Por centenas de anos, as pandemias remodelaram a forma como trabalhamos

Imagem: Pieter Bruegel, o Velho/Museu do Prado

Por Freg J. Stokes | Tradução Natanael Alencar | Jacobin Brasil

“Quando imaginamos os quatro cavaleiros do apocalipse, pensamos na Guerra, na Fome, na Peste e na Morte, agindo juntos para devastar populações humanas. Mas a pandemia atual mostrou que há um quinto membro na tropa maldita: o Trabalho. De Singapura a Paris, a COVID-19 entranhou-se em comunidades de trabalhadores precários e de baixa renda. Condições inseguras de trabalho e o avanço da precarização facilitaram a disseminação do vírus ao redor do mundo. 

Apesar de associarmos essas condições com a última fase do capitalismo, o entrelaçamento da dinâmica entre pandemia, regime de trabalho e lutas de classe existe há sete séculos. São três grandes ciclos: a peste bubônica atravessou uma estaca no coração do feudalismo europeu no século XIV; a invasão européia das Américas, que levaram ondas de pandemia de carona, auxiliaram no parto do capitalismo; e os últimos dois séculos tem presenciado a escalada de uma sequência de pandemias globais, acompanhadas do desmatamento e expansão do capitalismo industrial. Em cada estágio desta saga de sete séculos, as consequências dos conflitos de classe têm sido influenciadas pela forma como os trabalhadores e governantes respondem às pandemias. O desfecho da crise atual não será uma exceção.

Peste bubônica e o fim do feudalismo, 1300 a 1400

Entre 1347 e 1352, a peste bubônica assolou a Europa, lançando a última pá de cal sobre o agonizante sistema feudal. A propagação espetacular da peste na Europa, onde matou no mínimo um terço da população e mais de dois terços em muitas áreas, pode ser atribuída, em parte, à já miserável saúde dos habitantes da região. No feudalismo tardio, a combinação de trabalho agrícola extenuante, fome e guerra entre senhores feudais levou a um quadro de alta incidência de desnutrição entre os camponeses europeus, tornando-os mais suscetíveis ao arrebatamento da praga. O Trabalho, o cavaleiro não consagrado, sempre estava por perto para dar assistência aos seus cúmplices mais famosos  – a Fome, a Guerra e a Peste.

O colapso demográfico subsequente teve consequências inesperadas. Com a repentina escassez de trabalho e abundância de terra, camponeses de muitas regiões se viram em uma posição vantajosa para assumir o poder de seus senhores feudais. Os camponeses se organizaram coletivamente para se libertarem das obrigações feudais, interromperam pagamento aos senhores e escaparam para terras desocupadas, instaurando o que Silvia Federici e outros têm descrito como a “Era de Ouro do proletariado europeu”.  

Embora esse período não deva ser idealizado, as evidências disponíveis sugerem que, ao longo do século seguinte, tanto camponeses quanto trabalhadores urbanos conseguiram demandar maiores salários, barateamento dos alimentos e mais dias de folga para celebrações e festejos, sem falar na queda significativa da distância dos salários de homens e mulheres. Na esteira da peste bubônica, foram os trabalhadores, e não os senhores feudais, que obtiveram o melhor proveito da crise social. 

Em resposta, a classe dominante europeia buscou reconquistar seu domínio sobre o trabalho. Apenas a demografia não determina o resultado desse conflito: essas respostas variam de acordo com o equilíbrio das forças de classe em cada região da Europa. Em 1349, no pico da peste bubônica, a Inglaterra sancionou da “Portaria dos Trabalhadores”. Em um movimento que aqueceria o coração de Boris Johnson, a portaria declarava que os salários não deveriam ultrapassar os valores pré-peste e que todos aqueles abaixo de 60 anos que se recusassem a trabalhar seriam presos.

Essas medidas falharam em razão das revoltas camponesas e foram necessárias reformas adicionais como os cercamentos das terras comuns na Inglaterra para roubar a independência dos pequenos proprietários agrícolas. No mediterrâneo, enquanto a peste bubônica dizimou a população do Chipre, Creta e de outras ilhas produtoras de açúcar, os donos de plantações de cana-de-açucar recorreram à escravidão para garantir o controle do suprimento de trabalho. Portugueses e espanhóis dariam continuidade a esse experimento brutal nas Américas, auxiliados em seus desígnios por um novo ciclo de pestilência. 

Pandemias americanas e o nascimento do capitalismo, 1500 a 1700

A invasão das Américas foi um grande presente que caiu do céu para as classes dominantes europeias em seu revide contra o trabalho. As conquistas ibéricas desencadearam uma série contínua de pandemia sobre as populações nativas, incluindo varíola, sarampo, influenza, disenteria e outras. A população exata das Américas em 1492 ainda é algo discutível, mas as estimativas atuais indicam uma taxa de mortalidade de 90% entre 1492 e 1650, o que representa um total de mortos em algum ponto entre 50 e 90 milhões. A imposição dos regimes de trabalho europeus, que usavam o trabalho de nativos para abrir novas fronteiras para exploração de prata e de açúcar, exacerbou a perda cataclísmica de vida. Mais uma vez, Trabalho, o quinto cavaleiro, ajudou sua cúmplice, a Pestilência.

