Do servidor ao precário



Por João dos Reis Silva Júnior | A terra é redonda



O verdadeiro privilégio a ser combatido não é a estabilidade do servidor, mas o sequestro do fundo público pelo capital financeiro que destrói o Estado




Em conversa com meu amigo Professor Chiquinho Alves sobre o Estado Brasileiro, chegamos a boa síntese do agente que explora os brasileiros desde o Império. Ele jamais representou a sociedade. Ele chega de fora para colonizar e extrair riquezas. Outras dimensões foram discutidas e chegamos à concussão sobre a jabuticaba brasileira.

O Estado brasileiro pode ser caracterizado, a partir do texto “Teoria do Estado sem referências”, como uma máquina histórica de conciliação e dependência. Desde o período colonial, o Estado foi concebido não como instrumento de emancipação social, mas como engenharia da desigualdade, administrando a pobreza como virtude e a obediência como moral pública.

Sua função tem sido gerir o desequilíbrio entre senhores e servos, elites e povo, transformando a dominação em estabilidade. Essa estrutura conciliatória, herdeira do patrimonialismo ibérico e do moralismo religioso, converteu a violência em método e a desigualdade em norma. O Estado, portanto, nasce como mediador do atraso, articulando o moderno e o arcaico, o cálculo e a fé, a burocracia e o favor, numa racionalidade que conserva o privilégio sob o disfarce da técnica e da contabilidade.

Em sua forma contemporânea, o Estado brasileiro é a expressão institucional do que o Estado é a fusão entre subordinação econômica e subordinação simbólica. Ele atua como mediador entre o capital internacional e a sociedade nacional, conciliando os interesses das elites com a gestão moral da desigualdade. No plano econômico, é o administrador da dívida e do déficit; no plano político, o gestor da obediência e da gratidão.

A modernização brasileira, ao invés de romper com a herança colonial, a racionalizou: o tronco foi substituído pela planilha, o açoite pela estatística, o capitão do mato pelo gestor. Assim, o Estado continua a cumprir seu papel histórico de operador da dependência, produzindo estabilidade por meio da conciliação e legitimando a exclusão como expressão de ordem e progresso.

Por esta razão, argumentamos que a reinvindicação dos direitos do funcionalismo público deve estar lado a lado com outras categorias e buscando uma guinada nas conciliações que acontece desde a colônia. O movimento deve ser único e o alvo certo é este Estado inacabado, a República Inacabada, uma democracia frágil e sempre dócil com este Estado que oprime a sociedade toda.

A reforma como destruição do Estado e do trabalho

Mais uma vez, os trabalhadores brasileiros são convocados a atravessar uma transformação ontológica imposta de cima para baixo. A chamada Reforma Administrativa não é uma “reforma”: é a destruição do serviço público e o desmonte de direitos sociais e trabalhistas conquistados ao longo de décadas de lutas coletivas.

Ao contrário do que prega o discurso oficial, essa reforma não combate privilégios, nem corrige distorções; ela desestrutura o Estado e lança os servidores – e com eles, o povo – à precariedade. Em um país de desigualdades brutais, onde os trabalhadores dependem dos serviços públicos para sobreviver, atacar o funcionalismo é atacar as bases da sobrevivência social.

Por isso, é preciso compreender que a luta contra a Reforma Administrativa é também uma luta pela preservação do Estado republicano. Defender o servidor público é defender o direito do povo de existir com dignidade.

Nenhuma reforma administrativa é neutra. Toda reestruturação estatal redefine o equilíbrio entre trabalho e fundo público, isto é, entre quem produz o valor social e quem dele se apropria.

Desde a crise financeira de 2008, o capital fictício – incapaz de valorizar-se pela produção – voltou-se para o orçamento público como fonte de rentabilidade. Assim, o Estado deixa de ser mediador da redistribuição social e torna-se gestor da austeridade.

O fundo público, que antes financiava políticas e direitos, passa a servir prioritariamente ao pagamento da dívida e à manutenção da “confiança” dos mercados. Nesse contexto, a Reforma Administrativa é peça contábil e ideológica de um processo histórico que subordina o Estado à lógica do capital financeiro.

