Fonte: Thiago Copetti
Jornadas que não deixam espaço para a vida pessoal massacram cerca de 30% dos trabalhadores gaúchos
Por Thiago Copetti | Extra Classe
Cerca de 2 milhões de trabalhadores gaúchos vivem – ou sobrevivem – submetidos a uma jornada de trabalho chamada de 6×1, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
O contingente representa em torno de 30% dos trabalhadores que, além de ter apenas um dia de descanso na semana, ainda podem ser convocados a fazer horas extras, o que retira mais uma parcela do já escasso tempo para a vida pessoal. Com uma rotina dessas, sobram quatro dias por mês para dar conta de todo o “resto” – cuidar da saúde física e mental, ter algum lazer, dar atenção à família, fazer atividades físicas, descansar, participar de atividades culturais, estudar…
A maior parte de quem precisa gerenciar esse resto de tempo para o que deveria ser prioridade atua no comércio e em indústrias. É na indústria que essa jornada cobra seu preço mais alto – ainda que sejam os comerciários os mais visíveis exemplos desse massacre. Porém, é no chão das fábricas que se cobra mais caro pelas horas insones e pela saúde fragilizada.
De acordo com o Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho, 15,9 mil pessoas morreram no Brasil em acidentes do trabalho de 2016 a 2022 – aumento de 25,4% nos óbitos no período.
Foram 2.265 em 2016 ante 2.842 em 2022, último ano com dados. A alta nas mortes é reflexo do aumento generalizado do problema: nesse mesmo período, cresceu em 11,7% o número de acidentes de trabalho que não resultaram em morte, de 354.084 em 2016 para 418.684 em 2022. Conforme estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE), entre 2018 e 2024 o volume de horas trabalhadas cresceu 2,0%, o que seria um dos fatores para o aumento dos casos de acidentes dentro das empresas.

Na outra ponta, no comércio, onde a produção desemboca no seu destino final, são os vendedores e caixas os mais afetados por longas jornadas. Ao contrário dos industriários, invisíveis aos olhos da sociedade, escondidos pelos muros e pelas paredes das fábricas, os comerciários são a face mais explícita desse exaustivo cenário. Todos os dias, incluindo domingos, estão à disposição dos patrões e dos consumidores.
Descendo mais ao fundo do poço, o descaso com os trabalhadores, sua saúde e dignidade encontra em Porto Alegre um exemplo bastante simbólico do massacre a que os comerciários são submetidos. Em um dos templos de consumo da classe média, a rede Zaffari de supermercados, o Ministério Público do Trabalho (MPT) precisou intervir e interromper o que classificou como “análogo a trabalho escravo”.
Os funcionários dessa rede de supermercados vinham sendo obrigados, desde 2014, a cumprir jornadas 10×1, de acordo com Theo Dalla, um dos organizadores da União dos Trabalhadores do Zaffari. Dalla alerta, no entanto, que essa escala não é uma exclusividade da rede, já que também é praticada por outros grupos varejistas.
A jornada 10×1 é uma carga tão excessiva que até mesmo a ultraliberal reforma trabalhista vetou, como destaca a procuradora do Trabalho Sheila Ferreira Delpino, chefe regional da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho (Codemat), do MPT.
“Têm sido observados diversos casos em que as normas coletivas estão flexibilizando matérias vedadas pela própria reforma trabalhista. O principal exemplo é o descanso semanal remunerado após o período máximo de seis dias consecutivos de trabalho, conforme previsto no artigo 67 da CLT e entendimento consolidado na OJ 410, SDI-I, do Tribunal Superior do Trabalho”, alerta a promotora.
Surpresa no primeiro dia de trabalho
A jovem S. diz que evitou o quanto pôde trabalhar no comércio. Não pela atividade, mas pela jornada de trabalho excessiva – mas acabou ingressando no setor há três meses para dividir com o marido as despesas domésticas. Ela acabou ingressando em um local ainda pior do que imaginava – entretanto, diz que a proposta inicial de trabalho era outra. Na entrevista de emprego, revela, foi informada que a jornada seria de seis dias semanais com direito a um domingo por mês e uma folga a ser negociada. Para sua surpresa, no primeiro dia de trabalho foi informada que a jornada poderia ser de 10×1.
“Não tenho formação em nada, só o ensino médio e sem muitas opções de trabalho, por isso fiquei lá. Quase não vejo mais minha filha, que agora me segue pela casa inteira quando estou aqui e não posso nem fechar a porta do banheiro que ela chora. Ela criou um medo que não tinha antes”, revela S. A realidade encontrada, de trabalhar a escala 10×1 em determinados períodos, também apresentou a jornada 6×1, na qual deveria fazer horas extras fixas: uma hora nas sextas e nos sábados e duas horas nos domingos. Para a rede Zaffari, o tempo a que a jovem teria direito para dedicar à filha de dois anos, mas que virou horas trabalhadas parece não ter muito valor. Ela recebeu, em março, como consta em seu comprovante de pagamento, apenas R$ 8,80 por essas horas a mais de trabalho.
“O valor é bem inferior ao que está no contrato. Lá diz que cada hora extra teria esse valor ou mais, mas não é que o vem na conta do final do mês”, reclama a comerciária. Ela faz parte de um contingente de reféns do trabalho sem fim, em jornadas que não deixam sobrar tempo para investimentos pessoais em qualidade de vida, estudos ou na ascensão profissional.
Jornadas extenuantes e improdutivas

