Reconstrução da Esquerda Brasileira: política, intelectualidade e universidades


Por Ronaldo Tadeu de Souza | blog da Boitempo



Entrevista com Jones Manoel, doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas, historiador pela Universidade Federal de Pernambuco, intelectual e militante do PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Autor dos livros Batalha pela memória: reflexões sobre o socialismo e a revolução no século 20 (Ruptura, 2022) e A negação do Brasil Negro: imperialismo, dependência e questão racial na obra de Guerreiro Ramos (Autonomia Literária, 2024), além de organizador da antologia Colonialismo e luta anticolonial, com textos de Domenico Losurdo (Boitempo, 2020).




Ronaldo Tadeu de Souza: Desde o final do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, a esquerda brasileira atravessa um processo de perda de protagonismo e crise. Na sua avaliação, quais foram os principais momentos de inflexão desse percurso? O que diferencia a crise atual da esquerda brasileira em relação a outras experiências latino-americanas ou internacionais? 

Para responder a essa pergunta, acho necessário voltar ao que foi a crise do mandato de Dilma. Circula bastante que o golpe contra a presidenta foi efetivado porque ela “peitou o sistema”, “enfrentou os bancos” e não cedeu à “corrupção”. Uma versão complementar também explica o sucesso do golpe a partir do machismo contra a presidenta. Todas essas versões ocultam o essencial. É importantíssimo lembrar que em 2014, tivemos a campanha presidencial petista com o discurso mais à esquerda em muitos anos — talvez a campanha com o discurso mais à esquerda desde 1989. O principal símbolo de campanha foi uma icônica imagem de Dilma jovem, lutando contra a ditadura, apelando para uma imagem guerrilheira. O fato da presidenta ter participado da luta armada foi usado como o maior ativo simbólico da campanha. Era o tempo da “Dilma coração valente” e do “Muda Mais”. Dilma ganhou a eleição contra Aécio Neves e vivia uma recuperação de sua popularidade e imagem (não custa lembrar que o Governo Dilma não caiu em Junho de 2013, mesmo com a dimensão das manifestações).  

Findada a eleição, o governo petista, como sempre, resolveu praticar mais um estelionato eleitoral, ignorando o programa vencedor nas urnas e aplicando o receituário do rival derrotado. Só que dessa vez vivíamos um acúmulo de contradições e desgastes do PT. A presidenta Dilma, com apoio de Lula e toda a cúpula do PT, escolheu o banqueiro do Bradesco, Joaquim Levy, para ser ministro da economia, e começou a aplicar um violento ajuste fiscal antipopular. Depois de prometer mais mudanças e dizer que não iria retirar direitos “nem que a vaca tussa”, o governo petista aplicou uma clássica política econômica recessiva para potencializar o desemprego, enfraquecer a resistência da classe trabalhadora e potencializar a taxa de lucro do grande capital. A resolução de conjuntura do Diretório Nacional do PT de 17 de maio de 2016, na página seis, sintetiza melhor do que ninguém a contradição principal do governo petista que possibilitou o êxito do golpe:  

“Diante da crise, o país foi colocado em uma encruzilhada: acelerar o programa distributivista, como havia sido defendido na campanha da reeleição presidencial, ou aceitar a agenda do grande capital, adotando medidas de austeridade sobre o setor público, os direitos sociais e a demanda, mais uma vez na perspectiva de retomada dos investimentos privados. O governo enveredou pela segunda via. 

O ajuste fiscal, além de intensificar a tendência recessiva, foi destrutivo sobre a base social petista, gerando confusão e desânimo nos trabalhadores, na juventude e na intelectualidade progressista, entre os quais se disseminou a sensação, estimulada pelos monopólios da comunicação, de estelionato eleitoral. A popularidade da presidenta rapidamente despencou. As forças conservadoras sentiram-se animadas para buscar a hegemonia nas ruas, pela primeira vez desde as semanas que antecederam o golpe militar de 1964.”

O ajuste fiscal foi devastador porque atingiu o núcleo do que se chama de lulismo, compreendido aqui como um “modelo de governança” que materializa uma estratégia social-liberal e táticas políticas de caráter meramente institucional-parlamentar na disputa política. Como o lulismo é um fenômeno essencialmente despolitizador e desmobilizador, sem disputa político-ideológica, horizonte de reformas populares e revolução, e caracterizado por construir fidelidade eleitoral a partir da entrega de políticas públicas e melhorias imediatas na economia, o efeito recessivo do ajuste foi a morte de qualquer chance de manter aquele governo. A crise aberta com o governo de Michel Temer poderia ter iniciado um grande debate nacional sobre três grandes problemas imediatos das esquerdas brasileiras como forma de fortalecer a defensiva e a resistência; e, acumulando forças, passar a médio prazo para a ofensiva:  

  1. A burocratização das organizações populares, sindicatos, movimentos sociais, coletivos, partidos políticos e afins. Era notável, por exemplo, como o movimento sindical perdeu força, iniciativa de mobilização, importância no debate público e capacidade de formar novas lideranças;
  2. As consequências da Carta ao Povo Brasileiro e a opção estratégica do PT de manter todo legado da contrarreforma neoliberal no Brasil. O PT e associados deixaram de ser um campo político vocacionado para ser agente de mudanças sociais profundas — as reformas populares — e tornou-se um mero gestor da ordem capitalista dependente com “preocupação social”. A visão popular e difusa do PT como parte do “sistema” não estava errada na sua essência; 
  3. O mix teórico que orienta a prática política petista. Uma mistura de importação acrítica das modas europeias, teorias paulistocêntricas da realidade brasileira, liberalismo “de esquerda” e total ausência de anti-imperialismo, nacionalismo popular e horizonte socialista.  

