O julgamento e a radicalização democrática


Por Edson Teles | blog da Boitempo



O julgamento do ex-presidente Bolsonaro e da sua tropa golpista está a configurar-se como um grande evento político, jurídico e institucional do Estado de Direito no país. Dos oito réus, cinco são oficiais militares (um da Marinha e quatro do Exército); outro deles, o ex-presidente, já esteve nos quartéis; e dos dois civis restantes, um comandou a agência de espionagem do Estado. Trata-se, sem dúvida, de um dos maiores acontecimentos políticos da democracia no pós-ditadura, com um impacto histórico no contexto brasileiro e, inclusive, mundial. Uma espécie de vitrine para as democracias liberais do século XXI.

Contudo, gostaria de ponderar algumas questões. Claramente está indo a julgamento a tropa de choque da tentativa de golpe de 2022/2023. Assim como já vem ocorrendo com aqueles que foram a ponta do iceberg das invasões do Congresso Nacional, do STF e do Palácio do Planalto, em 8 de janeiro de 2023, o julgamento dessa tropa parece indicar o mesmo caminho.

As questões são: seria possível essa tropa organizar uma rede de manifestações favoráveis ao golpe, com acampamento na porta dos principais quarteis do país, sem anuência dos militares locais e sem um suporte e uma articulação nacional em logística, discursiva, econômica e, principalmente, política? Teria sido possível a tropa de choque chegar ao ponto a que chegou sem que o alto comando das Forças Armadas tivesse participado? Seria possível um presidente que já ameaçava dar um golpe ao menos desde dois anos antes do evento se sustentar sem que articulações de forças políticas no Congresso Nacional e nos Estados fossem cúmplices? Teria sustentação um governo autoritário, violento e golpista flertando com o golpe de Estado sem a cumplicidade da Faria Lima e das grandes corporações?

Claro que do ponto de vista das evidências essas perguntas podem não ter sentido. Talvez elas pudessem se sustentar sobre os indícios. Porém, certamente são necessárias a partir de uma abordagem política. Esses questionamentos colocados acima não diminuem ou invalidam o processo jurídico-policial contra a tropa de choque. O extenso relatório da Polícia Federal, o parecer que ouviremos do relator do STF, Alexandre de Moraes, e mesmo a cobertura da grande mídia apontam para um processo montado em torno do discurso policial, da produção das evidências, da coleta da materialidade do crime e do rito das oitivas e dos depoimentos.

Por outro lado, uma série de discursos ou de silêncios acompanham a história do julgamento. Talvez o aspecto mais eloquente é o modo como essa história se assemelha e, por isso, é relacionada com o golpe de Estado de 1964, a ditadura militar de mais de duas décadas e o processo de impunidade gerado a partir da interpretação que a democracia deu à Lei de Anistia de 1979 (aprovada ainda sob os ditames do regime ditatorial).

Diante do julgamento se torna impossível não estabelecer uma relação histórica com outros momentos de ataque à democracia. A própria tentativa de golpe de 2022/2023 acionou essas conexões ao mobilizar a ideia de intervenção das Forças Armadas na condução do Estado e da política, aos moldes do que se fez entre 1964 e 1988. Mesmo depois do fracasso, ao reivindicar a anistia “ampla, geral e irrestrita”, como faz Eduardo Bolsonaro, é evidente a referência ao lema do movimento brasileiro pela anistia dos anos 1970, em defesa das vítimas da violência do Estado ditatorial. Não tem sido incomum formadores de opinião fazerem a aproximação histórica e opinarem que, desta vez, a democracia está se consolidando, e que a resposta será diferente.

Cabe indagar por que esse julgamento é aceito por setores que no momento do golpe estavam alinhados com os golpistas? Como que em um momento de ascensão da extrema direita no país e no mundo o STF consegue emplacar esse processo histórico?

Creio que nos ajuda a entender a situação trilhar de volta o caminho histórico para entender minimamente as relações entre 1964 e 2022 seguindo as trilhas das profundas diferenças entre a anistia a golpistas hoje e a Anistia de 1979. Talvez isso nos permita avaliar com maior precisão os significados desse julgamento, os quais obviamente ainda estão em construção.