Mas, como advertia Chiquinho Alves, há um erro político recorrente em nossas lutas: enxergar a reforma apenas como ataque aos servidores, e não como ataque estrutural à sociedade. Enquanto o discurso dominante pinta o servidor como “marajá”, oculta-se que o verdadeiro privilégio está nos altos escalões do Judiciário, Legislativo e no rentismo que sequestra o orçamento público.

O servidor público

Na tradição republicana, o servidor público simbolizava a permanência do Estado sobre os governos, o elo entre a soberania e o povo. Sua estabilidade era garantia institucional de continuidade e impessoalidade, não privilégio.

A Reforma rompe esse pacto: o servidor é expulso do fundo público e transformado em mercadoria temporária, avaliada por desempenho e descartável por decisão administrativa. A estabilidade, que assegurava o interesse público, torna-se “rigidez fiscal”. A folha de pagamento, antes expressão do pacto social, é tratada como “obstáculo à responsabilidade”.

Esse deslocamento semântico é o primeiro movimento da financeirização do Estado: o trabalho público é convertido em despesa; o servidor, em variável de ajuste. O funcionalismo, antes sujeito do fundo público, torna-se parte do precariado estatal.

Contudo, como lembra Chiquinho Alves, a resposta não pode limitar-se à defesa corporativa dos direitos dos servidores. É preciso recolocar o debate no centro político: a destruição do serviço público é a destruição do Estado enquanto instrumento de proteção social. A luta pela carreira pública é, portanto, luta pela sobrevivência coletiva.

A multiplicação dos vínculos de trabalho, o fim da estabilidade e a introdução da avaliação de desempenho são instrumentos centrais do novo regime de austeridade.

Sob o discurso da eficiência, o Estado incorpora a lógica de empresa: cada servidor passa a ser empreendedor de si mesmo, individualizando responsabilidades e dissolvendo solidariedades. O trabalho público deixa de ser serviço e torna-se performance.

A meritocracia, travestida de modernização, cria uma subjetividade de culpa e medo: quem questiona é punido; quem adoece é descartado. O “bom servidor” é o que se adapta; o “bom gestor”, o que corta. O Estado, outrora garantidor de direitos, torna-se gestor da desesperança. A sociedade naturalizou a conciliação, não basta resistir dentro das regras do jogo, pois o jogo está viciado. O verdadeiro inimigo não é apenas o texto da reforma, mas o parlamento que a sustenta e o sistema político que perpetua a lógica da dependência.
Sem uma reforma política profunda, qualquer resistência será episódica e fragmentada.

Do funcionalismo ao precariado

A precarização do servidor é, em última instância, a precarização do próprio Estado. Quando o servidor perde estabilidade, o Estado perde memória, continuidade e racionalidade. A burocracia pública – base do Estado moderno – dissolve-se em contratos temporários e relatórios de desempenho.

Nesse processo, o tempo do Estado – longo, institucional, histórico – é substituído pelo tempo da contabilidade, curto e imediato. O governo vira gestão; a política, planilha; a cidadania, custo. O servidor, antes mediador entre sociedade e Estado, é transformado em símbolo da despesa.

O resultado é um Estado contábil e moralmente austerizado, que se orgulha de cortar, mas se envergonha de cuidar. A denúncia de Chiquinho Alves torna-se aqui síntese histórica: “A reforma não tem uma linha contra os privilegiados e nenhuma contra a vala que separa o servidor que serve o povo dos que servem ao capital”.

A austeridade se converteu em virtude cívica. O Estado passou a se legitimar pela eficiência contábil, e não pela universalidade dos direitos. Cuidar virou gasto; cortar virou mérito.

Esse ethos neoliberal, que transforma a vida em planilha, gera o que Anne Case e Angus Deaton chamaram de “mortes por desespero”: a autodestruição silenciosa provocada pela perda de sentido coletivo e pela exaustão social. O servidor precarizado, o trabalhador uberizado, o jovem sem futuro, todos se tornam vidas administradas pela contabilidade.

A austeridade se transforma em necropolítica fiscal, onde a morte social é o preço da “responsabilidade”.