Para fugir de todas essas questões, consolidaram-se os mitos que citamos acima. Combinado a isso, vale citar também a ideia de que Dilma caiu porque não tinha “habilidade de diálogo” e “construção política” como tinha Lula — traduzido, em anedota, na ideia de que Dilma não tinha paciência para jogar conversa fora com deputado em churrasco, “arte” na qual Lula seria o mestre. Hoje estamos vendo um novo mandato de Lula e cai por terra a ideia de que seu o “carisma” e “encantamento” é o suficiente para produzir uma governança tranquila e eficiente frente aos outros aparelhos do Estado, como o Congresso Nacional, e atores políticos, como os governadores.

Mas voltando à pergunta… As particularidades históricas da crise das esquerdas brasileiras são parte de um processo geral de esgotamento das “esquerdas da ordem” no mundo todo. Por caminhos e formas diferentes, os partidos burgueses de base popular hoje estão em crise e falência. Existe um cansaço generalizado com empregos ruins, salários baixos, ausência de serviços públicos de qualidade e rede de proteção social, cidades infernais, violência, precarização de tudo e morte da esperança e do futuro.   

RTS: Muito se discute o papel dos intelectuais e das universidades públicas nesse contexto. Em que medida a atuação dessas instituições contribuiu para a crise, e quais caminhos você enxerga para que possam contribuir efetivamente para uma reconstrução do campo progressista no país? 

Para responder a essa questão, precisamos voltar à primeira pergunta. Qual foi o papel majoritário da intelectualidade frente ao estelionato eleitoral petista no governo Dilma II? Uma postura cínica, transitando entre o silêncio e o apoio ao ajuste fiscal. É notável como no período petista tivemos uma das maiores, quiçá a maior, expansão do Ensino Superior da história do país e, em seguida, na eleição de 2018, tivemos uma onda política, ideológica e eleitoral de extrema direita, com a eleição de várias figuras negacionistas, obscurantistas e anticiência. Uma pergunta básica precisa ser feita: a expansão do Ensino Superior durante o período petista não teve como consequência dotar a sociedade brasileira de maior cultura teórica e científica, refinando o debate público e a compreensão dos grandes problemas nacionais? Parece claro que não. A partir disso, precisamos questionar os motivos. Sem esgotar o tema, dados os limites de uma entrevista, arrisco algumas reflexões.

Em primeiro lugar, tal qual na economia, o governo petista manteve no essencial o modelo universitário deixado pelo governo FHC. Antes do golpe empresarial-militar de 1964, tínhamos um intenso debate público e mobilização popular em torno de uma ampla reforma universitária, inclusive contando com exemplos práticos, como a UnB de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. O golpe de 1964 mata esse debate, reforça o modelo de uma universidade pública dependente, periférica, aristocrática e elitista, além de afundada no colonialismo cultural, estranha e alheia ao povo trabalhador. Paulo Renato, o Ministro da Educação de FHC, aprofunda esse modelo, inserindo doses mortais de neoliberalismo: privatizações, trabalho terceirizado, precarização de carreiras, penúria orçamentária, formato de pós-graduação voltado para publicações, produtivismo desligado de finalidades estratégicas para o país e afins. Os governos Lula e Dilma ampliam as vagas no Ensino Superior público, aumentam as verbas e o número de concursos públicos, mas fazem tudo isso sem questionar a estrutura de universidade neoliberal e dependente.

O debate sobre a universidade no Brasil concentra-se na ideia de “inclusão social”. Apenas uma parte do problema é abordada, isto é: o histórico caráter elitista e aristocrático da universidade pública. Então o foco é a inclusão de mais pessoas pobres e negras na universidade, materializada em políticas públicas exitosas, como a política de cotas. Embora meritório e necessário, esse debate sobre “inclusão social” não representa um projeto de universidade, país e desenvolvimento de ciência e tecnologia. É notável como a maioria dos ingressantes em universidades públicas não consegue sequer concluir o curso superior — a universidade se “democratiza” do ponto de vista do acesso, mas as políticas de assistência estudantil e correspondente orçamento não acompanham, tendo como resultado óbvio a desistência do curso para alunos que não tem condições materiais de continuar sua graduação. Em paralelo a isso, os equipamentos de cultura — bibliotecas, museus, teatros, salas de cinema e afins — passam por uma expansão pautada na lógica do mercado privado. Uma expansão que, além de ser dirigida por interesses privatistas, não altera no fundamental a lógica de concentração regional e classista desses equipamentos. É chocante pensar, por exemplo, que o Brasil tem menos de cinco mil bibliotecas públicas — eram 6.057 em 2015, de acordo com o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), hoje são 4.639.  

