De dentro da boca do tubarão: reflexões sobre linguagem e desterramento em tempos de IA




Por Rafael Torrano Ciancio | Blog da Boitempo



Para Suelen e Ernesto, meus lares.

Começo uma tradução escrevendo à mão, com caneta de tinta preta — ou seja, exatamente dentro de meu rígido hábito de trabalhar meus próprios textos. Escrevo à mão muito mais devagar do que no computador. Essa baixa velocidade força uma aproximação maior com cada palavra.” 
— Eric Nepomuceno

Pois se há vida na casa, a porta / há de estar, como a vida, aberta.Só se fecha mesmo esta portapara quedar, ao sonho, aberta.
— Carlos Drummond de Andrade




Impasses da representação: inteligência artificial, senso crítico e trabalho criativo 

O trabalho dos tradutores encontra-se hoje ameaçado. Com uma facilidade digna de narrativas maravilhosas, sobretudo as de ficção científica, basta um clique para que, em segundos, inúmeros Modelos de Linguagem baseados em sistemas de Inteligência Artificial vertam textos em mais de 50 idiomas. Sim, existem em torno de 7 mil línguas no mundo, mas essa ponderação é ilusória. Do ponto de vista do número absoluto de falantes, as cinquenta línguas mais faladas do planeta dão conta da quase totalidade de seus habitantes, se não como língua materna, pelo menos como segunda língua. Nesse sentido, o trabalho outrora central daqueles que dedicavam a vida a mediar a comunicação intercultural tornou-se praticamente obsoleto. 

Mas a situação exige calma — e uma dose de crítica à tecnolatria. Se é verdade que em textos de viés técnico, que exigem um trabalho criativo mínimo para serem traduzidos (como um manual de instruções para a instalação de um software, por exemplo), as máquinas superam os seres humanos em seu desempenho, em especial pela velocidade com que trabalham; em textos de viés literário, como um poema do livro Bendita seja a filha criada por uma voz em sua cabeça, de Warsan Shire, o saldo se inverte: apesar da agilidade, o resultado a que elas chegam é tão insosso que se torna impossível defendê-lo. E isso não é à toa. O pensamento artístico visa à originalidade, a um modo único de dizer aquilo que precisa ser dito; é um trabalho essencialmente ligado à forma, portanto um trabalho qualitativo. Se um artista faz de sua obra mera repetição do já-dito, no melhor dos casos ele será um artista medíocre; no pior, será condenado por plágio. Ora, grosso modo, é isso que faz um Modelo de Linguagem: ele computa uma massa imensa de dados para, na relação com um novo prompt, extrair dela a continuação mais provável dele. Trata-se, portanto, de um trabalho quantitativo, incapaz de originalidade1. As máquinas trabalham com conteúdo; na ausência de experiências que deem substância a esses dados, elas são obrigadas a descartar tudo aquilo que é único, original e criativo como se fosse desviante, equivocado. 

De acordo com o premiado tradutor Eric Nepomuceno, “tradução boa (…) é aquela que o leitor não percebe: lê como se o livro tivesse sido escrito naquele idioma”. Nesse sentido, para ele, “quanto mais criativo quem traduz, mais desaparecerá o trabalho de traduzir”2. Essa é claramente uma definição voltada à tradução literária, uma vez que, ao dar centralidade ao trabalho criativo, afasta o trabalho do tradutor de uma atividade técnica e o aproxima de uma atividade artística. Em resumo, trata-se da necessidade de buscar correspondências não somente para os significados do texto, mas também para seus significantes; trata-se de tentar reproduzir em outro idioma a experiência estética de que o original é capaz — e isso a mera conversão dos vocábulos, por mais correta que possa parecer, por si só não é capaz de fazer. O tradutor precisa replicar a singularidade da obra e isso implica embrenhar-se em uma contradição: é preciso trair para manter-se fiel… e, diga-se de passagem, os Modelos de Linguagem são incapazes de traição, pois operam por meio de uma lógica para a qual essa noção sequer existe. 

Para os humanos, esses seres bastante hábeis quando o assunto é infidelidade, só há um meio para não se perder nas brenhas do ofício da transladação: primeiro, trilhar na língua de origem o caminho pelo qual a obra encontra a experiência universal da qual é feita e que suas palavras evocam; depois, a partir dela, fazer o caminho inverso, na língua de destino, até encontrar outras palavras que possam também expressá-la. É um caminho incerto, porque nunca trilhado, que exige que se desbrave o mato selvagem em direção ao desconhecido. É um caminho perigoso, porque qualquer derrapada pode levar à lama da “reescrita”, da “recriação”, palavras um tanto perigosas, uma vez que servem geralmente para que o tradutor use o autor “como uma espécie de muleta para satisfazer suas próprias aspirações”3; para que ele, valendo-se do original, transmita uma mensagem que não está lá. Essa estreita trilha está fechada para os algoritmos; eles só se locomovem por estradas largas e muito bem pavimentadas. Para eles, o mundo é um labirinto sem porta de entrada ou saída; é um dicionário no qual cada verbete remete a um outro verbete, infinitamente; é um jogo de Sudoku sem nenhum número preenchido; é, enfim, um mundo autorreferenciado, fechado em si mesmo e inteiramente conhecido, feito de equivalências cujo sentido lhes escapa. 

