Fonte: Marcelo Camargo | Agência Brasil

Adaptações Razoáveis no Pós licença maternidade: se levamos a primeira infância a sério, o retorno da mãe não pode ser uma queda no vazio



Por Bruno Milhorato Barbosa



Discutimos — com razão — a proteção da mulher durante a gestação e nos primeiros meses após o parto. Mas, na prática, a “rede” se encerra cedo demais. O bebê segue em dependência quase total, a mulher retorna em condição de evidente vulnerabilidade psicofísica e logística, e o mercado, sem mecanismos mínimos de acomodação, empurra milhares a uma escolha injusta: ficar perto do filho ou manter o emprego. Muitas pedem demissão — não por desinteresse na carreira, mas por inexistirem condições razoáveis de conciliar cuidado e trabalho.

Se a Constituição funda a República na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e dá prioridade absoluta aos direitos da criança (art. 227), não é coerente tratar o pós-licença como assunto “privado” da mãe. O Marco Legal da Primeira Infância declarou que a primeira infância vai até os 6 anos de idade, e que cabe ao Estado e à sociedade organizar políticas, planos e serviços adequados a essa fase, visando ao desenvolvimento integral.

A recente Lei 14.826/2024 elevou a parentalidade positiva e o direito ao brincar a políticas de Estado, definindo que Estado, família e sociedade devem garantir condições para a vida, o apoio emocional, a estimulação e a supervisão da criança.

Se a própria lei explicita que o desenvolvimento infantil requer presença qualificada dos responsáveis, é coerente exigir do empregador adaptações razoáveis no pós-licença, por período calibrado à primeira infância, como teletrabalho (ex.: home office), regime híbrido, janelas flexíveis e redução temporária de jornada. Longe de privilégio, trata-se de concretizar a prioridade absoluta da criança e a dignidade (art. 1º, III, e art. 227, CF), evitando o desligamento forçado de mães em momento de maior vulnerabilidade.

Some-se a isso que a CLT já impõe infraestrutura mínima de cuidado e, ainda assim, essas normas seguem sistematicamente ignoradas. O art. 389, § 1º, determina que estabelecimentos com 30 ou mais mulheres (maiores de 16 anos) tenham local apropriado para que empregadas guardem, sob vigilância e assistência, seus filhos no período de amamentação; e o art. 400 especifica requisitos mínimos desses locais (berçário, saleta de amamentação, cozinha dietética e instalação sanitária). Se nem o padrão mínimo é observado, é incoerente recusar adaptações razoáveis — como teletrabalho parcial, jornada reduzida e janelas flexíveis — no retorno pós-licença, sob pena de converter a proteção formal em barreira concreta à permanência das mulheres no mercado de trabalho.

Nesse sentido, defender um dever de adaptação razoável é exigir coerência normativa com a centralidade da criança e com a igualdade material entre homens e mulheres. A própria Lei 13.257/2016, ao estruturar diretrizes para a primeira infância, reforça que políticas devem reduzir desigualdades e articular dimensões éticas, humanistas e evidências científicas — premissas que também orientam soluções no mundo do trabalho.

Essa coerência já aparece na própria CLT: o art. 75-F determina que os empregadores deem prioridade aos empregados com deficiência e aos empregados com filhos ou criança sob guarda judicial até 4 anos na alocação de vagas compatíveis com teletrabalho ou trabalho remoto. Ou seja, o ordenamento já reconhece que, ao menos nos primeiros quatro anos de vida — fase central da primeira infância —, ajustes de forma, tempo e lugar do trabalho são um dever jurídico, não mera concessão, servindo de âncora prática para o nosso padrão de adaptação razoável no pós-licença.


O que temos hoje é pouco e por isso desconecta/encerra carreiras

Algumas medidas vigentes são mais simbólicas que efetivas. O art. 396 da CLT garante dois intervalos de 30 minutos para amamentar até os 6 meses do bebê; como os 4 primeiros meses costumam ser cobertos pela licença, sobra, na prática, um benefício de curtíssima duração. A Lei 13.257 acrescentou um único dia por ano para acompanhar consultas de filhos até 6 anos — um avanço formal, mas manifestamente insuficiente diante da intensidade do cuidado nessa fase.

Mesmo experiências recentes mostram que flexibilizar funciona. Durante a emergência sanitária, a Lei 14.151 viabilizou o teletrabalho para gestantes, reconhecendo a necessidade de ajustar o modelo de prestação sem reduzir remuneração. O recado institucional foi claro: é legítimo reposicionar forma, tempo e lugar do trabalho para proteger maternidade e infância.