Completa esse cenário exposto rapidamente o impressionante crescimento do Ensino Superior privado. O governo Lula adotou políticas como Fies e Prouni que, dando sequência às tendências já postas pela ditadura empresarial-militar e pelo governo FHC, fortaleceram como nunca a expansão do setor privado da educação superior. Vale citar alguns dados do Censo da Educação Superior de 2023, produzindo pelo Ministério da Educação (MEC) e Inep:  

“Oferta – O censo de 2023 registrou 2.580 instituições de educação superior. Dessas, 87,8% (2.264) eram privadas e 12,2% (316), públicas. Nesse contexto, a rede privada ofertou 95,9% (23.681.916) das mais de 24,6 milhões de vagas. Já a rede pública foi responsável por 4,1% (1.005.214) das ofertas, com 65,5% (658.273) dessas vagas em instituições federais. Na modalidade de Educação à Distância (EaD), a oferta de vagas foi de 77,2% (19.181.871); já as presenciais representaram 22,8% (5.505.259). 

Matrícula – O número de matrículas seguiu a tendência de crescimento dos últimos anos e chegou a mais de 9,9 milhões – um aumento de 5,6% entre 2022 e 2023: o maior desde 2014. As instituições privadas concentraram a maioria dos matriculados: 79,3% (7.907.652) – um crescimento de 7,3%, no mesmo período. Já as instituições públicas registraram 20,7% (2.069.130) das matrículas, uma ligeira queda de 0,4%, no mesmo intervalo.”

Como podemos ver por esses dados, o setor privado concentra o maior número de vagas do Ensino Superior no Brasil e forma, quantitativamente, a maior parte da força de trabalho qualificada do país. A questão é que as faculdades privadas são em sua maioria fábricas de diploma, sem qualquer preocupação com pesquisa ou extensão, e com um ensino bastante precário. As exceções, como as universidades católicas, conformam uma parte bem pequena das vagas de Ensino Superior não públicas.

Em suma, olhando para educação e cultura, as condições de trabalho e de produção intelectual melhoraram bem pouco no Brasil — e em várias dimensões pioraram. Há um quadro generalizado de precarização da carreira docente, desvalorização da pesquisa e extensão, avanço de interesses capitalistas na educação, proliferação em massa do ensino a distância e forte desprestígio social do papel de cientista, pesquisador e educador — totalmente conectado com a onda de extrema direita e a força institucional que ganhou o chamado bolsonarismo. 

Mas falar das universidades não explica todo o problema dos intelectuais nas condições brasileiras. Junto ao avanço da lógica neoliberal de mercantilizar e precarizar, vimos a forja de uma cultura política e organizacional na classe trabalhadora que foi marginalizando a formação política, a pesquisa e a reflexão intelectual. Os sindicatos, entidades estudantis, movimentos sociais e partidos políticos no Brasil deixaram de ser espaços de produção teórica e pesquisa científica — salvo as exceções, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Hoje é raríssimo achar no Brasil um sindicato que tenha preocupação sistemática com formação política, produção editorial e jornalística, e gaste dinheiro com alguma estrutura de pesquisa. A tendência geral é terceirizar o trabalho de formulação intelectual para as universidades.

É muito difícil pensar uma dinâmica de produção intelectual e pesquisa científica desligada das estruturas universitárias no Brasil contemporâneo. Ao mesmo tempo, sem pressão teórico-política de fora para dentro das universidades, pressão que pode ser feita pelas organizações sindicais e populares da classe trabalhadora, a tendência é que a produção acadêmica, mesmo a “comprometida” e “engajada” com as lutas populares, seja enquadrada pela lógica institucional da universidade — que, nas condições brasileiras, está sobredeterminada pela dependência e o neoliberalismo.  

O arremate desta reflexão é o seguinte: a universidade, como uma “fábrica” de intelectuais, sofre de todas as moléstias do aprofundamento do neoliberalismo, que potencializa as características históricas do capitalismo dependente brasileiro. Essa “fábrica de intelectuais” vai perdendo importância, dinamismo e capacidade de influenciar o debate público. Ao mesmo tempo, as organizações populares e de esquerda que desistiram de formar seus próprios intelectuais, terceirizando essa função para a universidade, perdem capacidade hegemônica, criatividade política e instrumentos para entender (e transformar) a realidade. A acefalia teórica dessas organizações reforça a atmosfera tendencialmente conservadora e elitista do “mundo acadêmico” brasileiro.

Acho que um ótimo sintoma disso é o “debate” sobre democracia no Brasil. Desde o golpe contra a presidenta Dilma, a tendência geral dos intelectuais e acadêmicos progressistas é reivindicar a “defesa da democracia” contra a extrema direita e o fascismo. Isso não impediu a vitória do golpe de 2016, as contrarreformas de Michel Temer, a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, o fortalecimento da extrema direita em 2022 — mesmo perdendo a presidência, a extrema direita e direita governam todos os estados do Sul e Sudeste, bem como boa parte do Centro-Oeste e Norte do Brasil —, e muito menos impede o atual derretimento do governo Lula III. Mas numa expressão tragicômica de impotência teórica, os intelectuais progressistas não têm nada que apresentar a não ser continuar repetindo frases sobre “democracia versus fascismo”, adornadas com modas pseudo-sociológicas, como essa história de “pobre de direita”.

