O trabalho é gasoso, mas os trabalhadores são de carne e osso: uma proposta de como operacionalizar direitos, deveres e obrigações dos contratos gerenciados via plataforma digital ¹

Foto: Pixabay

Por Paula Freitas de Almeida²

O objetivo desse texto é apresentar uma proposta de aplicação das normas que regulam as relações de emprego no Brasil às relações de trabalho gerenciadas via plataforma digital. A ideia foi desenvolvida a partir da pesquisa “A disputa judicial do trabalho de passageiro e de entrega delivery gerenciado via plataforma digital”, realizada no CESIT/IE/Unicamp, sob orientação do Prof. Doutor José Dari Krein. A proposta consiste no desenvolvimento de uma plataforma conceito, de natureza pública e sob administração do Ministério do Trabalho e Emprego, em que se integre as informações de todas as plataformas privadas, em tempo real e criando um sistema único de integração das informações sociais e do trabalho, a Plataforma Digital de Integração Pública das Informações Sociais e do Trabalho. 

A proposta, que será melhor apresentada a seguir, se coaduna com o desejo de oferecer uma solução prática para aos problemas levados pelos trabalhadores dos setores do transporte de pessoas e de entrega delivery à Comissão Tripartite, oficializada desde o último dia 18/01/2023. O primeiro dos problemas apresentados, fez o reconhecimento desse trabalho como um trabalho gasoso, que está solto, disperso e com seus trabalhadores sempre em movimento fluído; também, podemos depreender que é um gás inflamável, porquanto a precariedade das condições de trabalho deixem esses trabalhadores sempre à ponto de explodir. O segundo problema, diz respeito à própria compreensão dos trabalhadores acerca de qual o tipo de regulação que desejam para esse trabalho. Foram apontadas as seguintes correntes: i) aqueles que defendem a aplicação da CLT; ii) aqueles que defendem seja a relação organizada em cooperativismo; iii) aqueles que defendem o trabalho autônomo, e; iv) a figura ainda inexistente no Brasil do subordinado-autônomo. 

As dificuldades apresentadas têm dois pressupotos em comum: i) entender qual o modelo de regulação do trabalho que se aplica a essa prestação concreta de serviços, que acontece diariamente nas ruas e que é prestado de modo massivo pelas empresas que gerenciam a multidão de trabalhadores, e; ii) assegurar a proteção de direitos sociais e do trabalho para estes últimos. Nesse sentido, se reconhece que a superação do problema perpassa pelo respeito à natureza gasosa desse trabalho, assim como pela conciliação dos fins pretendidos por cada corrente teórica defendida pelas lideranças dos trabalhadores: a melhor proteção (da relação de emprego) com autonomia. Por isso, aqui é feito o esforço de adaptar o sistema de proteção social e do trabalho já existente (não propor uma nova regulação) à fluidez desses trabalhos, uma vez que se reconhece a presença da pessoalidade, a onerosidade, a não-eventualidade, a subordinação e a alteridade dos termos reais/concretos em que essa relação de trabalho é contratada. Adaptações legislativas serão necessárias para operacionalizar o que já existe, mas não um novo fundamento legal de proteção.

Um outro aspecto considerado por essa proposta é que ela tem por fundamento político: a proteção dos trabalhadores e a democratização do acesso ao produto social e à riqueza produzida na indústria de serviços prestados de forma massificada. Ocorre que, ao contrário do que vem sendo apregoado, não se está diante de um mercado desregulado, mas de um mercado de serviços que na prática nega a regulação existente e aplica uma normatização do trabalho com critérios privados definidos unilateralmente. A desobediência pode acarretar a expulsão sumária do trabalhador dessa sociedade econômica. Além disso, o fluxo de ingressos e desligamentos é totalmente controlado pela empresa, que, no espaço virtual gerenciado por ela, estabelece os termos da concorrência atomista entre os milhares de trabalhadores, enquanto mantém o controle no mercado mundial dos serviços que presta (mercados marcados pelo caráter oligo/monopólico).

Mesmo diante de todos os empecilhos que parecem se somar para obstar uma solução favorável ao trabalhador, a presente proposta busca realizar a aplicação do sistema de regulação pública da relação de emprego, ao tempo em que preserva os termos já existentes entre a gestão dos interesses da empresa e a autonomia do trabalhador. A empresa continua titular do poder empregatício/diretivo, a ser aplicado estrategicamente ao seu modelo de negócio, nos termos já existentes em lei, ao passo em que o trabalhador permanece podendo organizar o seu tempo de trabalho: inclusive intervalo intrajornada e férias, sem abrir mão dos adicionais ou de um piso salarial. Além disso, importa destacar que a defesa do cooperativismo não afasta a CLT, ao contrário, coexistem porque a segunda é aplicada sempre que o primeiro é frustrado ou fraudado, de modo que a presente proposta não nega o cooperativismo, mas o acolhe. Dito isso, passa-se à concepção da operacionalização da aplicação da CLT ao trabalho gerenciado via plataforma digital.