Nas Redes Neurais Artificiais que estruturam o processamento de dados dos Modelos de Linguagem, resumidamente, a diferença entre “casa” e “lar”, por exemplo, tem a ver com os contextos nos quais essas palavras comumente aparecem, i. e., as outras palavras que as cercam nos textos4. Eles podem simular o entendimento dessa diferença, justamente porque, apesar de serem sinônimos, ou seja, de terem contextos muito semelhantes de aparição, acompanham a primeira mais frequentemente termos ligados à edificação, como em “a casa é feita de tijolos” ou “comprei uma casa nova em um bairro central” e a segunda mais frequentemente termos ligados a emoções, como em “o lar é onde o coração encontra paz” ou “minha casa só se tornou um lar quando meu filho nasceu” — todos esses exemplos foram dados pelo próprio ChatGPT-4 Plus. Embora as informações não sejam públicas, é factível supor que haja inúmeros (fragmentos de) textos no corpus usado no treinamento de qualquer Modelo de Linguagem nos quais essa diferenciação é feita de maneira esquemática, o que ajuda a otimizar seus resultados. Não à toa, os engenheiros de dados e os especialistas em alinhamento, como são chamados os responsáveis por tal curadoria, tendem a priorizar verbetes, como os presentes na Wikipédia, para treinar seus modelos, em vez de poemas. Isso se deve à inviabilidade de aplicar a aprendizagem por reforço5 quando os critérios de avaliação não estão dados de antemão ou não encontram consenso nos corpora, como é frequentemente o caso das obras de arte, carregadas subjetivamente, e que, não raro, se valem do insuspeitado, do atípico, do insólito, para produzir significação. 

Nesse sentido, o trabalho dos tradutores continua sendo não só fundamental, como nunca poderá acompanhar o ritmo que essas novas tecnologias de tradução automática imprimem ao mercado. Uma tradução humana bem-feita leva tempo. A rigor, leva uma vida inteira, uma vez que depende do acúmulo de experiências do tradutor. A conhecida contradição da última estrofe do “Soneto de fidelidade”, de Vinícius de Morais, em especial em seu verso final — “Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.6 —, não é contradição nenhuma, é a própria dinâmica do amor moderno. Mas isso só entende quem já a viveu. Alguns bem-intencionados poderiam dizer que o amor é ele mesmo contraditório, mas essa é só uma saída retórica para se esquivar do óbvio: a linguagem humana não pode transmitir com seus recursos a complexa coerência desse sentimento — e por isso a literatura se faz necessária, ela é o modo pelo qual é possível (tentar) vencer as limitações da linguagem; ela subverte para elevar: trai para manter-se fiel. 

Se a experiência de vida é fundamental para uma boa tradução literária, ela certamente não é suficiente. Ainda nas palavras de Nepomuceno, é igualmente importante “conhecer o autor e saber o máximo possível do cenário em que ele escreve — o que vai da cultura e dos hábitos de determinado país à própria nostalgia do escritor. As palavras mudam de peso e de intensidade de país para país, de autor para autor”7. Aqui, novamente, os seres humanos levam vantagem em relação às máquinas. Os textos convertidos em dados perdem sua densidade histórica, seu contexto de produção; tornam-se informações atemporais, números no interior de uma calculadora. 

Por conta disso, embora uma IA possa com rigor impressionante discorrer, por exemplo, sobre um artigo no qual se comparam o valor da leitura para a civilização etrusca no século VIII a.C. e sua função social hoje, ela terá grande dificuldade em captar o papel emancipatório que Bertolt Brecht atribui ao ato de ler no poema “Perguntas de um trabalhador que lê”8. Apesar disso, essa IA provavelmente conseguirá responder perguntas sobre ambos com a mesma desenvoltura — e por um único motivo: os seres humanos já responderam essas perguntas por ela, e as informações necessárias a tais respostas estão disponíveis ou no banco de dados usado para seu treinamento ou nas informações acessíveis à consulta, na internet. Caso contrário, para lidar com a poesia do dramaturgo alemão, seria necessário não só conhecer o autor e o cenário de onde escreve, mas também reconhecer a ironia presente na maneira como o operário (eu poético) interroga os manuais de história; seria necessário perceber que a pergunta “Quem construiu a Tebas de sete portas?”, verso que abre o poema, é retórica, feita exclusivamente para revelar o apagamento de sua classe nas narrativas oficiais — para, por fim, concluir que a leitura emerge no poema como o modo pelo qual o trabalhador entra em contato não só com os saberes socialmente acumulados, mas também com o lugar que ele ocupa na construção desses mesmos saberes; que ela é, portanto, um dos vetores da tomada de consciência da opressão em suas múltiplas dimensões. 