Em agosto de 1979, o Congresso Nacional, sufocado por leis discricionárias e autoritárias, aprovou a anistia para todos os que “cometeram crimes políticos ou conexos com estes”, como se lia no artigo primeiro da lei. Isso indicava, na interpretação dos oposicionistas, que seriam incluídos nos benefícios das leis não somente os presos e perseguidos por qualquer ato de oposição à ditadura, mas que a interpretação da lei englobaria também as ações em contexto de luta armada que visavam possibilitar aos grupos resistirem ao terrorismo de Estado. Por exemplo, quando um grupo expropriava, como se dizia, um carro ou armas de um quartel para alimentar as ações de resistência. Já na interpretação da ditadura e dos seus subalternos, o primeiro artigo da Lei de Anistia se referia também aos agentes do Estado que haviam sequestrado, torturado, assinado e ocultados os corpos de opositores.

A ideia de “crimes conexos” parecia conflitar com o parágrafo segundo da mesma lei, no qual se lia que estavam excluídos dos benefícios aqueles que haviam sido condenados por “crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Esses condenados estariam fora das benesses de uma anistia. Sabemos que a ditadura não condenou qualquer torturador ou agente do Estado envolvido nos processos repressivos. Aliás, nem mesmo a democracia o fez, salvo nas ações civis e declaratórias, como no caso do coronel Ustra, condenado civilmente por ter sido o torturador da família Teles.

A campanha pela anistia gerou forte pressão popular contra um regime militar já em dificuldades e se configurou como um dos primeiros movimentos sociais, desde o Golpe de 1964, a fazer uso massivo do discurso dos direitos humanos. Sua formulação era sintetizada na frase “anistia ampla, geral e irrestrita”, tal como hoje o ainda deputado Eduardo Bolsonaro o faz.

A decisão de não julgar os responsáveis pela violência de Estado ensejou algumas estratégias autoritárias presentes na democracia até os dias atuais: o apagamento de uma memória coletiva sobre a ditadura, a permanência da violência de Estado e a permissividade à presença das Forças Armadas enquanto uma força política e social legítima.

Diante desse cenário, torna-se inescapável relacionar a presença de tais estratégias com o atual momento do país, quando a extrema direita ascende com discurso elogioso à ditadura e à violência contra a população negra e periférica, autorizando uma guerra contra o “inimigo interno”, como nos tempos da ditadura, mas com alcunhas pseudodemocráticas e defensivas, como “Operação Escudo” (ação de extermínio da Polícia Militar de São Paulo na Baixada Santista, em 2023). A tentativa de um golpe, exaltado em frente aos quartéis das principais capitais do país, pairou sobre os processos políticos como o ato oculto de uma democracia limitada e frágil, mas também violenta e autoritária.

A militarização da política — e aqui não me refiro apenas à presença de militares, mas à ideia de que a política não seria o campo dos debates e do tratamento das diferenças, mas o campo da guerra contra o inimigo —, soma-se aos espectros do passado na articulação de figuras conservadoras e alinhadas a um fascismo colonial em defesa da anistia que “pacifique” o país.

O Estado miliciano, que não nasceu com Bolsonaro, mas que certamente se estruturou consideravelmente a partir de seu governo, entendeu como funciona o Estado de Direito e procura dele tirar o melhor proveito. Faria Lima, PCC, militarização e processos repressivos às lutas sociais caminham juntos. Não há engano nesses encontros, eles são partes dos fluxos das vontades do grande capital.

Assim, as instituições da democracia flertam com o fascismo colonial do bolsonarismo, mas também podem descartar o líder fascista em um processo judicial. A direita poderia ganhar alguns benefícios: um mártir para manter a política do inimigo; um caminho aberto para candidatos mais “higienizados” da extrema direita; a imagem de uma democracia ciosa dos direitos e da justiça, ao mesmo passo que vivemos diante de um Estado genocida e de um abismo das desigualdades sociais.

Com as casas legislativas sequestradas pelo “Centrão” e alinhadas aos conservadores, corre-se o risco de, se for eleito um representante da extrema direita, ainda haver a possibilidade do retorno triunfal do líder fascista por meio de uma anistia extorquida aos ideais democráticos e a partir dos próprios regramentos do Estado de Direito.

Há, parece-me claro, um conflito entre democratas e autoritários, entre o legal e o ilegal, o consentido e o violento. No entanto, tomando o Brasil contemporâneo como exemplo, desde a sua experiência de saída da ditadura e de adesão a um modelo neoliberal globalizado, seja com governos de cariz social ou outros mais alinhados à direita e à economia da extração, o que se verifica é um exercício dos poderes palaciano, autoritários e sempre tendente a pactos que descartam a radicalização em direção a uma sociedade mais democrática e menos desigual.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade na revista Margem Esquerda n.19.



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Data original de publicação: 02 de setembro de 2025

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