A a ação do Estado é essencial, no sentido de criar um mecanismo de captação, armazenamento, processamento, gestão e distribuição dos dados relativos aos vínculos empregatícios, estabelecidos com as múltiplas empresas. Trata-se de conceber o desenvolvimento de uma plataforma digital pública, que integre todas as informações sobre a dinâmica de cada relação de trabalho cadastrada nas plataformas que realizam a sua gestão; que guarde essas informações; que as processe para identificar o conteúdo específico dessas relações (o conjunto de direitos, deveres e obrigações de cada empresa junto ao trabalhador e de cada trabalhador junto às empresas); que faça a gestão dos termos em que a prática do trabalho realizado subsume-se aos termos parametrizados, e; que distribua o resultado dessa gestão, tal como os termos a serem cumpridos por cada um dos sujeitos dessas relações (Estado, empresas e trabalhadores).   

A Plataforma Digital de Integração Pública de Informações Sociais e do Trabalho, deve incorporar um algoritmo programado para operar os parâmetros de seu funcionamento a partir dos termos em lei que definem direitos, deveres e obrigações para o Estado, para as empresas e para os trabalhadores. Observar-se-ia os termos já fixados pela CF/88, pela CLT e demais legislações infraconstitucionais que complementam o arcabouço jurídico de regulação da relação de emprego, inclusive as leis sobre recolhimento previdenciário e fundiário, assim como eventuais instrumentos coletivos, regimentos internos das empresas e leis que venham a estabelecer piso salarial, adicionais, obrigações de fazer, etc.

De modo prático, o Estado torna-se gestor da Plataforma Digital de Integração Pública de Informações Sociais e do Trabalho (já parametrizada pela legislação social e do trabalho que lhe for pertinente), fixaria o dever às empresas de integrarem os seus sistemas de suas plataformas digitais, para fazer o repasse automático, instantâneo (online) e individualizado (por CPF/MF) das informações relacionadas aos vínculos de trabalho ativo (com registro ativo). Essas informações devem ser protegidas pela LGPD, com acesso às informações desagregadas somente pelas autoridades competentes, no exercício de suas funções (ao exemplo dos membros da AFT e do MPT), pelas empresas que as lançaram e pelos trabalhadores, naquilo que diz respeito ao seu vínculo específico. Além de preservar o padrão de proteção social, essa dimensão de funcionamento da plataforma de integração ainda favorece à transparência para o trabalhador dos termos em que sua força de trabalho é efetivamente contratada (aspecto extremamente negligenciado no funcionamento atual das plataformas gestoras).  

O armazenamento dessas informações será importante para o processamento por inteligência artificial acerca de quais são os direitos, deveres e obrigações específicos de cada trabalhador; trata-se da atribuição de conteúdos sobre o quanto a ser pago em cada uma das parcelas, quando e para quem proceder recolhimentos, atribuição de períodos de férias e repousos remunerados (cujas possibilidades para termos iniciais e finais podem ser parametrizados e deixado à cargo do trabalhador definir o período específico de gozo do instituto), e, mesmo dos intervalos entre e intrajornadas. Feito isso, a gestão pública surge como consequência, realizando de forma totalmente automatizada as distribuições proporcionais das responsabilidades (também parametrizadas), e, depois, repassando as informações em seu resultado final para empresas e trabalhadores, que podem ter acesso ao extrato com as informações do seu histórico de trabalho. Como as informações geradas pelas plataformas gestoras da força de trabalho são instantâneas à realização da atividade, também assim o será a alimentação da plataforma digital de integração de informações sociais e do trabalho, garantindo-se a atualização imediata das informações à disposição das autoridades públicas competentes, das empresas e dos trabalhadores.

O modelo ora proposto permite observar todos os critérios juridicamente estabelecidos como constitutivos da relação de trabalho, respeitando as dinâmicas que vêm se estabelecendo pelas dinâmicas de reconfiguração do trabalho e as necessidades de liberdade dos trabalhadores e das empresas, sem abrir mão do sistema de proteção social e do trabalho. Nesse sentido, e a título de exemplo, é possível i) respeitar a pessoalidade da prestação de serviços, sem exigência da exclusividade, ii) cumprir a limitação da jornada de trabalho, sem restringir os horários de trabalho, iii) garantir a responsabilidade social das empresas, na proporção em que se beneficiam da força de trabalho de cada trabalhador – seja com o seu tempo de trabalho efetivo, seja com o seu tempo de trabalho à disposição, e, ainda iv) recolher de imediato a previdência social e o FGTS, sobre os serviços prestados, na exata proporção em que a atividade é realizada. 