Nada disso uma IA pode fazer… Basta pedir a ela para interpretar um poema nunca antes interpretado ou para traduzir um conto nunca antes traduzido ou sobre o qual nada foi escrito para que essas limitações se evidenciem. Nesse sentido, o poema de Brecht continua bastante atual, uma vez que o trabalho humano que permite o bom funcionamento das Inteligências Artificiais é tão invisível quanto o dos construtores da pólis grega. Mas esse é outro assunto. A questão central aqui é entender que, na ausência de informações sobre determinados assuntos, as IAs têm mecanismos muito elegantes de ”produção de conteúdo”, conforme o jargão da área, uma vez que podem aplicar padrões lógicos, semânticos e narrativos a qualquer prompt e com isso gerar respostas bastante verossímeis; essas respostas, contudo, vão sempre no sentido de enquadrar a novidade no já conhecido e, por isso, quando o objeto a ser analisado é, de fato, novo, ou seja, quebra com esses mesmos padrões de que ela dispõe, apesar de convincentes, as respostas não serão na maioria das vezes verdadeiras. Ora, esse é justamente o caso da literatura e, consequentemente, das traduções literárias, que requerem essa mesma sensibilidade que a interpretação literária requer — e que só os humanos têm.  

Mas a situação exige calma — e uma dose de crítica à antropolatria. Se em tese os seres humanos têm essas capacidades e as máquinas não, ao analisar o resultado de muitos trabalhos recentes feitos nesses campos tanto por seres humanos quanto por Inteligências Artificiais, verificam-se principalmente duas tendências: o avanço da capacidade das máquinas, de um lado; e certo retrocesso das faculdades humanas, de outro. Isso é preocupante, embora não seja inesperado. Em uma de suas belas reflexões, quando despontava essa nova leva de Modelos de Linguagem há dois anos, o professor Mauro Iasi concluiu: “Se um dia, por uma hipótese absurda [a Inteligência Artificial puder produzir grandes obras teóricas e de artes], será para que enquanto máquina possa ser aquilo que nós, enquanto humanos, abdicamos de ser”. 

De fato, essas duas tendências não apenas coexistem, elas se retroalimentam. E isso se deve ao fato de que, no processo de trabalho, o ser humano não cria somente aquilo que pretende criar, cria também a si mesmo. É por meio de sua ação no mundo que ele se aperfeiçoa. Se, por comodidade, pressa, incapacidade ou qualquer motivo que seja, ele abdica de usar a linguagem, abdica também da capacidade de usá-la — e precisará cada vez mais de auxílio dos computadores, em todas as frentes em que se defronta com ela: dos usos mais prosaicos, como escrever um e-mail ou resumir as ideias principais de um artigo, até os mais elevados, como interpretar poesia ou redigir um ensaio, o instrumento criado para supostamente ampliar as capacidades humanas passa a atrofiá-las, e o que poderia ser um meio de emancipação converte-se em regressão.  

Essa crítica, em realidade, não é propriamente nova; ela está presente nos Manuscritos econômico-filosóficos, de Karl Marx, escritos em 1844. Neles, o autor argumenta em favor da supressão da propriedade privada dos meios de produção e, consequentemente, do dinheiro como forma de devolver ao ser humano suas capacidades atrofiadas pelas constantes inversões de que ambos são capazes. Em linhas gerais, na medida em que um homem covarde “pode comprar a valentia”, na forma de proteção, o capital “obriga os contraditórios a se beijarem” e falseia as relações humanas, que deixam de ser a “externação determinada [da] (…) vida individual efetiva de cada um”9 para tornarem-se uma expressão de seu poder de compra, de seu lugar de classe. No limite, trata-se do outrora tão propalado (e hoje sintomaticamente esquecido) problema da alienação. Ora, é exatamente isso que faz um Modelo de Linguagem: torna eloquente aquele que mal sabe se expressar. “Graças ao aplicativo, até um imbecil pode escrever um romance, mas continuará um imbecil”, satiriza Iasi. Mas a questão não é pessoal, uma vez que, mais que um imperativo ético no uso individual das tecnologias, o que está em jogo é o rebaixamento coletivo das capacidades humanas de produção e fruição artísticas.

Entre o exílio e o lar: notas sobre traduzir “Home”, de Warsan Shire 

Nesse sentido, e em defesa dos tradutores humanos, gostaria de propor, como um exercício que permita visualizar a complexidade desse trabalho, uma tradução para o poema “Home”, de Warsan Shire, comparando-a às traduções feitas just in time pelo ChatGPT-4 plus e, em alguns casos, às saídas encontradas por Laura Assis na única edição disponível no mercado brasileiro10. Trata-se de um poema em prosa, amplamente divulgado na internet como se tivesse sido escrito em versos — o que é, por si só, um ótimo exemplo do rebaixamento coletivo da experiência artística contemporânea; parece que uma forma híbrida como a consagrada por Charles Baudelaire na segunda metade do século XIX é inacessível para os leitores de redes sociais… Nesse sentido, somente o fato de devolver o texto de Shire à sua forma original torna a edição que temos relativamente meritosa; de um modo geral, contudo, padece de um mesmo mal: toma tão poucos riscos, é tão fiel ao original que… o trai.  

“Home” está dividido em duas partes, explicitamente demarcadas pelos numerais 1 e 2, que correspondem a dois traumas distintos na trajetória do eu poético: primeiro o da emigração forçada e depois o da vida enquanto imigrante, uma vez estabelecido em um novo país. A voz parece dialogar ao mesmo tempo com toda a humanidade e somente consigo mesma; é uma voz que busca romper fronteiras, mas que talvez ainda esteja presa em sua própria cabeça, conforme sugere o título do livro em que se encontra — Bendita seja a filha criada por uma voz em sua cabeça.   

