podem chegar até 84h semanais. Na medida em que se considera apenas as corridas efetivadas para a remuneração a ser recebida – isto é, sem remunerar os tempos entre elas, intervalos nos quais motoristas estão à disposição para trabalhar, tal , como previsto no projeto, os trabalhadores ficam sem receber. Não há previsão de descanso, de pausas, dentro de 12h de jornada, não há precificação da hora trabalhada considerando a necessidade de descanso. Muito menos previsão expressa de direito à recusa de chamadas ou de direito à desconexão.

O projeto basicamente estabelece uma remuneração mínima de 32,10 reais/hora, dentro desta jornada máxima sem previsão de descanso Tais condições de trabalho desprotegidas remontam ao trabalho no século XIX. Assim como não há nenhum mecanismo que busque evitar que a remuneração mínima prevista possa ser tratada como “teto” pelas empresas, visto que as possibilidades de precificação pelo próprio trabalhador não são tratadas e supõe-se que seguirão inteiramente como decisão das empresas.

Até aqui, já estaria evidente que o projeto não contribui para melhoria das condições de trabalho, enquanto legaliza práticas espúrias de controle e gestão que são favoráveis aos interesses apenas das empresas. O não enfrentamento do problema das horas não pagas de trabalho (tempo à disposição), assim como a não previsão de reconhecimento de vínculo empregatício de motoristas, auxiliam a compreender por que o projeto agradou tanto às empresas de aplicativo de transporte. Porque, fundamentalmente, não confrontou seus principais interesses.

Considera-se que o potencial efeito da aprovação do projeto é ainda mais grave: o PLP 12/2024 autoriza a subordinação dos trabalhadores às empresas “sem que isso configure relação de emprego”. Autoriza que as empresas exerçam suas formas de controle sobre o trabalho – que juridicamente configura a subordinação ao empregador -, e impede que o vínculo possa se formar e, assim, que a proteção social incida a esses sujeitos. Desse modo, o trabalho não tem a menor possibilidade de ser efetivamente autônomo, mas poderia, ainda assim, ser nomeado como tal. Numa situação como esta, evidencia-se que quem tira proveito são as empresas, que garantem a manutenção de seus elevados padrões de lucratividade praticamente sem nenhum obstáculo, não trabalhadores. Não somente as empresas-plataforma de transporte mas, potencialmente, outras que se sintam estimuladas a utilizar deste precedente.

QUEM REPRESENTA E NEGOCIA POR MOTORISTAS?

Outro aspecto que pode ser considerado como expressão das controvérsias ao tratar de “motoristas por aplicativo” é que essa nomenclatura permite o entendimento desses trabalhadores enquanto uma nova categoria profissional distinta das já existentes de motoristas, inclusive em termos de representação. Dado que o enquadramento da atividade que realizam encontra-se em um “nublado” entre formal-informal, entre empregado com vínculo disfarçado, autônomo, microempresário, conta-própria, tal não uniformidade no modo de caracterizar tais motoristas se reflete também na confusão em como estes trabalhadores se reconhecem, se associam, se posicionam. Uma parte assume exercer uma atividade trabalhando para uma empresa, como parte de um coletivo trabalhador com direitos a serem garantidos, seja pela empresa, seja pelo Estado (ou posições próximas a isso), enquanto outra se vê com margem de autonomia (ao menos mais do que percebia em empregos anteriores), ou ainda acredita estar efetivamente atuando como micro empresário, empreendedor. Pesquisas como as de Ana Carolina Paes Leme (2024), apontam, porém, que a forma de se reconhecer e de almejar direitos (e quais) estaria sujeita ao medo, a uma série de ameaças e de distorções sobre direitos previstos na legislação já existente e sobre os meios de obtê-los. Parte deles provenientes de atuação antissindical das empresas, que sobrevalorizam a dita autonomia e a colocam como moeda de troca a ter direitos previstos, como se trabalhar com vínculo significasse necessariamente não ter a dita autonomia e flexibilidade, ou pior, significasse ficar sem emprego. Isso porque incorpora-se entre motoristas a ideia de chantagem empresarial falaciosa de que direitos são custosos demais e inviabilizariam a atividade na empresa no país.

Ser uma categoria de contornos não nitidamente definidos também tem a ver com a própria forma de trabalhar estar sujeita a mecanismos de controle e gestão arbitrários, fundados em concentração de informações não acessível a trabalhadores. Assim, a representação por entidades como sindicatos existe, mas é menos consistente. Há formas associativas múltiplas desta categoria, formais e informais, sendo os sindicatos uma delas. Quaisquer que sejam, não dispõem de acesso à informação sobre os critérios utilizados para a gestão, isto é, para distribuir corridas, para a remuneração, para punições, etc. E o acesso à informação dos algoritmos não encontra-se prevista no PLP 12/2024 apresentado, salvo pela vaga previsão de relatórios a serem produzidos pelas empresas.

