A “nova informalização” e a perversidade da plataformização do trabalho: IHU-Online entrevista Ruy Braga

Imagem: Unsplash

Por João Vitor Santos, Patricia Fachin e Ricardo Machado | IHU-Online

“No contexto pandêmico que temos vivido, são muitas as análises quanto ao aumento dos trabalhos informais via plataformas de aplicativos e também os efeitos nocivos dessas práticas para o trabalho no médio e longo prazo. O professor e sociólogo Ruy Braga, como muitos, destaca que a pandemia acelerou um processo de degradação do trabalho no século XXI que já vinha em curso.

Porém, chama a atenção para o que representa essa degradação: uma espécie de “nova versão” da informalidade laboral, aquela que não assegura nenhum direito sindical, social ou trabalhista. “A informalidade, a rigor, para um país como o Brasil, países do Sul global de uma maneira geral, como África do SulÍndiaMéxico e tantos outros países, não é nenhuma novidade. No entanto, a ‘velha informalidade’ tinha certas características que eram muito transparentes”, analisa na conferência “Digitalização, desigualdade e precarização do trabalho na pandemia no Brasil. Limites e perspectivas”, promovida em formato de live pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A seguir, reproduzimos parte da conferência de Ruy Braga em formato de entrevista. A íntegra pode ser acessada no vídeo abaixo.

A reflexão de Braga não se trata de uma defesa saudosista da antiga formalidade como se fosse uma situação menos pior do que a atual, atravessada pelas lógicas da plataformização. “Por incrível que possa parecer, a informalização da economia, às vezes muita associada com o trabalho doméstico, era basicamente um desdobramento do avanço da indústria. Assim, ao mesmo tempo que se tinha o avanço do emprego formal, também havia um aumento da informalidade”, explica. E acrescenta: “existia uma espécie de horizonte de formalização que significava, entre outras coisas, o acesso a certos direitos, garantias e benefícios, o acesso à sindicalização e a direitos sociais. O horizonte dessa velha informalidade, mesmo que não se realizasse, e não se realizava mesmo para uma parcela enorme da população, era a formalização”.

Agora, há um discurso de empreendedorismo que empurra esse trabalhador para a informalidade via plataformas de aplicativos sem que haja qualquer possibilidade de, num futuro, assegurar direitos e proteções mínimas. “É uma informalidade que aparentemente apenas imita o trabalho por conta própria, mas, em termos efetivos, verificamos que é uma coisa muito diferente. Há uma nova subordinação do trabalhador a uma empresa, geralmente, não exclusivamente, multinacional como uma grande companhia monopolista internacional, algo que não existia antes na velha informalidade”, destaca.

Por isso, defende que esse “não é o trabalho por conta própria, pelo menos não no sentido autêntico do termo, que é você trabalhar para si. Na verdade, o que se tem é o trabalho para uma empresa que diz que você é um empreendedor e não um trabalhador. Essa é a grande diferença que observamos hoje com a plataformização por meio dessas plataformas territoriais”.

Na conferência, Braga ainda detalha que o trabalho via plataformas não se resigna apenas a entregadores ou motoristas. Há uma série de outras atividades e inclusive de profissionais liberais que têm sido jogados na plataformização. “Destaco as plataformas de click work, as quais abrem suas ferramentas digitais para trabalhadores que estão espalhados pelo mundo”, onde pessoas executam tarefas mais simples como catalogar e codificar produtos em sistemas. “O segundo exemplo são as plataformas de freelancer, que têm atraído profissionais liberais, como publicitários, jornalistas, advogados, arquitetos, designers industriais, toda uma miríade de profissões qualificadas, pois são trabalhadores com formação universitária, detêm qualificações que são consideradas raras no mercado de trabalho”, completa.

Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, é autor dos livros A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012) e A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consistem as transformações que vem sofrendo o mundo do trabalho na atualidade?