De forma aplicada, exemplifica-se: o Trabalhador poderá se cadastrar nas empresas 1, 2 e 3, que prestam o serviço de transporte de passageiros, quando o requerimento de cadastro já iniciará seu registro em todas as plataformas, assim como na Plataforma Digital de Integração de Informações Sociais e do Trabalho. O deferimento do cadastro e início da atividade ficaria condicionado ao cumprimento dos critérios fixados em lei para atuar profissionalmente na atividade (habilitação, cursos de requalificação, etc.), assim como ao cumprimento dos requisitos estabelecidos em normas internas de cada empresa (revisões do carro). Uma vez iniciada a atividade, esse trabalhador poderá permanecer online na plataforma das três empresas e escolher os dias e horários em que irá trabalhar (se assim comportar os termos de funcionamento das plataformas das empresas). 

Imagine-se que haja uma lei estabelecendo o piso salarial da categoria, de modo que a remuneração desse trabalhador será de R$ 10,00 por hora de trabalho, perfazendo um mínimo de R$ 2.200,00 mensal. Sobre esse valor, devem incidir o pagamento do INSS, do recolhimento do FGTS, comportar o pagamento dos adicionais que a lei reconheça como devido, assim como o cálculo dos repousos remunerados e férias, e, qualquer outra parcela que faça parte dos direitos dos trabalhadores. Considerando que esse trabalhador deseje trabalhar de quarta à domingo, por períodos de hora que somem 14 horas de trabalho por dia, permanecendo online na plataforma das três empresas, caberia a gestão pela Plataforma Digital de Integração de Informações Sociais e do Trabalho dos limites do exercício da vontade do trabalhador às 8 horas diárias, 44 horas semanais, podendo prorrogar por até 2 horas diárias, respeitado o intervalo intrajornada de 1h a  2h, e, quando esses parâmetros fossem ser atingidos, o trabalhador receberia a informação sobre a impossibilidade de continuar ativo e, chegando o prazo máximo ao final, o sistema o colocaria no modo offline.

Para as empresas, por sua vez, isso repercutiria na exata proporção em que ele se manteve à disposição e em tempo de trabalho efetivo. De tal sorte, imaginando que ele se manteve 2 horas em tempo à disposição, sem nenhuma chamada, esse tempo seria dividido igualmente entre as três empresas (⅓ para cada), cujo valor seria calculado conforme parametrizado em lei ou definido em norma interna da empresa (considerando os critérios de integração das fontes do direito). Acrescente-se a possibilidade dele trabalhar efetivamente por 8 horas em trabalho efetivo, das quais 10% do tempo foi para a empresa 1, 20% do tempo foi para a empresa 2, e, 70% do tempo foi para a empresa 3; por conseguinte, as empresas também seriam responsáveis nessas proporções pelo pagamento do trabalho e de todas as verbas dele decorrente, assim como pelo recolhimento das parcelas previdenciárias e fundiárias. Veja-se que é possível fazer uma composição de valores remuneratórios para horas de trabalho efetivas e à disposição, assim como seus impactos sobre todas as verbas devidas, deixando-se a participação de cada empresa, sempre proporcional àquilo que se beneficiou.

Ainda que essa seja uma proposta pensada a partir dos setores mais representativos do trabalho gerenciado via plataforma digital – transporte de passageiros e entregadores delivery – trata-se da proposta de uma ferramenta aplicável a qualquer trabalho que integre modelos de negócio que gerencie a força de trabalho via plataforma digital. Feita a proposta, ela entra em fase de estudos de viabilidade e impactos por equipe multidisciplinar, para então dar início ao desenvolvimento piloto da ferramenta. 

Notas de rodapé

¹ Texto que integra a tese de doutorado defendida em 21 dez.2022, no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Unicamp, sob orientação do Prof. Doutor José Dari Krein, com previsão de depósito da versão final em 19 de fevereiro de 2023,  sob o título “A Disputa Judicial do Trabalho de Transporte de Passageiros e de Entrega Delivery gerenciado via Plataforma Digital”.
² Doutora em Desenvolvimento Econômico (CESIT/IE/Unicamp), integrante da Diretoria da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar das Reconfigurações do Trabalho (REMIR Trabalho) e do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD).
³ Essa construção é resultado dos estímulos intelectuais trazidos por Marilane Teixeira, Ana Cláudia Cardoso, Vanessa Patriota, Mônica Duailibe e José Dari Krein. 

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