Na primeira parte predominam “no one” e “you”, enquanto na segunda predomina “I”. Não se trata, entretanto, de uma divisão esquemática; o que motiva a seleção de um ou outro é a situação do eu poético, cuja subjetividade se retrai e se expande, se individualiza e se coletiviza, conforme o local e as violências aos quais está exposto. Dito de outro modo, esse “eu” está sempre lá, pressuposto, mas se esconde na presença das forças de repressão. 

Para retratar o primeiro trauma, “Home” se vale de fragmentos de cenas vivenciadas no país (de nascimento) do qual o eu poético busca escapar, por meio das inúmeras fugas possíveis de seus conterrâneos: por terra, dentro de um caminhão; por mar, em um barco; pelo ar, em um avião; todas elas motivadas pela truculência dos agentes estatais (outrora amigos de infância) e evocadas por uma voz poética que é a um só tempo a voz de todos e a de ninguém. É a voz de todos porque captura em seu movimento de enunciação até mesmo o leitor (“you”), colocando-o em seu lugar ao lado dos emigrantes em fuga (oprimidos); e a de ninguém porque essa mesma voz que eclode no poema é a todo tempo silenciada, desacreditada, deslegitimada por outra(s) voz(es) (do opressor) — não à toa muitos dos versos-períodos são construídos a partir da negatividade inerente ao pronome indefinido “ninguém” (“no one”), que opera como representante desses mesmos emigrantes desprovidos de humanidade. É como se o poema em prosa dissesse na oscilação entre um e outro que, uma vez submetidos à violência miliciana, todos se convertem em ninguéns; todos se veem obrigados a fazer o que ninguém faria, o leitor incluso; todos perdem seus meios de expressão. Nesse primeiro momento, é sintomático que a voz poética não possa se individualizar, ela é antes uma voz coletiva (“you”) e subjugada (“no one”), cuja expressão está censurada em sua terra natal, em seu lar (“home”); é como se a casa fosse a condição objetiva dentro da qual a voz do eu poético pode ecoar. Expulsa, a voz se cala.    

Aqueles que conseguem escapar da morte e encontram refúgio “do outro lado” (“on the other side”), na reflexão que fazem de sua nova situação, rememoram o primeiro trauma de maneira individualizada; uma vez em terra estrangeira, pode surgir o eu (“I”) até então reprimido. Esse “eu”, contudo, é um eu fraturado e em flagelo, sem pertencimento definido, que não encontra acolhimento em lugar algum e é obrigado a se submeter a novas violências (preconceito, desamparo, isolamento, relação extenuante com a burocracia imigratória, rotina exaustiva de trabalho, aprendizado de uma nova língua em condições totalmente adversas), sob o pretexto de que elas são menos piores do que aquelas das quais ele fugiu (estupro, tortura, assassinato); apesar de terríveis, elas são, de fato, preferíveis. Trata-se, portanto, de um “eu” ainda coletivo, diaspórico, uma vez que sua condição psíquica é comum a todos os violentados, mas que agora emerge sob a forma da primeira pessoa do singular, mais adequada à sua nova situação — de isolamento em relação a seus pares, espalhados pelo mundo.

É nesse sentido que devem ser interpretadas as imagens de silenciamento presentes em “Home”: “a boca [que] se torna uma pia cheia de sangue” (“my mouth becomes a sink full of blood”) – segundo trauma, por exemplo; ou “a masculinidade/pênis” (“manhood”) “de homens que se parecem com (…) o pai” (“of men who look like my father”) do eu poético “em [sua] (…) boca” (“in my mouth”) ou ainda “cada pedaço” (“mouthful”) do passaporte engolido – ambos pertencentes ao primeiro trauma. É interessante notar a escolha lexical do termo original “mouthful”, cuja etimologia corrobora com o campo semântico dos demais exemplos vistos, uma vez que se faz pela união de “mouth” (boca) e “full” (cheia), e que significa algo como “uma quantidade que enche a boca”. Como se nota, a boca funciona metonimicamente como representante dos graus de silenciamento a que estão submetidos aqueles que são forçados a emigrar, uma vez que está sempre obstruída, disfuncional; mas funciona também metonimicamente como agente de violência, na medida em que é usada pelos opressores como forma de subjugar os mais fracos – é nesse sentido que devem ser lidas as falas, ora da “própria casa”, que expulsa: “fuja, corra, agora” (“leave, run, now”), ora daqueles “do outro lado” (“on the other side”): “voltem para casa, negros, refugiados imundos (…) vejam o que fizeram com seus próprios países, imaginem o que farão com o nosso?” (“go home Blacks, dirty refugees (…) look what the’ve done to their own countries, what will they do to ours?”), isso sem falar na metáfora central, a “boca” do “tubarão” (“mouth of a shark”). 

Em resumo, a força do poema em prosa está justamente em conseguir formalizar essa indiferenciação entre experiência individual e coletiva, entre trauma pretérito e futuro, por meio de uma voz poética que não pode se individualizar nem mesmo quando faz uso da primeira pessoa do singular e traz para o primeiro plano uma experiência aparentemente individual, porque está a todo momento sendo assediada por outras vozes. A fatura de “Home”, portanto, devolve — pelo menos em parte — a voz daqueles que a perderam e que se sentem representados pelo eu poético coletivo que comete o “pecado da memória” (“the sin of memory”), ao lembrar as injustiças pelas quais passou e trazê-las a público, invertendo — por um momento que seja — a lógica do poder discursivo. 