Ruy Braga – Meu recorte é sobre a plataformização do trabalho, e nessa questão vou tentar destacar o trabalho basicamente no setor de serviços nas suas múltiplas apresentações e realidades. Nesse sentido, é interessante começar com uma breve apresentação sobre quais os significados, para o trabalho, do processo de plataformização. Os significados são múltiplos, mas existe um determinado fluxo que conduz os trabalhadores a uma certa direção. Isso não quer dizer que todos os trabalhadores se submetem à plataformização da mesma maneira. Não é bem assim e vamos discutir um pouco isso.

IHU On-Line – Que fluxo é esse?

Ruy Braga – Eu ilustro com três grandes tipos de plataformas que têm se consolidado, em especial, a partir do contexto de aprofundamento da crise da globalização, que se inicia em 2008. É claro que a dinâmica de ampliação da crise é muito desigual porque depende muito das regiões, dos continentes e países, mas ela se aprofunda a partir de 2011, 2012 e, inclusive, impulsiona um ciclo de protestos sociais em escala global. É um pouco este o horizonte da história: desde 2011, 2012 até hoje tem se assistido a um processo progressivo, sistemático e muito forte de plataformização de trabalho no setor de serviços.

IHU On-Line – Quais são os tipos de plataformização que temos verificado?

Ruy Braga – São muitos e destaco aqueles que me parecem mais interessantes para articular essa discussão sobre digitalizaçãodesigualdade e precarização. Em primeiro lugar, destaco as plataformas de click work, as quais abrem suas ferramentas digitais para trabalhadores que estão espalhados pelo mundo. Como são plataformas virtuais, praticamente se abrem para trabalhadores no mundo todo e esses trabalhadores precisam passar por um processo de cadastro, se logar nessas plataformas e realizar tarefas que são bastante simples e fragmentadas, mas que não compensam a automatização ou a programação da inteligência artificial para realizá-las.

O exemplo típico é o da Amazon Mechanical Turk, que é o mais conhecido porque a Amazon é a principal empresa em valor de mercado no mundo. Assim, ela abre essa plataforma para o mundo todo para pessoas que se inscrevem e começam, conforme a demanda, sua própria vontade e disposição de tempo, a realizar tarefas que são distribuídas pela plataforma, as quais normalmente são muito simples, como associar códigos a certos produtos, redigir pequenas sinopses a partir de determinados filmes ou resumos relativos a livros e descrições de produtos. Ou seja, são tarefas bem simples e padronizadas que teriam um custo considerado excessivo pela empresa se elas fossem entregues ao processo de inteligência artificial. Então o conteúdo do trabalho acaba ficando muito esvaziado e acaba sendo realizado de uma maneira muito mecânica por esse tipo de trabalhador, que recebe em bitcoins para realizar esse tipo de tarefa.

Na realidade, esse é um exemplo limítrofe, porque existem plataformas de click work que não são tão extremas quanto a da Amazon Mechanical Turk. Mas normalmente, quando se trata desse tipo de trabalho, a Amazon é o primeiro nome que vem à mente porque, como todos sabem, é uma grande empresa e tem sido uma ponta de lança de iniciativas de precarização do trabalho, em especial, nos seus depósitos e centros logísticos. Não à toa, fazendo referência ao filme que recentemente ganhou o OscarNomadland, com direção de Chloé Zhao, o programa da Amazon, o CamperForce, é um dos momentos que se encontra retratado no livro de Jessica Bruder que deu origem ao filme. Ele mostra bastante bem como o trabalho sazonalintermitente, aquilo que se chama de trabalho nômade nos Estados Unidos, está ligado a essas iniciativas da Amazon como uma espécie de ponta de lança.