RTS: Considerando a pluralidade de correntes e tradições dentro do marxismo brasileiro, quais autores e debates foram decisivos para sua formação intelectual? Qual sua análise sobre marxismo que se forma em São Paulo a partir do Seminário do Capital de Marx na USP, o que ele teve de positivo para o período e quais suas críticas fundamentais a respeito (concorda com a tese do Luís Carlos Bresser Pereira ao marxismo “neoliberal” já presente em Fernando Henrique Cardoso, ou considera muito anacronismo…)? E uma última questão sobre este tópico: olhando para o presente, quais perspectivas críticas você considera centrais para repensar a esquerda no Brasil de hoje?

Essa pergunta é bem ampla. Começando pela primeira questão: minha formação marxista, considerando a produção brasileira, teve como primeira grande influência a obra de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Coutinho foi o primeiro autor marxista de quem posso dizer que li todas as obras. Essa influência aconteceu por um fato bem casual. Na biblioteca do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, o CFCH, havia uma infinidade de livros de Carlos Nelson. Peguei na biblioteca o livro Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político, devorei rapidamente, adorei a escrita fluída e didática do autor e comecei a lê-lo com muito afinco. Por influência de Coutinho, passei a ler autores como Pietro Ingrao, Palmiro Togliatti e o já citado Konder, além de Nicos Poulantzas, Jorge Luis Acanda, Francisco Weffort etc. Tinha um foco de estudos em teoria política e do Estado, e questão democrática. Acontece que passei a sentir bastante falta de maior aprofundamento na crítica da economia política, e fui notando como Coutinho, Konder e companhia teorizam pouco sobre o imperialismo contemporâneo e o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho. Também me incomodava bastante a forma como Carlos Nelson apresentava as configuração da luta de classes no Brasil, a partir de uma certa leitura de Gramsci, considerando a sociedade brasileira como “ocidental” com o predomínio da hegemonia sob a coerção no processo de dominação política — algo que entrava em choque diretamente com minha experiência de vida.  

Lá por 2014, mais ou menos, tive contado com o clássico texto de João Quartim de Moraes, “Contra a canonização da democracia”. Uma crítica devastadora das teses sobre a “democracia como valor universal” e do “socialismo democrático”, que tinha como alvo central (ainda que isso não fosse dito abertamente no artigo) a obra de Carlos Nelson Coutinho. Em seguida, conheci a obra do italiano Domenico Losurdo através do livro Liberalismo: entre a civilização e a barbárie. Esse livro de Losurdo criou uma consciência da necessidade de estudar com sistematicidade o imperialismo, a dependência e a historicidade do capitalismo na periferia do sistema. Deste momento em diante, mergulhei nos autores da Teoria Marxista da Dependência (TMD): Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos se tornaram não só minhas principais referências, como uma obsessão de estudos. Aos poucos, contudo, fui me dando conta de que embora as teses centrais da TMD estivessem corretas, faltava bastante coisa na formulação original e nos continuadores das reflexões de Marini, Bambirra e dos Santos. Destaco duas questões essenciais: um estudo da história brasileira em menor grau de abstração, captando a luta de classes nos seus momentos decisivos, e uma pesquisa atenta sobre como é garantida a reprodução da superexploração da força de trabalho. Pela característica de formação de Marini, Bambirra e dos Santos, suas obras operam quase sempre em níveis mais altos de abstração e têm ausências notáveis — como reflexões sobre o papel da questão racial na estruturação e reprodução da superexploração da força de trabalho. 

Percebendo essa necessidade de enriquecimento das formulações da TMD, busquei respostas na obra de Clóvis Moura e Nelson Werneck Sodré. Clóvis Moura é autor de uma potente, criativa e original teoria do Brasil a partir da questão racial. É, ao meu juízo, o melhor exemplo de ambientação brasileira do marxismo. Na sua obra encontramos uma reflexão marxista que não carrega nenhum vício eurocêntrico e de transplante de condições, ideias, imagens e subjetividades dos centros do sistema imperialista para pensar a realidade brasileira. Já Nelson Werneck Sodré é o mais completo, erudito e qualificado historiador brasileiro do século passado, tendo escrito livros incontornáveis sobre história nacional tendo como fio condutor a história das forças armadas, imprensa, cultura, burguesia brasileira etc.

Por fim, nos últimos três anos, passei a ler bastante Darcy Ribeiro. Comecei a admirar o autor enquanto figura política, consumindo suas entrevistas e maravilhado com sua verve e paixão pelo Brasil. Ler sua obra tem sido útil para fornecer instrumentos para pensar a questão nacional e o que particulariza étnica e culturalmente o povo brasileiro no mundo. Então, em síntese, diria que minhas principais influências são: Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos, Clóvis Moura, Nelson Werneck Sodré e Darcy Ribeiro. Claro que muitos podem estranhar ver Darcy nessa lista, considerando que estamos falando de marxistas. Adianto a polêmica e não acho que Darcy seja marxista, mas sua obra, em diálogo construtivo com o marxismo, tem muito a contribuir com a tradição do materialismo histórico-dialético no Brasil.  