Verter essas oscilações no grau de generalidade assumido pela voz poética, mantendo em português o mesmo efeito que têm em inglês, é dificílimo, a começar pelo fato de que o “você genérico”, como se verá mais adiante, não pode ser replicado literalmente sem que sua força se perca. Mais do que isso, em português há marcas de gênero nas desinências verbais, por exemplo nos particípios passados “espancado(a)” (“beaten”) ou “vendido(a)” (“sold”), o que não acontece em inglês. Embora se trate evidentemente de uma voz poética feminina, a falta de uma marca inequívoca, gramatical, que lhe confira essa identidade, amplia seu poder de representação e, com isso, sua força; principalmente em poesia, quando devidamente trabalhadas, as ambiguidades podem se converter em polissemia.  

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, ver na biografia de Warsan Shire a chave de leitura do poema em prosa, limitando-o à trajetória de uma emigrada do Quênia, de origem somali, que reside no Reino Unido – como é seu caso e de sua família —, seria restringir sua universalidade. “Home” trata de negros e brancos – o que pode ser objetivamente demonstrado, e é claro que isso tem lastro histórico na relação entre Europa e África –, mas essas categorias operam no texto como metáforas de sujeição e poder: são palavras, não pessoas. Ademais, essa oposição étnica só emerge após o abandono do lar, no contato com o estrangeiro (branco); internamente, a violência sofrida pelo eu poético é praticada por seus iguais (negros), no seio de um Estado opressor. Não à toa os símbolos que representam esse poder (interno) são outros, como o “passaporte” (“passport”), a “bandeira” (“flag”), a “língua” (“language”), e a “masculinidade/pênis” (“manhood”) – todas metonímias da Nação (aparelhada por homens machistas).  

Do mesmo modo, ler “Alhamdulillah” – expressão árabe para “graças a Deus” presente no poema em prosa – como um tipo de filiação do eu poético ao islamismo seria dar centralidade a uma questão religiosa que é lateral no texto, se é que está lá; seria como interpretar a fala de um brasileiro que diga “meu Jesus!” ou “Mano do céu”, para denotar surpresa, como uma fala necessariamente cristã. Por mais que historicamente o Quênia seja um lugar em disputa, de maioria cristã, mas com grande presença do Islã, e por mais que a família de Shire seja somali, nada no poema em prosa autoriza essa leitura; essa oposição não existe concretamente, não pode ser objetivamente demonstrada. Em tempo, também o eu poético é feito de palavras, não é uma pessoa; ele não se confunde com a autora, por mais que ela o construa a partir de suas experiências pessoais.   

Para lidar com tudo isso de forma rigorosa, portanto, exigir-se-ia do tradutor grau máximo de criatividade, pois quando o esquema tripartido da língua inglesa presente no original – “ninguém” (“no one”), “você” (“you”) e “eu” (“I”) – é transposto mecanicamente, produz uma série de incoerências formais e atrofia seu efeito de sentido. Isso é atestado pela convivência um tanto insólita entre o masculino genérico, como em “ninguém deixaria a casa a menos que ela o perseguisse” e o feminino específico, em “ninguém escolheria rastejar por baixo de cercas, ser espancada (…)”, ao longo de ambas as traduções, da inteligência artificial e humana, do que decorre algo mais grave. 

Em um desses casos, no verso-período “ser forçada a sair do barco porque é escuro demais” (“forced off the boat because you are darker“), além da dupla presença dos gêneros constitutivos, há a questão racial, em certo sentido negligenciada, na escolha lexical de “escuro demais” para traduzir “darker”. De fato, essa é uma tradução possível, por exemplo em “I prefer the darker jeans” (“eu prefiro o jeans mais escuro”), mas ligado ao tom da pele, ainda mais em um contexto de racismo explícito, o adjetivo “escuro” parece inverossímil, eufemístico. Transpondo-se essa experiência para solo brasileiro, seria mais comum dizer “retinto”, caso se quisesse representar gradações na tez negra; caso se quisesse, diferentemente, representar a oposição entre negros e brancos, “preto” bastaria.  

Em muitos aspectos, a segunda estrofe do poema em prosa é a mais ilustrativa. O primeiro verso-período dela, “No one would leave home unless home chased you” foi traduzido pelo ChatGPT-4 Plus como “Ninguém deixaria o lar a menos que o lar o perseguisse”11. A máquina fez a escolha mais óbvia, uma vez que “home” e “house” correspondem, em inglês, ao binômio “lar” e “casa”, em português; entretanto, a menos acertada, uma vez que “lar” é uma palavra muito mais delicada em português do que “home” em inglês, muito menos usual e que, por conta disso, não se encaixa bem em qualquer contexto. Como no poema em prosa ela funciona como um estribilho, sendo repetida dezessete vezes em situações variadas, para manter a coerência da tradução – afinal, oscilar entre “lar” e “casa” seria desastroso –, o correto seria optar por “casa”, como faz Laura Assis. “Ninguém deixaria a própria casa ao menos que ela o perseguisse“, traduz ela, reconhecendo que também algo se perde com essa escolha, e, por conta disso, ao buscar novamente aproximar-se da ideia original de Shire, faz-se necessário acrescentar o adjetivo “própria” ao substantivo “casa”. 