Amazon também enfrentou recentemente um processo de sindicalização de trabalhadores de um depósito no Alabama (EUA), com uma ampla campanha nacional e internacional que, inclusive, envolveu o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, o qual explicitamente se posicionou a favor da sindicalização dos trabalhadores da Amazon. Isso para dizer que o processo de plataformização do trabalho, em especial esse tipo de trabalho, está inserido num contexto conflitivo. Ou seja, está evoluindo de maneira muito rápida, desenvolvendo-se em diferentes direções, tanto no que diz respeito à precarização do trabalho quanto à sindicalização ou ainda outros eixos mais afinados com uma agenda de proteção trabalhista.

Plataforma de freelancer

O segundo exemplo são as plataformas de freelancer, que têm atraído profissionais liberais, como publicitários, jornalistas, advogados, arquitetos, designers industriais, toda uma miríade de profissões qualificadas, pois são trabalhadores com formação universitária, detêm qualificações que são consideradas raras no mercado de trabalho. Não são trabalhadores subalternos, mas também se submetem a essa dinâmica de extrema taylorização do trabalho, ainda que nesse caso seja um trabalho mais qualificado.

IHU On-Line – Como funcionam as plataformas desse segundo exemplo?

Ruy Braga – Tive a oportunidade de acompanhar uma dessas plataformas que atuava no mercado de arquitetura e reformas aqui na cidade de São Paulo e o processo de trabalho era mais ou menos assim: o arquiteto se oferece para trabalhar e a plataforma oferece a ele uma quantidade “x” de clientes que buscam esses serviços através dela. E isso é o que faz com que haja uma relação entre o arquiteto e os clientes. É uma relação que se dá por meio virtual e, eventualmente, eles se encontram em algum escritório da empresa, mas em geral isso se desenvolve virtualmente.

O arquiteto fica responsável por elaborar o projeto, ou um pré-projeto, em que vai utilizar um programa que é o padrão dessa plataforma. Fica o tempo todo conectado com esses clientes, que passam informações, mas não têm nenhuma obrigação de fechar com esse arquiteto. Tive a oportunidade de perceber que a média de clientes efetivos que o profissional conseguia conquistar nesse processo era de um cliente para cada dez pré-projetos que eram apresentados. Assim, o arquiteto fica o tempo todo fazendo pré-projetos, mas não tem a segurança de estar fechando com o cliente.

Desse modo, ele apresenta os pré-projetos, e o cliente, se não gostar, simplesmente vai embora, não tem que pagar nada e não tem nenhum tipo de compromisso. Depois, vem a etapa seguinte, que é a de realização da obra, quando outro arquiteto toma a frente do acompanhamento de obra. O que se tem na verdade é uma divisão do trabalho num sentido taylorista, ou seja, uma fragmentação e distribuição de tarefas para diferentes trabalhadores, e o que está produzindo esse tipo de expediente, esse tipo de digitalização e plataformização do trabalho é um trabalhador especializado só que subordinado a uma dinâmica despótica, insegura, de trabalho. Afinal, esse profissional, que tem condições de dar conta da integralidade desse tipo de trabalho, não tem segurança de fechar contrato, não acompanha a obra e há uma desconexão entre o trabalho intelectual e depois o projeto e a obra.

Mais qualificado, mas ainda subalterno

Observe como esse modelo precário de trabalho é muito parecido com a dinâmica do trabalhador subalterno e  a remuneração também segue essa lógica. A maior parte do que os clientes pagam fica com a plataforma e não com o arquiteto, que na verdade é superexplorado e fica bastante fragilizado no que diz respeito à própria renda. Essa perda de controle do processo de trabalho por um trabalhador qualificado é o que caracteriza essas chamadas plataformas de freelancer.