Sobre a questão do Seminário do Capital da USP e a ideia de um “marxismo neoliberal”, creio ser um evidente anacronismo. Não é possível falar de neoliberalismo no final da década de 1950. Acho que o problema está em outra direção. O marxismo brasileiro não tinha boa acolhida nas universidades, mas tinha na classe trabalhadora. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) e setores mais radicalizados do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) usavam o marxismo como uma arma na luta política e como instrumental teórico de compreensão da realidade. Tínhamos no Brasil uma rede de editoras, jornais, espaços culturais que serviam para a difusão de pesquisa e produção intelectual marxista. Ao mesmo tempo, considerando a cultura política dos comunistas à época, pautada numa estratégia nacional-libertadora, não é exagero dizer que existia no Brasil um campo nacional-popular que congregava marxistas, cepalinos, socialistas, trabalhistas e nacionalistas de diversas colorações. Provavelmente o maior símbolo e expressão intelectual desse campo nacional-popular foi o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que contou com a presença de nomes como Alberto Guerreiro Ramos e Nelson Werneck Sodré.

Pois bem, em paralelo a essa produção intelectual e experiência política que tinha o Rio de Janeiro como centro difusor, em São Paulo se desenvolve uma tradição científica de ciências sociais profissionalizadas, sem engajamento militante, preocupada em acompanhar a forma e o conteúdo da produção sociológica da França, Alemanha, Estados Unidos etc. É notável como no pré-golpe empresarial-militar de 1964, na polêmica entre Florestan Fernandes e Alberto Guerreiro Ramos, Florestan defendia um “padrão científico universal” e se insurgia contra a sociologia nacional, militante e engajada de Guerreiro Ramos (por uma dessas maravilhosas ironias da história, depois Florestan se torna um pensador revolucionário, marxista-leninista, e Guerreiro Ramos renega suas formulações anteriores e passa a defender uma sociologia “desideologizada”, durante seu exílio nos Estados Unidos). 

Mas voltando… São Paulo era o centro teórico-cultural de uma hostilidade à tradição nacional-popular construída no Brasil. Essa hostilidade, durante bom tempo, também teve uma versão de esquerda: uma crítica ao marxismo do PCB e ao trabalhismo, tendo como principais arsenais as acusações de populismo, stalinismo, nacionalismo burguês, reformismo etc. Na aparência, era uma crítica para guiar a classe trabalhadora para uma estratégia política e marco teórico mais radical, à esquerda, revolucionário — e não o reformismo da estratégia nacional libertadora. Só que essa crítica paulista à esquerda, salvo as exceções, tinha algumas características preocupantes: a) fazia uma crítica de fora das organizações populares, partidos políticos e movimentos da classe trabalhadora — o não engajamento, inclusive, não poucas vezes foi mostrado como virtude e única possibilidade de espírito crítico e independência da “ortodoxia”; b) na crítica à tradição nacional-popular, a tendência era jogar fora o “bebê com a água do banho”, como se tudo não passasse de um grande engano, simples erro teórico por falta de leitura rigorosa dos textos marxianos ou pelo pecado mortal do “stalinismo”; c) a polêmica sobre a formação social brasileira e o caráter da nossa revolução, muito polarizada pela querela se existia ou não feudalismo ou semi-feudalismo no Brasil, foi usada como arma de estigma e difamação contra importantes intelectuais, como Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães; d) as críticas ao nacionalismo reformista e seus usos como instrumento de apassivamento da classe trabalhadora acabou se transformando numa chave para marginalizar o debate sobre a questão nacional e o papel do intelectual na emancipação do seu país — que, à época, era condensada na ideia de superação do subdesenvolvimento.  

Em suma, o Seminário do Capital de Marx na USP foi uma espécie de origem do “marxismo acadêmico” no Brasil. Carlos Nelson Coutinho chamou de “marxismo modernizante”: aqueles que estudaram O capital não para superar o capitalismo brasileiro, mas sim para modernizá-lo. Essa tradição maxista tem contribuições? Sem dúvidas. É inegável que Francisco Weffort, FHC, José Arthur Gianotti e afins produziram importantes obras que marcaram época e até hoje precisam ser lidas. Mas apesar das contribuições teóricas, o saldo, no geral, é negativo. Perceba como o aparente paradoxo se desfaz: o principal alvo desse marxismo paulista era o campo nacional-popular protagonizado por comunistas e trabalhistas, etiquetado como populista, e que tinha na Era Vargas a sua base material (a ideia da possibilidade de construir um capitalismo nacional, não dependente e autônomo do imperialismo). Buscavam sua “destruição à esquerda”, e como essa superação à esquerda não veio, por que não fazê-la a partir de uma superação à direita? FHC, no seu último discurso no Senado, antes de tomar posse como presidente, prometeu enterrar a Era Vargas. Francisco Weffort saudou a vitória eleitoral do amigo como a “segunda revolução democrática do Brasil” — a primeira tinha acontecido depois de 1930, segundo o Weffort, mas como ele não especifica a data, podemos imaginar que se trata da contrarrevolução de 1932, chamada erroneamente de “Revolução Constitucionalista”. No final, o marxismo paulista conseguiu: já não existe mais um campo nacional-popular no Brasil. A Era Vargas foi enterrada. O nacionalismo e o anti-imperialismo deixaram de ser elementos definidores da cultura política das esquerdas no Brasil. O resultado está aí: Fernando Haddad, João Campos, Tabata Amaral… 