Uma das entidades que vêm alertando a sociedade para a urgência de uma jornada de trabalho menos massacrante é a Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (CUT-RS). A Central lançou, em março, a campanha “A vida não tem hora extra”, um tema que mobiliza, ainda, ações de outras instituições, como a Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora-CNBB. A Comissão adotou como um de seus temas prioritários neste ano o fim da jornada 6×1.
“Esse modelo que vigora não apenas no comércio, mas também em muitas indústrias, além de massacrar as pessoas, não faz sentido algum, nem mesmo para as empresas. Trabalhadores cansados adoecem mais e têm sua produtividade reduzida”, enfatiza Amarildo Cenci, presidente da CUT-RS.
Em comum, as campanhas da CUT e da CNBB têm como objetivo chamar a atenção não somente de empresários, mas também da sociedade como um todo. A ação foca na baixa qualidade de vida imposta a esses trabalhadores e em seus efeitos paralelos. O modelo tem impacto econômico envolvendo faltas ao trabalho, recorrência maior ao INSS e ao sistema de saúde, assim como faz com que o setor privado empregue menos pessoas do que poderia e precisaria.
“Menos empregos e mais profissionais doentes reduzem o dinheiro que circula na economia e aumentam as despesas públicas de saúde e com aposentadorias precoces, por invalidez e acidentes de trabalho”, assegura Cenci.
Economista do Dieese, Lúcia Garcia ressalta que diferentes estudos mostram que o aumento de horas extras nos últimos anos não se refletiu, na mesma proporção, na elevação da produtividade.
O descompasso comprova que aumentar a carga horária tem reflexo oposto nos rendimentos dos profissionais. Enquanto o volume de horas trabalhadas cresceu 2,0% ao ano, a elevação da produtividade por trabalhador foi de apenas 0,2% ao ano. Isso, mesmo com elevados investimentos em automatização e robotização em fábricas e mecanização do agronegócio.

“A sobrecarga gera mais acidentes de trabalho, entre muitos outros danos. Além do dano maior, que são as mortes, temos de pensar nos muitos trabalhadores que ficaram inválidos, não apenas fisicamente, mas psicologicamente também. Os casos de burnout e depressão também podem levar a essa incapacidade de trabalhar”, destaca Lúcia.
Questões envolvendo horas extras foram a maior causa de processos julgados pela Justiça do Trabalho em 2023, segundo o órgão. O tema é apontado como ainda mais problemático após a reforma trabalhista de 2017. A procuradora do Trabalho Sheila Ferreira Delpino, do Codemat, afirma que há claros excessos por parte dos empregadores. Na lista de vítimas desses abusos, a procuradora inclui contratos sem vínculo empregatício, como de motoristas de aplicativos.
“Eu poderia destacar o comércio varejista de alimentos (supermercados), a prestação de serviços na área da alimentação (restaurantes, bares, padarias), serviços relacionados a telemarketing e os serviços de transporte de encomendas ou pessoas via aplicativo (Uber, Ifood, 99, entre outros). Em todos esses setores, há recorrência de jornadas excessivas dos trabalhadores”, alerta a procuradora do MPT.
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Data original de publicação: 28 de Maio de 2025
ABET Associação Brasileira de Estudos do Trabalho