Inconstitucionalidade do PL dos trabalhadores por aplicativos de transporte
Por Rosangela Rodrigues Lacerda e Silvia Teixeira do Vale | Consultor Jurídico
Após anos de debate acerca do tipo de trabalho prestado em favor das plataformas e aplicativos, acompanhada da clara atuação do STF a fim de retirar a competência material da Justiça do Trabalho para analisar a lide daí decorrente e de uma vasta literatura nacional e internacional sobre a temática, eis que surge no cenário legislativo o projeto de lei complementar que almeja dispor sobre a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas, deixando do lado de fora da legislação uma possível previsão legal para todas as pessoas que se valem de bicicletas e motocicletas para trabalhar.
Logo no artigo 1º da referida proposta, lê-se que o trabalho prestado pelo(a) trabalhador(a) em favor das empresas operadoras de aplicativos de transporte será apenas intermediado por esta e o verbo não foi aplicado, nesse caso, sem um objetivo liberalizante e desregulamentador claro, pois a linguagem empregada ao longo de toda a proposta deixa isso bastante evidente.
Nesse mesmo sentido é a redação proposta no artigo 2º, quando estabelece que para os fins da Lei Complementar, considera-se empresa operadora de aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros a pessoa jurídica que administra aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede e oferece seus serviços de intermediação de viagens a usuários e a trabalhadores previamente cadastrados.
Todavia, é na redação do artigo 3º que o projeto de Lei Complementar deixa bem evidente que o(a) trabalhador(a) que presta serviços em favor das empresas de aplicativos, deve ser, em regra, tratado(a) como autônomo(a), para fins trabalhistas, desde que trabalhe com plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo.
Para tanto, a pessoa que trabalha deverá prestar os seus serviços sem exclusividade, como se tal pressuposto fosse requisito para a configuração da relação de emprego. Não é e a CLT sequer estabelece tal previsão.
O aludido projeto de Lei Complementar, que partiu do Poder Executivo, foi anunciado como sendo uma grande conquista para os trabalhadores que ainda não possuem legislação própria, mas não é necessário nem avançar na leitura, para perceber que a real intenção a proposta é retirar a proteção constitucional das pessoas que trabalham em favor dos aplicativos.
Antonio Cruz/Agência Brasil
Ora, o caput do artigo 7º da Carta Política estabelece que o rol de direitos fundamentais sociais lá assegurados é destinado aos trabalhadores, não aos empregados [1]. Dessa forma, até para os mais positivistas dos intérpretes, é difícil defender que os trabalhadores não possuem proteção social à luz da Constituição.
Nesse sentido, a Carta Maior criou uma diretriz a ser concretizada pelo Estado-Legislador, segundo a qual todos os trabalhadores terão o mínimo de proteção social-legislativa, e esse piso se constitui em direitos subjetivos das pessoas que trabalham, sejam na condição de empregadas ou não.
Sem proteção
Dizer o óbvio não foi, infelizmente, a intenção do aludido projeto, que evidencia às escâncaras que, em regra, os(as) referidos(as) trabalhadores(as) devem ser tratados(as) como autônomos(as). Serão soltos(as), livres, em pleno gozo do sacrossanto exercício de liberdade e da autonomia.
A modernidade parece, como diz a música, “um museu de grandes novidades”, porque recobra à época em que trabalhadores não possuíam proteção social trabalhistas e vivenciavam a liberdade de não possuir direitos e serem explorados sem limites legais.
O Direito do Trabalho, nesse contexto, não revolucionou tanto a ponto de proibir a exploração do trabalho do ser humano, tendo, inclusive, permitido tal expediente, desde que respeitados determinados limites estabelecidos em normas internacionais e internas.
O projeto de Lei Complementar nos lembra que nada está conquistado jamais e que é necessário se manter vigilante para que direitos já assegurados, inclusive como fundamentais e protegidos por serem cláusulas pétreas, precisam ser vigiados e tratados como um núcleo que não pode ser diminuído por normas infraconstitucionais ou, objeto, simplesmente, de desregulamentação.
Ao tentar retirar a condição constitucional de trabalhadores(as) das pessoas que efetivamente trabalham, o projeto tenta suprimir, inclusive, proteções mínimas, como saúde e segurança, em claro menoscabo à Convenção nº 155 da OIT, assim como igualmente ignora normas protetivas já declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como a proteção à gestação e ao nascituro, a não discriminação por qualquer motivo considerado não justo, e a possibilidade de a pessoa que trabalha buscar reparação moral e patrimonial perante a Justiça trabalhista, quando se sentir aviltada em seus direitos.