Por fim, quanto à última questão, vou respondê-la focado na perspectiva da produção teórica. A primeira coisa é tirar o marxismo do seu aprisionamento acadêmico. O marxismo não pode ter vida intelectual apenas nas universidades — que, não custa lembrar, são burguesas. É preciso criar uma cultura de formação política, pesquisa e editoração nos sindicatos, movimentos sociais, partidos e coletivos. Pressionar de fora para dentro a produção teórica da universidade, buscando reduzir os efeitos estruturais do seu enquadramento institucional. Essa produção teórica marxista precisa enfrentar o colonialismo cultural e fincar raízes no Brasil — na nossa história, cultura, folclore, símbolos e no patrimônio de militância e luta da classe trabalhadora. O marxismo brasileiro precisa se nacionalizar. Esse processo de nacionalização tem que estar acompanhado de um intenso diálogo com a produção crítica e a experiência política das periferias do sistema capitalista, com destaque para América Latina e África. Nesse processo, tenho certeza de que o resultado será o reencontro com a crítica da economia política nas condições histórico-concretas de reprodução do capitalismo dependente brasileiro, a questão nacional e o nacionalismo, o anti-imperialismo e a conquista do poder político. Quero me deter um pouco mais neste último ponto: o objetivo de todo marxista deveria ser a conquista do poder político para começar a transição ao socialismo. O marxismo não é só uma teoria crítica, a busca da negatividade imanente da ordem ou a tentativa de achar brechas e margens no sistema capitalista — numa ideia de “mudar o mundo sem tomar o poder”. O marxismo é um projeto teórico-político de conquista do poder, a formação de um bloco histórico das classes não proprietárias, lideradas pelo proletariado para destruir o Estado burguês e forjar o poder popular, o Estado proletário. Sem horizonte de poder político, sem que a conquista do poder seja tratada como indispensável para o projeto marxista, teremos a reprodução do que existe hoje: uma análise marxista da realidade combinada com uma prática política social-democrata, no melhor dos cenários, ou simplesmente social-liberal.

RTS: Você já afirmou algumas vezes ser leitor de Maquiavel, Carl Schmitt e Foucault; de ter lido todo o Teoria da Ação Comunicativa do Jürgen Habermas; afirma também que Weber é teoricamente mais frágil que Émile Durkheim. Qual sua compreensão sobre pesquisadores/as e intelectuais negros e negras, atualmente, que tendem a “só ler e estudar” autores e autoras negros? Qual o ganho e o prejuízo para a formação de uma intelectualidade negra radical, combativa teoricamente, desse processo? E quem são os/as intelectuais e acadêmicos/as negras/os que junto com você mais se destacam no debate público brasileiro (óbvio que o corte da pergunta é de progressista a esquerda radical-revolucionária, passando pela esquerda moderada)? 

Essa é uma ótima pergunta. Acho que setores do movimento negro brasileiro confundem duas ordens de questões diferentes. É fator notório que o racismo brasileiro criou uma barreira para a criação de intelectuais negros e negras e naturalizou que grandes nomes da cultura brasileira escrevessem barbaridades sobre a questão racial — penso, por exemplo, em Caio Prado Jr. e Celso Furtado. É preciso chamar atenção insistentemente para essa dimensão da história brasileira, criticar duramente o apagamento da questão racial, as teorias aberta ou veladamente racistas e destacar sempre que possível a necessidade de formação de intelectuais negros e negras. Essa é uma demanda urgente, legítima e indispensável. Ao mesmo tempo, contudo, não faremos isso só lendo autores negros e negras ou reivindicando uma falsa “decolonialidade” — que não passa de mais uma moda acadêmica importada de universidades dos Estados Unidos e Europa Ocidental. Pense em um dado básico: por causa dos efeitos estruturais do racismo, tivemos poucos intelectuais negros inseridos no grande debate das décadas de 1950, 1960 e 1970 sobre dependência, subdesenvolvimento e imperialismo. Imagine negar-me a estudar esses autores e continuar esse meu programa de pesquisa pela pouca presença de negros e negras entre os autores de referência?  

Ao mesmo tempo, acho que essa falsa polêmica é fruto da cultura pós-moderna e sua apologia da ignorância. O termo pode ser duro, mas é disso que se trata. Ideias como atribuir o mesmo estatuto teórico-ontológico para artes, literatura e ciência; a hipervalorização da experiência individual — a tal “vivência” — como superior à pesquisa teórica; reduzir todo processo de aprendizagem a questões de linguagem e forma expositiva; naturalizar a super fragmentação do conhecimento e a ultra especialização; além de fazer uma demagogia pseudo-popular sobre acesso ao conhecimento são traços típicos de nossa época. De tempos em tempos, aparecem nas redes sociais falsas polêmicas do tipo “sua avó entende sua tese de doutorado?”. Ora, minha avó, se estivesse viva, não conseguiria entender bem minha dissertação de mestrado (a minha pesquisa foi sobre a obra de Carlos Nelson Coutinho e a estratégia socialista); até onde me consta, minha avó nunca estudou Carlos Nelson e teoria política, logo: não, ela não entenderia. Isso não é um problema de linguagem ou uma expressão de elitismo acadêmico.