Ora, se o título do poema em prosa se desdobra em um estribilho, não é possível substituí-lo em momento algum por um pronome – “ela”, como acontece. A força do estribilho é sua reiteração. Não preservar sua forma integralmente seria justificável somente se sua repetição levasse a um problema de sonoridade ou de ritmo, produzisse algum truncamento das sílabas, eco ou cacofonia. Muito ao contrário, sua dupla aparição condensada antes e depois da cisão do verso-período, feita por meio da conjunção subordinativa negativa “unless” (exceto se, a menos que, a não ser que, em português), ajuda a modulá-lo, além de dar às duas orações maior coesão: a primeira termina exatamente do mesmo modo como a segunda começa, criando uma unidade não só sintática, mas também semântica e lexical: “No one would leave home unless home chased you” (grifos meus). Tudo isso amplifica o impacto do verso-período, potencializando a imagem nele presente.  

O ideal seria conseguir reproduzir essa potente organização alcançada no original também em sua tradução, mas à primeira vista isso não parece possível, porque não há em português uma conjunção subordinativa negativa curta, feita por meio de uma palavra só, que possa manter a gravidade do contexto… contra a parede, o tradutor é tentado a optar pela solução mais à mão, “a menos que”, abandonando em favor do conteúdo a forma. Quando o tradutor se vê obrigando a mutilar alguma dimensão do original, tem início o trabalho criativo, e é por meio dele que os seres humanos podem rejeitar a simplificação operada inevitavelmente por uma tradução maquinal. 

A melhor solução que encontrei foi inverter as polaridades. No original a conjunção é negativa, porque a oração subordinada é positiva, “home chased you” (lar o perseguisse), mas é possível fazer da conjunção positiva, desde que a oração subordinada carregue a negatividade pretendida na forma de um advérbio de negação – e há conjunções subordinativas positivas curtas, feitas de uma só palavra, em português: “se”, por exemplo. O verso-período assim reconstruído a partir das reflexões feitas poderia ser: “Ninguém deixaria a própria casa se a casa não o perseguisse”. 

O texto fica mais bem urdido desse modo, mas ainda está aquém do original, pois não consegue transmitir a relação íntima que existe entre “leave” (deixar) e “chase” (perseguir), que estão unidos por um campo semântico cujo centro é a metáfora com a qual o poema em prosa se inicia, a da casa como um tubarão (“shark”). Todas as palavras de algum modo convergem para a boca desse animal aterrorizante e devem ser lidas à luz dela. Aberta, a boca do tubarão traga para dentro de si toda a água ao seu redor, arrastando consigo tudo que se encontra no mar engolfado. Nesse sentido, traduzir “leave” por “deixar” é não levar em conta que, embora o sentido mais usual de “leave” seja, de fato, “deixar”, como em “I left the door open” (eu deixei a porta aberta), Shire está mobilizando uma outra acepção desse verbo, carregada de urgência, algo como “leave the sea now, a shark is coming!” (saia do mar agora, um tubarão se aproxima!). Nessa segunda acepção, em português já não é possível manter o verbo “deixar” como tradução mais adequada: “deixe o mar agora, um tubarão se aproxima!” soa contraditório; a urgência diante do ataque não se faz notar na escolha lexical do verbo. Qualquer brasileiro diante dessa situação, em verdade, gritaria: “foge! Tubarão!” A agilidade que a situação exige apressa a linguagem e a lapida, talha tudo o que não é fundamental – e revela de qual verbo o tradutor precisa: “fugir”. É disso que se trata, afinal. Ninguém deixa um país sitiado; de uma guerra, assim como de tubarões, ou seja, de situações entre a vida e a morte, aqueles que são perseguidos (chasedfogem (leave). Isso é especialmente claro, pois havia sido descrita, no segundo verso-período da primeira estrofe do poema em prosa, uma cena na qual a cidade inteira está em fuga “correndo” (“running”) para a fronteira. 

De volta à segunda estrofe, no verso-período seguinte, lê-se no original: “it’s not something you ever thought about doing”. Essa frase é especialmente traiçoeira, porque nela se nota inequivocamente a estrutura de pensamento da língua inglesa. Para traduzi-la, portanto, é necessário redobrar a atenção. Uma tradução como “não era algo em que você alguma vez tivesse pensado em fazer”, sugerida pelo ChatGPT-4 plus, coloca tudo a perder…  

