‘A luta dos trabalhadores não é para estar cada vez mais subordinada ao capital’, diz Virgínia Fontes

Fonte: Combate Racismo Ambiental

Por Katia Marko e Ayrton Centeno | Brasil de Fato

A professora, historiadora, filósofa e escritora Virgínia Fontes foi a nossa última entrevistada do ano de 2023 no Podcast De Fato, conversa que resolvemos reproduzir no site por sua excelente análise do atual estágio da luta de classes no Brasil e no mundo.

Marxista, Virgínia atua na pesquisa, na reflexão e na escrita sobre capitalismo, imperialismo e luta de classes, entre outros temas. É historiadora e fez doutorado em Filosofia em Paris. Entre seus livros figuram ‘Reflexões impertinentes – história e capitalismo contemporâneo e o Brasil e o capital imperialismo – teoria e história’, além de outras publicações em parceria com diversos autores.

Segundo ela, a forma de entender os conflitos da sociedade capitalista tem origem na teoria marxista do século XIX e continua atual nesta segunda década do século XXI. De um lado, setores engajados em lutas populares buscam um Estado que promova uma sociedade mais justa. Do outro, elites históricas e grandes corporações renovam suas formas de aparelhar o Estado e de capturar mentes e corações para manter trabalhadores e a natureza sob seu domínio, visando um lucro que não pensa em transformação social e futuro do planeta.

Brasil de Fato RS – Nós tivemos no Brasil um ataque brutal às políticas através da Lava Jato, e depois nós tivemos um golpe de Estado coroado pela eleição de alguém que se apresentava como antipolítico, chamado Jair Bolsonaro, embora não fosse obviamente antipolítico, já que estava há 3 décadas na política. Faz pouco, nós vimos esse roteiro se repetir na Argentina, com um personagem um pouquinho diferente, mas também como antipolítico, alguém que vem de fora pra consertar as coisas que os políticos não consertam, ou não querem consertar. Tanto o Bolsonaro, quanto o Javier Milei que acaba de ser eleito presidente da Argentina, eles tiveram uma grande quantidade de votos junto a classe trabalhadora, junto aos trabalhadores mais fragilizados. Isso não desanima um pouco alguém que observa todo esse quadro através da esperança de uma sociedade mais justa?

Virgínia Fontes – Seguramente pode desanimar alguns, mas ao contrário acaba exigindo muito mais da gente no cotidiano, se for pensar e entender por que e como isso está acontecendo. Acho que essa situação digamos do voto dos trabalhadores e da juventude, tanto aqui no execrável Bolsonaro, quanto lá no louco Milei, mostram dois problemas.

Primeiro de um progressismo que promete muito e infelizmente traz pouca coisa, traz pouca mudança substantiva no protagonismo das grandes massas subalternas dos trabalhadores. Segue aplicando receitas terríveis de corte de direitos, de corte de recursos, ao mesmo tempo em que faz promessas pela esquerda, mas governa pela direita.

Esse é um problema severo e tem sido analisado por inúmeros autores políticos, de que essa contradição predomina na política já há bastante tempo, de uma fala pela esquerda e de uma atuação pela direita. Isso traz complicadores terríveis, porque não mexe, e aí é minha própria análise, não mexe na relação de classes, não mexe na configuração da cada dia mais estreita conexão entre classes dominantes e Estado, tanto no uso da violência direta, e o caso brasileiro é bastante evidente como o uso da violência direta aumentou constantemente nas últimas décadas. Vemos isso na violência policial, prisões, encarceramentos, assassinatos, e os assassinatos incidem principalmente sobre a juventude preta das periferias, como também no âmbito das formas mais diversas, que a gente pode chamar, segundo Antônio Gramsci, de convencimento, mas é um convencimento muito amplo.

Vou pegar um exemplo que é a atuação burguesa direta dentro do Estado e fora do Estado na área da educação. No caso brasileiro é muito visível a atuação da Fundação Lemann, da Fundação Roberto Marinho, do Instituto Ayrton Senna, do Banco Itaú na educação pública, rebaixando a qualidade da educação pública e gerando, tendo como objetivo gerar trabalhadores absolutamente sem direitos, preparados para serem resilientes entre aspas às maiores catástrofes no cotidiano, sem férias, sem direito a licença saúde, sem direito a nada.

Esse predomínio da atuação burguesa no Estado e na política, porque a política não se limita ao âmbito institucional dos partidos oficiais, a política atravessa o conjunto da nossa vida em sociedades de classe, pra esse predomínio burguês, ele costuma ser minorado pelos governos progressistas, mas não é efetivamente enfrentado.

“É muito visível a atuação da Fundação Lemann, da Fundação Roberto Marinho, do Instituto Ayrton Senna, do Banco Itaú na educação pública”

Por dois lados a emergência dessas forças de extrema direita são forças ou fascistas ou pró-fascistas, são realmente muito inquietantes. O primeiro lado, é de que o aspecto da violência que já é enorme e substantivo, transborda para o conjunto do cotidiano da vida social. A gente viu isso com Bolsonaro, o armar a classe média e armar os setores empresariais, e abrir totalmente mão de qualquer controle sobre a posse de armas, e pra que serve essa posse de armas? Exatamente para enfrentar movimentos populares que eventualmente venham a se declarar, e no caso aqui do Brasil era óbvio que era uma repetição, uma retomada da UDR, que era aquela liga brutal de proprietários rurais que hoje em dia se protege, se abriga na bancada do boi e da bala.

Agora, por exemplo, uma das primeiras medidas do Milei na Argentina é punir quem faz manifestação de rua e principalmente quem eventualmente venha trancar uma rua, um protesto, enfim, com uma punição, com retirada de direitos. Ou seja, já é um passo adiante em relação ao que está se falando a essa violência, agora o Estado exercendo a violência de uma forma ainda mais explícita.

Lá eles estão com uma vice-presidenta e uma ministra de Interior se eu não me engano, ou da Defesa, que são absolutamente brutais, são duas mulheres absolutamente brutais, e que tem nostalgia da ditadura argentina, que foi aquela que assassinou mais de 30.000 pessoas, que torturou e desapareceu com milhares de pessoas e até hoje se encontra netos sequestrados de militantes que foram mortos e tiveram seus filhos entregues.

Então o que eu vinha falando era que de um lado a violência sobe instantaneamente, uma violência que tende a se disseminar pra além dos limites das forças digamos militares e policiais. No caso brasileiro isso aconteceu através de escolas cívico-militares, através das milícias, e afinal de contas o governo aqui era completamente envolvido pelas milícias, e pela própria atuação desregrada de polícias as mais diversas.

No caso argentino, a gente ainda não assistiu essas cenas abertamente, embora já tenha a legislação pra endurecer a proibição a manifestações, mas a primeira chamada do Maurício Macri, o ex-presidente da Argentina, de direita que está completamente aliado com Javier Milei, foi de iniciar uma espécie de convocação de juventude para a atuação brutal nas ruas. Então a gente vai ter de ver com certeza a Argentina em características diferentes do Brasil, e a gente espera que a longa tradição histórica de luta, inclusive de luta nas ruas dos setores subalternos na Argentina, seja capaz de brecar esse tipo de iniciativa.

Clique aqui e leia o restante da entrevista

Fonte: Katia Marko e Ayrton Centeno | Brasil de Fato
Data original de publicação: 22/01/2024

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