É notável como esse espírito do tempo pós-moderno influencia de maneira prejudicial a formação da juventude negra que está finalmente entrando nas universidades. Cito dois exemplos que acho expressivos e tristes. Tornou-se moda falar em superar a “episteme colonial”, falar em epistemologias do sul, epistemicídio, epistemologia decolonial, eurocentrismo e ciências sociais afrocentradas ou inspiradas em saberes ancestrais africanos (quase nunca definindo de que região de África e de que contexto histórico, como se o continente fosse um todo homogêneo no espaço-tempo). Um olhar atento para essas reflexões vai constatar que se trata simplesmente do pós-estruturalismo francês, não poucas vezes abertamente tributário da obra de Michel Foucault. Exemplo desta contradição é o livro da filósofa Djamila Ribeiro, Lugar de fala, um mix de teorias pós-estruturalistas afrancesadas que se vende como uma espécie de reflexão lastreada na “vivência” e na produção teórica de mulheres negras. Outro exemplo é a quase total incapacidade da maioria do movimento negro brasileiro de debater o formação social brasileira como totalidade e contribuir na crítica da economia política. Expressão empírica disso é a simples ausência de posições das principais organizações, lideranças, intelectuais e personalidades do movimento negro sobre questões como a política do Banco Central, Petrobras, política fiscal e o novo Teto de Gastos, dependência e desindustrialização brasileira etc.

Um movimento negro que não tem o que dizer sobre economia, geopolítica e poder político — para além de lugares-comuns sobre representatividade — não tem vocação para transformar a ordem dominante e, por consequência, superar o racismo. A partir disso, conecto com o último ponto dessa pergunta. Citarei o nome de três jovens pesquisadores/intelectuais negros que mostram uma produção teórica promissora, qualificada e sem os problemas vistos nas correntes liberais e pós-modernas do movimento negro: Márcio Farias, Deivison Faustino e Cristiane Sabino. Os três são pesquisadores que pensam o Brasil e a América Latina conectados ao melhor da tradição marxista, refletindo sobre imperialismo, dependência, luta de classes e questão racial. Conseguem, ao mesmo tempo, encarar a formação econômica social como uma totalidade e captar as particularidades da vida e existência da população negra, sujeita a formas específicas de dominação no âmbito do padrão de dominação política do nosso país.  

RTS: No debate público recente, temas como identitarismo e radicalização das pautas raciais têm provocado impasses dentro do campo progressista. Como você enxerga essas disputas e quais seriam os desafios e possibilidades para a construção de uma intelectualidade negra radical no Brasil? 

A primeira coisa que lamento é os termos do debate. O marxismo, historicamente, compreendeu duas categorias como centrais para estudar dominação burguesa: exploração e opressão. A primeira diz respeito ao processo de consumo da força de trabalho pelo capital e a expropriação da riqueza socialmente produzida pelos proprietários dos meios de produção. A segunda categoria diz respeito aos processos de negativação social de certos grupos, categorias e setores da classe trabalhadora que a partir de marcadores de raça, gênero, etnia, nacionalidade, religião e afins estão sujeitos a mecanismos específicos de dominação política, ideológica e jurídica, com efeitos no processo de exploração. Dez anos atrás ninguém usava termos como “identitarismo” no Brasil. Se você consultar obras clássicas sobre a questão racial no Brasil, como as produções de Clóvis Moura e Lélia Gonzalez, os termos do debate são outros. De maneira acrítica, aceitou-se enquadrar o debate sobre opressão racial, de gênero e sexualidade numa linguagem importada dos Estados Unidos, totalmente alheia ao acúmulo crítico do debate brasileiro e latino-americano — o que torna a coisa ainda mais engraçada, pensando que temos “anti-identitários” que juram que são grandes guerreiros, mas se assemelham mais a uma espécie mais grotesca do clássico Dom Quixote, dessa vez contra o colonialismo cultural.  

Reforço este ponto. Os termos do debate que deveríamos adotar são: a) o lugar teórico da opressão como um instrumento de dominação político-ideológico e um potencializador da exploração no modo de produção capitalista; b) a situação específica das opressões na formação econômica social brasileira e suas diversas fases históricas; c) as particularidades de cada opressão, apreendendo sua historicidade, estrutura e dinâmica. A partir disso, podemos qualificar os termos teóricos do debate. Feita esta nota, volto à  pergunta — e a questão me parece incrivelmente simples de responder. 

Para alguns, quando se fala de identitarismo, trata-se de correntes liberais, pós-modernas ou até conservadoras nos movimentos anti-opressão. Se é disso que estamos falando, simplesmente não existem novidades. Sempre tivemos nos movimentos feministas, negros, indígenas e afins correntes mais à esquerda e outras mais à direita, umas ligadas a perspectivas proletárias, outras pequeno-burguesas ou burguesas. É até estranha a surpresa no tema. Do mesmo jeito que existe o sindicalismo classista e combativo, existe o sindicalismo pelego, liberal, conciliador de classes. A disputa entre correntes do movimento negro mais liberais e correntes críticas também não é uma novidade — nem no Brasil, nem em outros países. Nesse ponto, o que precisamos é a boa e velha disputa política para combater essas correntes e suas respectivas práticas políticas, fortalecendo uma estratégia política radical, revolucionária e lastreada em métodos de luta proletários.