Essa implosão demográfica criou, para os conquistadores, o mesmo problema que os senhores feudais tiveram de encarar com a peste bubônica: uma população em declínio que lançava uma variedade de métodos para resistir às demandas de trabalho colocadas sobre ela. Vários líderes Guarani nas florestas tropicais da América do Sul se aliaram com missionários jesuítas para publicizar seus conflitos com colonos espanhóis. Em suas denúncias, eles conectaram explicitamente a exploração em seus locais de trabalho à disseminação de doenças em suas comunidades:

Os Karai (Espanhóis) não nos pagam por nossa exaustão. O que nós trazemos (dos locais de trabalho) é fadiga; doença é o que nós trazemos. Dos nossos, com frequência morrem nas estradas, outros ao chegar, outros permanecem doentes para sempre.

Contudo, os missionários costumavam explorar tanto quanto os conquistadores e muitas comunidades indígenas da floresta tropical atlântica, a Amazônia, e por toda parte, escolhiam o isolamento social ao invés da negociação, recuando de áreas colonizadas e minimizando o contato com as forças invasoras. Assim como hoje, as nossas opções são limitadas no que diz respeito à defesa dos direitos trabalhistas durante a pandemia, aquelas comunidades indígenas tiveram que trabalhar com um arco muito limitado de escolhas disponíveis: alguns tentaram negociar suas condições de trabalho enquanto outros se recusaram a trabalhar de qualquer forma.

As pandemias nas Américas também ajudaram a criar as condições para o comércio transatlântico de escravos. Para contornar as dificuldades no controle do trabalho indígena em meio a múltiplos surtos de doenças, as potências europeias começaram a abduzir jovens das costas da África. Os lucros provenientes de novas fronteiras de commodities que usavam o trabalho escravo nas Américas, tais como açúcar, algodão e ouro, foram canalizados de volta para a Europa e ajudaram a dar o pontapé inicial da Revolução Industrial.

Mesmo com debate ainda em aberto sobre como, quando e onde o capitalismo começou, dois fatores comumente mencionados são o estabelecimento do sistema de plantation escravocrata nas Américas e o crescimento de uma classe trabalhadora dependente do mercado na Inglaterra, forçada a ir para as cidades em razão dos cercamentos e outros eventos. Ambos os novos regimes de trabalho surgiram, em parte, a partir das tentativas das classes dominantes de reafirmar seus poderes sobre os trabalhadores rebeldes após as pandemias.

Para tomar as rédeas das forças em seu próprio favor, a classe governantes teve que criar um novo e intrincado sistema de opressão, com a “escravidão velada dos trabalhadores assalariados da Europa” erguida sobre a “escravidão, pura e simples, do Novo Mundo”, como Karl Marx coloca. Ainda que essa seja apenas parte da história no interior de complexidades mais amplas, há um fio cristalino que vai das pandemias na Europa e nas Américas, os subsequentes conflitos em ambas as regiões e o nascimento do capitalismo.

Porém, a disputa entre trabalho e capital não termina aqui. Mesmo nas plantações, trabalhadores escravizados encontraram formas de usar as doenças como armas contra seus opressores. O comércio de escravos também possibilitou que uma nova doença transmitida por mosquitos chegasse às Américas tais como malária e febre amarela, as quais rapidamente se tornaram endêmicas às zonas tropicais do Caribe e do continente. Durante as revoltas de escravos em Santo Domingo, o líder revolucionário Toussaint Louverture usou seu conhecimento sobre essas doenças para vencer seus adversários franceses e ingleses.

Louverture e outros jacobinos negros se valeram da imunidade diferencial da taxa de imunidade entre a população rebelde local e os recém chegados soldados europeus, atraindo seus oponentes para um longo conflito de guerrilha durante a temporada de chuvas. A independência do Haiti em 1804 pode ser atribuída em grande parte ao sucesso desse arsenal biológico. O medo de que levantes semelhantes ao do Haiti se espalhassem para outros lugares passou a desempenhar um papel importante na abolição da escravidão no século dezenove. Infelizmente, essa foi apenas uma vitória parcial para as forças globais de trabalho. Durante o mesmo período, as potências europeias embarcaram em uma nova onda de colonização na Ásia e na África, desencadeando novas pandemias no processo.