Portanto, no que tange à questão da configuração profissional e representativa ser peculiar, aqui interessa destacar: não se trata de uma atividade profissional com a qual pareça prudente lidar com os mesmos parâmetros que se lidava em décadas anteriores, com outros setores, inclusive em mesas de negociação. Seu poder de barganha é frágil se colocado em uma mesa de negociação em igual representação numérica ao de empresas milionárias com condições de fazer demandas e pressões, inclusive, pelo amparo que têm, por meio do poder financeiro, em dispor de vastas equipes de advogados, de responsáveis por campanhas midiáticas bilionárias, sendo capazes de sustentar seus interesses com todos os recursos disponíveis. Serem tratados com igual poder em mesa de negociação, em especial com conduta governamental mediadora, é na prática os colocar para negociar em desvantagem.

Neste sentido, importante pontuar que as empresas por aplicativo têm tido condutas e formas de consolidação distintas em âmbito internacional. Na Califórnia, após pressão que envolveu mover campanhas midiáticas bilionárias, houve aprovação de projeto de lei no qual este PL 12/2024 parece claramente se inspirar, mas que previu mais compromissos às empresas do que no Brasil, bem como maior detalhamento e vantagens a trabalhadores em termos de previsão detalhada da remuneração. Na Espanha, previu-se acesso aos dados do algoritmo. No Reino Unido, por sua vez, o caminho foi bem mais virtuoso: o reconhecimento do vínculo, ou seja, por lá motoristas são empregados e isso não inviabilizou – como costuma-se propagar em tom ameaçador – as atividades de empresas de aplicativos no país.

Por fim, no que cabe a uma associação representativa de pesquisadores/as como a ABET, vale salientar posição de forma contundente que sob diversos aspectos, sociopolíticos, técnico-jurídicos, econômicos, a atividade laborativa no país, por ser geradora de riqueza, merece proteção e valorização nos termos do artigo 7º da constituição brasileira, assim como devem ser seus realizadores, trabalhadores e trabalhadoras, os beneficiários prioritários do desenvolvimento do país. Empresas devem ter seu poder econômico – evidentemente superior ao dos trabalhadores – limitado pela ação de órgãos como a Justiça do Trabalho. A fim de que se enfrente tal disparidade de poder e se impeça o uso predatório do trabalho, a exemplo da uberização que transfere riscos e custos a quem trabalha e que vem fazendo-o sem nenhuma responsabilização.

Assim como os direitos devem ser garantidos pelo Estado, por meio de políticas públicas. Pois, mais que um mediador, deve agir em consonância com a Constituição Federal e levar também em consideração a disparidade de poder entre as partes, capital e trabalho, assim como fortalecer a própria Justiça do Trabalho e suas competências, preocupantemente esvaziadas, se seus conflitos nodais forem direcionados à justiça comum.

Do mesmo modo, sustenta-se que a garantia de direitos pelo poder público não deve se furtar de utilizar todos os recursos científicos mais avançados para subsidiar a formulação de suas leis e políticas públicas. Ouvir especialistas, responsáveis por pesquisas de relevância reconhecida no meio acadêmico-científico, também é fundamental quando se trata da temática trabalho. Considerar a Ciência faz parte do processo de reconstrução do Brasil.A ABET reúne uma parte destes, que estão presentes em todo país, sobretudo nas universidades públicas, que são as maiores produtoras de ciência no Brasil, em espaços nos quais pesquisas têm o potencial de não se restringir à mera reprodução dos interesses do empresariado, mas podem buscar respostas aos dilemas relacionados ao tema trabalho que visem o benefício da maioria da sociedade, a que vive da própria atividade laborativa. Se furtar desta fundamentação em ciência seria repetir o tom negacionista de governos anteriores, que, espera-se, não volte a se repetir no país em nenhuma esfera – nem na saúde pública e provimento de vacinas em situações pandêmicas, na do trabalho, ou em nenhuma outra.

Pelas razões acima expostas, nesta nota, que é uma entre diversas iniciativas de pesquisadores/as e intelectuais no campo de estudos sobre trabalho no país, entendemos que o projeto precisa ser arquivado ou, no mínimo, revisto à luz de mais e melhor qualificados debates. Em razão disso, consideramos acertada e importante a decisão de retirada de seu regime de urgência.

Florianópolis, 10 de abril de 2024.

Thaís de Souza Lapa

Presidenta da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho – ABET

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