Mas quando se entende por identitarismo qualquer referência à questão racial e outras opressões, como se elas em si fossem uma espécie de “desvio” da luta de classes e da contradição capital-trabalho, o que temos é puro e simples reacionarismo, um conservadorismo fantasiado de suposta “ortodoxia”. Nesta entrevista falei como o racismo brasileiro criou uma barreira histórica à formação de intelectuais negros e negras — desde uma perspectiva estrutural e simbólica, a imagem do intelectual no Brasil é de um homem branco, publicamente hétero, paulista e que não tem sobrenome Silva. O que muitos chamam de “identitarismo” nada mais é que uma imagem abstrata, idealista e vulgar da classe trabalhadora, como se a classe existisse num vácuo social, só como portadora da força de trabalho para vender, e não fosse constituída de múltiplas relações sociais e identidades. Essa visão é tão nociva e errada como leituras liberais e pós-modernas dos movimentos anti-opressão. Indo além, se pensar com calma, veremos que mesmo com aparência de antagônicas, elas se completam: os liberais do movimento negro que rejeitam o marxismo por ser supostamente eurocêntrico e a raça ser “mais importante que a classe” e os ditos “marxistas” anti-identitarismo que acham que luta de classes e exploração capitalista não têm o que ver com a luta antirracista. No final, eles concordam que não pode existir um antirracismo marxista e revolucionário.

RTS: Por fim, diante do atual cenário político e social, quais seriam, a seu ver, os principais caminhos e prioridades para a reconstrução de uma esquerda capaz de articular demandas populares e promover mudanças estruturais no Brasil? 

Como estamos chegando no final da entrevista, vou me permitir ser um pouco mais sintético, já que muitas das questões já foram adiantadas em perguntas anteriores. Sendo didático e até um pouco simplista, vou apenas enumerar os pontos, sem entrar em minúcias de como concretizá-los: 

  1. Precisamos nacionalizar o marxismo brasileiro, mergulhar na nossa realidade e superar a ideologia do colonialismo cultural. Para fazê-lo, um bom caminho é tomar a Revolução Brasileira como fio condutor da nossa pesquisa científica e agitação e propaganda revolucionária; 
  2. É indispensável iniciar um amplo movimento de reconstrução do tecido organizativo da classe trabalhadora. Vivemos nesse momento uma falência ou esgotamento dos tradicionais sindicatos, movimentos sociais, centrais sindicais, coletivos, partidos políticos e formas de organização local. Cada vez menos trabalhadores e trabalhadoras se veem representados ou chamados a construir espaços como os sindicatos e entidades estudantis, como a UNE. Sem encarar de frente essa crise organizativa, não teremos chances de mudar a correlação de forças desfavorável; 
  3. É fundamental retomar o debate sobre a questão nacional, o imperialismo e a dependência. Diria mais: trocar a chave de defesa da democracia, que não mobiliza nenhum setor significativo da classe trabalhadora, por uma identidade política centrada no nacionalismo revolucionário e no antiimperialismo; 
  4. Temos urgência de um profundo ciclo de formação de novos dirigentes políticos, intelectuais, figuras públicas e organizadores. É chocante como a direita e extrema direita conseguiram formar novos quadros nos últimos anos enquanto nas esquerdas brasileiras segue um processo de fechamento à renovação.  

RTS: Seu mais recente livro foi dedicado à obra de Guerreiro Ramos. Olhando para frente, quais são as grandes questões que hoje orientam suas pesquisas e projetos intelectuais? Poderia compartilhar conosco um pouco sobre os temas e argumentos centrais que pretende desenvolver em suas próximas publicações, como o estudo sobre Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez? 

Iria publicar este ano um livro debatendo a obra de Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, mas o Brasil e o cenário internacional me obrigaram a mudar os planos. Esse livro, que ainda pretendo publicar, fica para 2028 ou 2029. Estou escrevendo nesse momento um livro chamado O Brasil tem futuro? Um guia político para Revolução Brasileira, em que da forma mais didática e menos acadêmica possível busco apresentar os principais desafios e reflexões para renovar a esquerda brasileira e colocar a Revolução Brasileira como prioridade estratégica da luta popular no país. Em paralelo a isso, estou reunindo material sobre China e Vietnã. Este ano, em novembro, passo algumas semanas no Vietnã, e ano que vem, viajo para a China. A ideia é lançar um livro conjunto sobre os países ou livros separados (tenho dúvidas ainda) combinando relato de viagem e reflexão teórica. Por fim, mas não menos importante, estou naquele momento em que penso seriamente em mudar o tema da minha tese de doutorado. Ainda não sei se farei isso ou não. Mas neste momento, estou bastante inclinado a colocar como foco da minha tese o marxismo e a questão nacional, tanto do ponto de vista da literatura marxista quanto das questões colocadas pela realidade na América Latina e Brasil.  

Depois de concluído o doutorado, algo que vai acontecer em 2028, vou me dedicar a lançar uma coleção sobre história brasileira com documentos e textos clássicos sobre temas fundamentais do nosso país: racismo; questão militar; questão agrária; Estado e poder político; estrutura de classes; dependência e subdesenvolvimento etc. A ideia é facilitar para o público brasileiro, especialmente os mais jovens, um encontro com o fio da história, conectando os processo de formação com o pensamento social brasileiro. Tenho muita expectativa sobre esse projeto e espero ter saúde e tempo para tirá-lo do “mundo das ideias” — e espero que seja bem recepcionado pelo público. 

Muito obrigado, Jones Manoel! 

***
Ronaldo Tadeu de Souza é professor de Teoria Política na UFRJ, pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea – Cedec e do Grupo de Pesquisa Democracia e Teoria (GPDET-UFRJ/CNPq), além de editor do Dicionário Marxista das Américas.



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Data original de publicação: 15 de agosto de 2025

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