Vejamos. Primeiro, embora a frase do ChatGPT-4 plus não tenha nenhum problema gramatical, em português ela é exatamente o contrário de um chavão, da frase que soa natural e conhecida de todos, como acontece no original em inglês, ou seja, não só não replica a experiência estética do original como, pior, a inverte. Além disso, o uso bastante característico da língua inglesa da segunda pessoa do discurso, “you” (“você”), não para se referir ao ouvinte/leitor, mas como uma maneira de falar de si mesmo, universalizando a experiência pessoal evocada. Em inglês, esse recurso é bastante produtivo e, por isso mesmo, comum. “When you live in the city, you get used to the noise”, por exemplo, em tradução literal seria “quando você vive na cidade, você se acostuma com o barulho”. Mas não é o ouvinte/leitor que mora na cidade, e sim o falante/escritor (quiçá ambos). Em português, o modo mais adequado de traduzir essa frase seria: “quando se vive na cidade, acostuma-se com o barulho” (formal) ou “quem mora na cidade se acostuma com barulho” (informal). Ou seja, em português, indetermina-se o sujeito para universalizar sua experiência valendo-se do “se” como índice dessa indeterminação. Em inglês, esse fenômeno é conhecido como “generic you” (“você genérico”), justamente porque não se refere de fato à segunda pessoa do discurso (tu/você). Embora por influência crescente da indústria cultural (estadunidense) e das redes sociais cada vez mais seja possível escutar formulações típicas da língua inglesa em português, o você genérico não tem em português (ainda) o mesmo efeito que tem em inglês; mantê-lo em um poema carregado de lirismo é afrontar a sensibilidade do leitor, obrigando-o a acostumar-se com um modo estrangeiro de pensar; é ser cúmplice do imperialismo contra o qual em certo sentido “Home” se coloca. Seria melhor investir em algo como: “ninguém pensaria em fazer isso”.  

Essa solução, embora dê conta dos problemas mais imediatos, ligados à tradução do verso-período visto (quase que) isoladamente, precisa ser confrontada com o restante do poema em prosa, do mesmo modo como se fez em relação à escolha lexical da tradução do termo “leave”. Para tanto, é imperioso debruçar-se sobre os níveis de generalidade que a voz poética assume em diferentes passagens e a seleção feita por Warsan Shire dos termos com os quais transita entre eles, como se tentou demonstrar anteriormente. 

“Home” é muito bem construído; sua potência vem tanto da experiência limítrofe nele representada quanto do modo como a autora a trabalha. Não à toa ele tende a emudecer o leitor, sensibilizado pela voz poética ao mesmo tempo combativa e frágil que conduz seu olhar. Não à toa ele é tão difícil de traduzir. Em verdade, há passagens quase impossíveis, o que não é incomum em textos poéticos. Quando isso acontece, geralmente o tradutor é obrigado a lançar mão de uma nota de rodapé na qual, disfarçada e humildemente, expõe a aporia em que se encontra, buscando mitigar a inevitável perda.  

A última oração de “Home”, “his manhood in my mouth”, é um ótimo exemplo disso. “Manhood”, no contexto em que aparece, deve ser entendido como aquilo que faz dos homens homens, tanto do ponto de vista anatômico (sua genitália) quanto de seu papel de gênero (sua masculinidade). Trata-se da lembrança da uma cena de estupro coletivo, cuja consequência vai muito além da violência sexual praticada; ela representa o próprio trauma da expulsão de casa; é a cicatriz deixada pela mordida do tubarão. Assim sendo, condensado sob esse signo, “manhood”, estão a origem étnica do eu poético, propriedade de seus algozes, que como uma pecha resiste no corpo dos imigrantes e que será usada preconceituosamente contra eles por seus novos concidadãos; o sotaque que denuncia a falta de pertencimento linguístico ao novo território; o desamparo na ausência dos parentes perdidos; a cor da pele e os traços fenotípicos desvalorizados; os medos; o próprio poema, que só pode ser esse e não outro, de júbilo ou amor… Tudo isso está entalado na garganta do eu poético. 

Não é fácil encontrar em português um termo que possa abarcar essa multiplicidade de sentidos e dar conta da densidade literária de “Home”. Para se ter uma ideia, antes de chegar a “sêmen”, descartei mais de 20 outras possibilidades – e não considero minha escolha satisfatória. Foi a que me pareceu menos inadequada, pois preserva de algum modo essa união entre mundo físico, denotativo (a boca cheia de líquido e impedida de falar), e simbólico, conotativo (a filiação masculina, a cultura do estupro presente na pornografia machista, o universo fálico do Estado genocida), presentes no original, sem recair em um registro erótico ou chulo, que não existe na versão inglesa. Mas me pareceram igualmente (in)adequados “culhões”, “cassetete”, “falo”, entre tantos outros… 

Por conta disso, para que a poética de Warsan Shire possa ser apreciada em sua magnitude também em terras brasileiras, seu poema em prosa mereceria uma tradução à altura do original, uma tradução que se arriscasse na busca de soluções para os complexos problemas que ele coloca. Aceitar esse desafio é presentear não somente os leitores, mas também aquele que traduz; é se reapropriar da linguagem reificada pelo dia a dia extenuante que mutila a quase totalidade do planeta, que se encontra hoje capturada pelo desenvolvimento técnico feito contra ela; é, enfim, cultivar o pensamento crítico e artístico, aquele que pode (ainda!) humanizar.  


Nossa casa 
Warsan Shire (tradução de Rafael Ciancio) 

Ninguém fugiria de casa se a casa não fosse a boca de um tubarão. Nós nunca correríamos até a fronteira se toda a cidade já não estivesse correndo. O menino da escola, aquele do primeiro beijo desengonçado atrás da velha fábrica de latinhas, agora segura uma arma maior do que ele. Nós só fugimos de casa porque nossa casa nos botou pra correr. 