O que está em jogo é muito mais do que se apresenta, quando a Justiça do Trabalho tem a sua constitucionalidade material atacada pela Corte Suprema praticamente toda semana. Basta observar o trato que o Supremo Tribunal Federal tem dado aos trabalhadores, considerando-os pactuantes de contratos civis ou comerciais em diversas decisões vinculantes e até em decisões monocráticas, que sequer comportam a análise de fatos e provas.
Palmilhando um pouco mais o projeto, o parágrafo 2º do artigo 3º propõe que os trabalhadores, autônomos que serão, observem “período máximo de conexão” (em palavras mais claras, isso é jornada, pois tempo à disposição), que não poderá ultrapassar doze horas diárias.
Com uma simples troca da palavra “trabalhadores” por “autônomos”, propõe-se que as pessoas que trabalham por aplicativos permaneçam à disposição das empresas por mais de oito horas diárias ou quarenta e quatro horas semanais, havendo nesse particular, não só uma ignorância total das regras constitucionais fundamentais, como também um retrocesso na própria história do Direito do Trabalho, vez que as primeiras lutas coletivas em favor de proteção trabalhista diziam respeito justamente à jornada não extenuante.
É curioso constatar que o artigo 7º do projeto estabelece que os serviços das empresas operadoras de aplicativos e o trabalho intermediado por suas plataformas devem pautar-se por alguns princípios e o inciso III ressalta a eliminação de todas as formas de discriminação. Ora, a proposta segundo a qual trabalhadores não são tratados como trabalhadores, para fins de proteção constitucional, já é discriminatório. Isso é a própria discriminação a partir da legislação [2], que escolhe, sem nenhuma razoabilidade, quais serão as pessoas que trabalham escolhidas para serem protegidas pela legislação e as que não. Isso já aconteceu no passado com algumas outras categorias, a exemplo dos(as) trabalhadores(as) domésticos(as) e rurais, mas a legislação evoluiu.
Não se pode ignorar que o modo de produção muda com o tempo e, com a assim denominada Indústria 4.0, houve uma verdadeira revolução. Acontece que se formas vanguardistas de trabalho são apresentadas, a legislação deve servir para proteger o trabalho humano, sem menosprezar a liberdade de contratar.
Desregulamentar o trabalho a partir da legislação não só é discriminatório, como é o retorno para uma época em que as pessoas que trabalhavam buscavam a proteção do básico, como salário digno e jornada não extenuante.
Sem a menor dúvida, o valor social do trabalho que norteia a livre iniciativa não se coaduna com uma jornada de doze horas a disposição de multinacionais que sequer investem seus ganhos no Brasil, quando podem ser obrigadas, no máximo, a recolher contribuição previdenciária e pagar um salário mínimo por hora efetiva de trabalho.
Como já alertou Alain Supiot, segundo essa lógica flexibilizante ou desregulamentadora, “o Direito é considerado como um produto competitivo em escala mundial, no qual agiria a seleção natural das ordens jurídicas mais adaptadas à exigência do rendimento financeiro”, pois, “ao invés da livre concorrência ser baseada no Direito, é o Direito que deveria ser baseado na livre concorrência” [3].
O referido autor intitula esse movimento como sendo um verdadeiro “darwinismo normativo”, pois os países competem demonstrando qual poderá ter a legislação mais “atrativa” para as empresas se instalarem.
Sejamos honestas(os), o Brasil, caso acolha o projeto de Lei Complementar como está ou até indique pioras durante o trâmite legislativo, tornar-se-á uma exceção aos países capitalistas cuja legislação costuma copiar [4]. Ignorar a proteção ao trabalho humano ou diminuir direitos sociais nunca foi e jamais será a solução para uma sociedade que pretende se emancipar.
[1] VALE, Silvia Teixeira do; LACERDA, Rosangela Rodrigues. Curso de Direito Constitucional do Trabalho, 2. ed, São Paulo: LTr, 2023, p. 257-258.
[2] Vale a leitura do artigo esclarecedor e sempre atual de: VIANA, Márcio Túlio. Os dois modos de discriminar: velhos e novos enfoques. In: Discriminação, RENAUT, Luiz Otávio Linhares; VIANA, Márcio Túlio; CANTELLI, Paula Oliveira, 2. ed., São Paulo: LTr, 2010
[3] SUPIOT, Alain. O espírito da Filadélfia. A justiça social diante do mercado total. Traduzido por Tânia do Valle Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014, p. 58.
[4] Por todos, vale a leitura da obra: CARELLI, Rodrigo de Lacerda; OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. As plataformas digitais e o Direito do Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no Século XXI, São Paulo: Dialética, 2021.
Fonte: Consultor Jurídico
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Data da publicação original: 12 de março de 2024