Uber

Temos também as empresas mais conhecidas pelo público de maneira geral, que são as plataformas de trabalho territorial: basicamente a empresa Uber, empresas de entrega como iFood e tantas outras que, no Brasil, tiveram um boom muito acentuado de 2016 e 2017 para cá. Esse momento é muito interessante para entendermos o tipo de regime de acumulação que essas empresas produzem, promovem e impulsionam. Todos estão lembrados que em 2015 e 2016 nós tivemos uma forte crise econômica no Brasil, que se traduziu, entre outros fatores, por elevação muito aguda e rápida do desemprego. Como as pessoas não podem ficar desempregadas por muito tempo, elas têm que se virar, tendem a ir para a informalidade, o que oportunizou a certas empresas se aproveitarem da situação e criarem uma espécie de nova informalidade ou um novo tipo de trabalho informal.

IHU On-Line – Mas a informalidade não é nenhuma novidade, correto?

Ruy Braga – A informalidade, a rigor, para um país como o Brasil, países do Sul global de uma maneira geral, como África do SulÍndiaMéxico e tantos outros países, não é nenhuma novidade. No entanto, a “velha informalidade” tinha certas características que eram muito transparentes. Normalmente, o que se verificava, além desse não acesso a determinados direitos e garantias trabalhistas, era o trabalho por conta própria, ou seja, o trabalhador ia vender alguma coisa na rua, montava um pequeno negócio e era um trabalho muito ligado àquele fluxo de migração campo–cidade que, no caso brasileiro, se intensificou nos anos 1950 e 1960, até meados dos anos 1970, tendo em vista o avanço da indústria no país.

Por incrível que possa parecer, a informalização da economia, às vezes muita associada com o trabalho doméstico, era basicamente um desdobramento do avanço da indústria. Assim, ao mesmo tempo que se tinha o avanço do emprego formal, também havia um aumento da informalidade. E muitas vezes o caminho da informalidade passava pela construção civil (também emprego informal na maior parte dos casos daquele período) até chegar na indústria, com carteira assinada, acesso a direitos.

O que precisamos destacar da velha informalidade são dois elementos: o primeiro deles é que está ligado ao processo de industrialização, e mesmo o trabalho por conta própria estava ligado ao processo de industrialização, tendo em vista o fato de que as pessoas que trabalhavam por conta própria vinham do campo para a cidade atraídas pela indústria.

Horizonte de formalização

Em segundo lugar, existia uma espécie de horizonte de formalização que significava, entre outras coisas, o acesso a certos direitos, garantias e benefícios, o acesso à sindicalização e a direitos sociais. O horizonte dessa velha informalidade, mesmo que não se realizasse, e não se realizava mesmo para uma parcela enorme da população, era a formalização, era uma perspectiva que apontava numa certa direção que podemos chamar genericamente de progresso ocupacional.

Isso era o passado ainda muito ligado à indústria. O presente, agora muito ligado à pós-indústria, ao colapso desse modelo de organização da economia em torno da indústria e dos empregos industriais e tudo aquilo que representa em termos de qualificação e renda, é muito diferente nessa nova informalidade. É uma informalidade que aparentemente apenas imita o trabalho por conta própria, mas, em termos efetivos, verificamos que é uma coisa muito diferente. Há uma nova subordinação do trabalhador a uma empresa, geralmente, não exclusivamente, multinacional como uma grande companhia monopolista internacional, algo que não existia antes na velha informalidade.

Assim, o que temos agora não é o trabalho por conta própria, pelo menos não no sentido autêntico do termo, que é você trabalhar para si. Na verdade, o que se tem é o trabalho para uma empresa que diz que você é um empreendedor e não um trabalhador. Essa é a grande diferença que observamos hoje com a plataformização por meio dessas plataformas territoriais principalmente, cujo modelo é a empresa Uber, a mais conhecida delas todas, ao ponto de especialistas usarem o termo uberismo para se referirem a este modelo neoliberal, a este regime de acumulação que está muito concentrado na dinâmica de investimento em startups, grandes fundos de investimento de risco, utilização de plataformas para mobilização de trabalhadores subalternos, em referência ao que foi antigamente o fordismo ou o toyotismo. (…)”

Clique aqui e confira a entrevista completa

Fonte: IHU-Online

Data original da publicação: 16/06/2021

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