Ninguém fugiria de casa se a casa não fosse um predador. Nós nunca pensaríamos em fazer isso, e se o fizemos foi com nosso hino entalado na garganta até alcançar o banheiro do aeroporto, rasgar nosso passaporte e engolir cada fragmento de lamento que atesta que não há por onde voltar. 

Ninguém colocaria os filhos num barco, se o mar não fosse mais firme do que própria terra. Ninguém escolheria ficar dias a fio nas entranhas de um caminhão se estivesse somente de mudança. 

Ninguém se arrastaria por debaixo de cercas, seria espancado até desmaiar, estuprado, expulso do barco por ser preto retinto, depois seria afogado, vendido, passaria fome, ou seria piedosamente abatido na fronteira como um animal doente, por querer. Ninguém faria de um campo de refugiados a própria casa por um ano ou dois ou dez, seria despido e revistado, perseguido em todo lugar para, caso sobrevivesse, ao chegar do outro lado, ser recebido com — voltem para casa, seus pretos, refugiados nojentos, mamando na teta do estado, negros com suas mãos estendidas, cheirando mal, macacos; vejam só o que fizeram com seus próprios países, o que farão com os nossos? 

Os insultos nós até pudemos engolir, mas não encontramos os corpos de nossos filhos soterrados. 

Eu quero voltar para casa, mas a casa é a boca de um tubarão. A casa é o cano de uma arma. Ninguém fugiria de casa se a casa não fosse um caçador incansável. Ninguém fugiria de casa antes de ouvir, da casa, ao pé do ouvido — suma daqui, depressa, eu não sei do que sou capaz. 

II 

Estou perdida. Minha terra natal está desaparecendo. Sou indesejada aqui. Minha beleza não é bela mais. Meu corpo treme de vergonha e desamparo, cheio de saudades. Sou o pecado do testemunho e o silêncio. Assisto às notícias afogada em uma pia de sangue. As filas, os formulários, as pessoas à mesa, os cartões telefônicos, os agentes de imigração, os olhares na rua, os ossos a ponto de congelar, as aulas noturnas de inglês, a distância de casa. Meu Deus12, tudo isso é preferível ao fedor de uma mulher inteiramente carbonizada, a um camburão lotado de homens como meu pai — arrancando minhas unhas e meus dentes. Todos eles entre minhas coxas, uma arma, uma promessa, uma mentira, seu nome, sua bandeira, sua língua, seu sêmen na minha boca. 

Notas

  1. Não se trata aqui de afirmar que os LLMs (Large Language Models) não conseguem produzir frases nunca antes vistas, eles o fazem o tempo todo, mas antes de entender que não têm nem essa consciência nem essa intenção. Stricto senso, eles não criamdeduzem. Quando parecem criativos, trata-se de um simulacro de originalidade↩︎
  2. NEPOMUCENO, Eric. Traduzir e traduzir García Márquez: algumas anotações. In: NOVAES, Tiago (org.). Tertúlia: o autor como leitor. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2013, p. 128. ↩︎
  3. Ibid. ↩︎
  4. Em verdade, esses modelos não trabalham com palavras, e sim com tokens, que são unidades mínimas de processamento matemático. Mas isso é indiferente para a discussão feita. ↩︎
  5. O termo técnico aqui é Reinforcement Learning from Human Feedback (RLHF), um procedimento no qual trabalhadores avaliam as repostas geradas pelos LLMs como boas ou ruins. Essas avaliações são utilizadas para ajustar os parâmetros do modelo, favorecendo as respostas bem avaliadas em detrimento das avaliadas negativamente. ↩︎
  6. MORAES, Vinícius de. Soneto de Fidelidade. In: Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 93-94. ↩︎
  7. NEPOMUCENO, op. cit., p. 130. ↩︎
  8. BRECHT, Bertolt. Perguntas de um trabalhador que lê. In: Poemas 1913-1956. Seleção e tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 166. ↩︎
  9. MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 161. Grifo meu. ↩︎
  10. SHIRE, Warsan. Home. In: Bendita seja a filha criada por uma voz em sua cabeça. Tradução Laura Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 22-27. ↩︎
  11. Talvez seja importante esclarecer que o fato de a IA ter chegado a esse resultado não faz com ela vá chegar sempre a essa mesma (re)solução, como se ela estivesse dando a própria opinião ou como se ela de fato achasse que essa é a melhor tradução. Estimulada de outro modo, certamente ela chegaria a resultados ligeiramente diferentes, mas todos igualmente problemáticos. ↩︎
  12. No original, “Alhamdulillah”, expressão comum em árabe que significa “Graças a Deus”, “Louvado seja Deus”. ↩︎

***
Rafael Torrano Ciancio é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, com mestrado sobre a poesia de Solano Trindade na mesma instituição. Trabalhou como professor de língua portuguesa em diversas instituições de ensino, como a Escola Nossa Senhora das Graças (Gracinha) e o Colégio Santa Cruz. Ajudou a fundar a Arco Escola-Cooperativa, na qual atua até hoje. 



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Data original de publicação: 30 de setembro de 2025

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