O que falta? Tornar o “bom senso” um padrão exigível

Com base constitucional e infraconstitucional (art. 1º, III, e art. 227 da CF; Lei 13.257/2016), o direito à adaptação razoável no retorno da licença, por período calibrado à realidade da família e da função. Esse direito não é absoluto; ele se organiza por critérios de proporcionalidade, temporariedade e diálogo. Negativas do empregador devem ser fundamentadas em ônus proporcional de prova (demonstração de inviabilidade técnica ou impacto desproporcional). Dentre algumas adaptações razoáveis  temporárias possíveis, podem ser exemplificadas:

  • Home office ou regime híbrido (parte em home office e parte presencial);
  • Jornada reduzida, com ou sem redução proporcional de salário, construída por acordo individual qualificado ou negociação coletiva — inclusive em blocos concentrados (saída antecipada ou entrada tardia);
  • Janelas flexíveis dentro da jornada, acoplando os intervalos de amamentação;
  • Readequação temporária de postos ou funções, quando a natureza da atividade permitir, sem perda remuneratória;
  • Suspensão contratual por tempo determinado com garantia provisória do emprego espelhada (preservando o investimento da empresa e a trajetória da trabalhadora);
  • Suspensão contratual por tempo determinado com liberação do seguro desemprego, reiniciando a contagem para nova concessão, ao final da suspensão;
  • Proximidade geográfica: priorização de alocação em unidades mais próximas da residência nos primeiros meses do retorno.
  • Medidas parentais simétricas: onde houver, estender adaptações ao outro responsável (pai ou mãe não gestante), reduzindo a sobrecarga estrutural sobre a mulher — coerente com a ideia de que proteger maternidade é também proteger a criança e apoiar corresponsabilidade familiar (um dos pilares do Marco Legal).

Essas respostas são perfeitamente compatíveis com o nosso quadro normativo: a primeira infância é prioridade pública e demanda arranjos institucionais e sociais adequados; o ambiente de trabalho é um deles.


“Mas e a segurança jurídica?” — o papel do Judiciário (e do legislador)

É verdade que o legislador costuma andar atrás da vida real. Enquanto reformas mais robustas não vêm, o Judiciário pode — e deve — construir uma linha de deferência a arranjos razoáveis quando a trabalhadora apresentar proposta factível e proporcional. Em disputa, vale privilegiar a solução que minimiza o dano cumulativo: desligar uma mãe custa à empresa e à sociedade (perda de capital humano, queda de renda familiar, diminuição de participação feminina em posições de liderança), enquanto redesenhar turnos por alguns meses tem custo marginal administrável.

Ao mesmo tempo, o legislador pode consolidar padrões mínimos: obrigatoriedade de tentativa de acomodação por prazo referencial (por ex., 6 meses após a licença, com revisão trimestral); preferência por home office onde a função permitir, redução da jornada; liberação de seguro desemprego e garantia provisória espelhada quando houver suspensão negociada. Tudo isso em linguagem parental, fugindo do velho desenho centrado só na mãe, porque a criança é a razão de fundo da proteção — como o próprio Marco Legal já sinaliza.


Conclusão

Se a primeira infância dura seis anos e é prioridade absoluta, não faz sentido que a proteção laboral se dissolva exatamente quando a mãe retorna e o bebê ainda depende integralmente de cuidados constantes. Adaptações razoáveis no pós-licença não são gentilezas; são exigências de um constitucionalismo que leva a sério a dignidade humana, a igualdade de gênero e o melhor interesse da criança. Políticas públicas, práticas empresariais e decisões judiciais coerentes com esse desenho reduzem pedidos de demissão por desespero, preservam carreiras e protegem a infância — que é, afinal, a destinatária primeira dessa proteção.


Referências

BARBOSA, Bruno Milhorato. Extensão da garantia provisória do emprego ao cônjuge não gestante. Leme, SP: Editora Mizuno, 2023. 58 p. ISBN 978-65-5526-707-5.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988 (texto compilado).

BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Brasília, DF: Presidência da República, 1943.

BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Brasília, DF: Presidência da República, 1990.

BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância. Brasília, DF: Presidência da República, 2016.

BRASIL. Lei nº 14.151, de 12 de maio de 2021. Dispõe sobre o afastamento da empregada gestante das atividades presenciais durante a emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus. Brasília, DF: Presidência da República, 2021.

BRASIL. Lei nº 14.826, de 20 de março de 2024. Institui a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias intersetoriais de prevenção à violência contra crianças; e altera a Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022. Brasília, DF: Presidência da República, 2024.


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Bruno Milhorato Barbosa é Pesquisador no Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente do Trabalho na USP, pós-graduado em Direito do Trabalho pela FDV e advogado trabalhista.

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