A servidão administrada

A Reforma Administrativa, articulada à Reforma Fiscal, consolida o Estado administrador da dependência: um Estado que se reforma para obedecer.
Sob o discurso da modernização, o Brasil adota a forma institucional do neoliberalismo periférico: corta o corpo vivo do Estado social para alimentar o capital fictício.

As instituições públicas, universidades, escolas, hospitais, órgãos de regulação, tornam-se laboratórios da precariedade. O funcionalismo, que outrora encarnava a continuidade republicana, é reduzido à condição de precariado estatal.

O país administra sua própria servidão com eficiência tecnocrática. O fundo público, que deveria sustentar a vida, é convertido em ativo financeiro. O Estado se reforma para demitir a si mesmo.

A integração entre teoria e prática, entre o olhar do pesquisador e a voz do militante, revela que a luta contra a Reforma Administrativa não é uma defesa corporativa, mas uma defesa da sociedade contra o desmonte do Estado.

Como propõe Chiquinho Alves, é preciso unir a crítica à reforma administrativa à luta por uma reforma política capaz de romper a lógica do parlamento que legisla contra o povo e em favor do capital. O desafio é reconstruir um horizonte de soberania e solidariedade, em que o servidor público volte a ser sujeito político do fundo público, e o Estado recupere sua função histórica: servir à vida, e não à planilha.

A crise do Estado brasileiro atingiu seu limite histórico. O que antes era conciliação, agora é paralisia; o que era pacto social, hoje é simulacro. A sociedade brasileira, submetida por séculos a uma máquina estatal que veio de fora para colonizar e explorar, vive um momento de exaustão e dispersão. O Estado, criado para administrar a dependência, já não administra nem o próprio colapso. No entanto, sob os escombros dessa estrutura, pulsa uma energia nova – desorganizada, mas intensa – que busca um sentido, um rumo, uma travessia possível.

Vivemos uma sociedade sem roteiro, em que a energia popular se acumula sem direção política, e as lideranças tradicionais se esvaíram em cálculos, burocracias e gestos de autopreservação. Partidos, sindicatos e corporações, antes mediadores entre Estado e sociedade, tornaram-se engrenagens da paralisia. Essa ausência de direção é, paradoxalmente, o sinal mais forte de vitalidade social: há movimento, há desejo, há rebeldia. O que falta é um horizonte.

A experiência histórica mostra que as elites brasileiras sempre dominaram pela conciliação. De 1930 a 1985, de Getúlio Vargas a Tancredo Neves, as rupturas foram aparências de mudança que serviram para manter o essencial: a desigualdade como método e o privilégio como regra.

A Nova República foi o último pacto dessa linhagem – e seu colapso revela o fim de uma forma de Estado que se perpetuou ao custo da miséria coletiva. A precarização do servidor público, denunciada ao longo deste ensaio, é a metáfora viva dessa decomposição: o Estado demite a si mesmo, demite sua memória, sua função social e, com isso, rompe o elo que o ligava à soberania popular.

Mas todo colapso é também oportunidade. O vazio de liderança que marca o presente pode ser o terreno de uma refundação. O Brasil atravessa um sertão político – incerto, árido, mas fértil em possibilidades. As ruas de 2025 mostraram que a energia popular existe e resiste. Falta transformá-la em projeto histórico. A travessia sem roteiro pode reencontrar um rumo se surgir uma liderança coletiva, plural, ancorada não na conciliação, mas na coragem de propor mudanças estruturais.

Essa liderança não precisa de um rosto único, mas de um propósito comum: reconstruir o Estado como instrumento da vida, e não da contabilidade; como mediador da solidariedade, e não da austeridade. O Brasil ainda é potência em latência. O que o paralisa é a ausência de quem a direcione. A guinada necessária não virá de gabinetes nem de algoritmos, mas da reinvenção da política como prática de emancipação.

Se o Estado brasileiro sempre foi máquina de dominação, é hora de transformá-lo em ferramenta de libertação. A travessia está em curso: entre o esgotamento e o renascimento, entre a planilha e o povo, entre o medo e a esperança. Que dessa travessia surja, enfim, uma nova liderança capaz de conduzir o país para além da conciliação eterna.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]



Referências

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Data original de publicação: 26 de outubro de 2025

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