Pandemias globais, florestas e fazendas, 1800 a 2000 

Ao longo dos dois últimos séculos, o capitalismo movido por combustíveis fósseis tem acelerado a expansão de fronteiras de commodities na direção de florestas tropicais, bem como do crescimento da agricultura de escala industrial — desenvolvimento duplo que abre uma caixa de Pandora da pestilência. Por sua vez, a rede de comércio internacional tem ajudado na transmissão dessas doenças entre populações exploradas e exauridas ao redor do mundo.

Segundo Mike Davis, esse é um processo que tem se acelerado desde a Segunda Guerra Mundial, mas precedentes para a atual crise também podem ser encontrados nas ondas de pandemias instigadas pelo imperialismo do século XIX na Ásia e na África. A invasão britânica da Índia levou à transmissão da cólera pelo planeta depois de 1817, através de redes navais e comerciais do Reino Unido. É assim que uma doença que se originou nos campos de arroz nos deltas do Ganges propiciou um pano de fundo para o romance de Gabriel Garcia Marquez, Amor nos Tempos de Cólera, que se desenrola na costa da Colômbia.

Forças similares participaram da disseminação de um nova manifestação de peste bubônica a partir de Yunnan, na China, onde a dinastia Qing abriu uma fronteira de mineração de cobre. Nas densas florestas tropicais da província, Yersinia Pestis, a bactéria que causa a praga, circulava entre populações de roedores locais. Por volta de 1855, a doença infectou os mineiros invasores e então se espalhou para a costa e para o exterior, seguindo as rotas do comércio de ópio estabelecida pelos ingleses, que tentavam desmantelar o comércio chinês com a venda ilegal de drogas aos trabalhadores locais. A “terceira praga”, como ficou conhecida, matou mais de 12 milhões de pessoas e foi considerada ativa pela Organização Mundial de Saúde (OMS) até 1960.

No século XX, o avanço de fronteiras de commodities em direção às florestas tropicais da África central foi um vetor chave para a emergência de novas doenças, sendo o HIV/AIDS de longe o exemplo mais devastador. A corrida europeia pela África inaugurou a disparada da extração de borracha e marfim, com monarcas distantes como o Rei Leopoldo da Bélgica e o Kaiser Germano arrancando excedentes a partir da atividade não remunerada de trabalhadores locais, ao custo de milhões de vidas.

Estudos recentes sugerem que o consumo de carne de caça, provavelmente no Congo ou no Camarões Alemão, ocasionou a transmissão do Vírus da Imunodeficiência Símia (SIV, no original em inglês) de chimpanzés para humanos, resultando no aparecimento do HIV-1. É possível que essa carne de caça tenha sido consumida por trabalhadores em expedições de trabalho forçado, com o vírus viajando, consequentemente, por balsas e trens ao longo das rotas de exportação de borracha e mármore. Da Kinshasa de 1920, no Congo Bélgico, o vírus saltou para o Haiti depois da Segunda Guerra Mundial antes de finalmente ser identificado nos Estados Unidos na década de 1980. 

Nas décadas seguintes, o avanço contínuo da pesca, mineração e de outras fronteiras das commodities na África central ajudou na transferência, de animais para humanos, de uma lista crescente de patógenos, incluindo os vírus da Zika, Chikungunya, Ebola e Marbug. Simultaneamente, a criação industrial de um grande número de animais propiciou um terreno fértil para os vírus da influenza, com múltiplos surtos de gripe entre 1957 e 2010 impulsionados pela interação entre humanos, suínos e pássaros.

Embora a origem da pandemia de gripe “espanhola” de 1918-19 ainda seja uma discussão sem consenso, é possível que também tenha sido transmitida aos humanos por animais do setor pecuário e então se espalhou entre as fileiras de jovens que desempenhavam trabalho militar para os seus líderes europeus antes de infligir um massacre ainda maior nas populações da Índia e do Irã desgastadas pela ocupação britânica. Como sempre, regimes de trabalho brutalizantes deram sua contribuição junto à pestilência, guerra e fome. Não foi por acaso que esse período testemunhou também uma variedade impressionante de greves e protestos, levados adiante por toda sorte de grupos, desde ativistas em Amritsar à anarquistas em Buenos Aires e costureiras em Nova York.

As origens da COVID-19 também são incertas, mas uma hipótese frequentemente mencionada é que se disseminou de morcegos para humanos através de pangolins mantidos em cativeiro. Conforme Andy Liu argumenta, o consumo em larga escala de escamas e da carne de pangolins na China é um fenômeno recente, um espetáculo gastronômico que serve como um marcador de privilégios em meio a um cenário de boom econômico. O quinto cavaleiro infunde competição, busca de status e destruição de solidariedade de classe ao prover luxos cada vez mais extravagantes para os bem remunerados. Assim como o apetite mundial por porco e por bife, o consumo de animais selvagens exóticos na China foi impelido pela expansão frenética da economia mundial capitalista. E o crescimento sem freios dessas fronteiras de commodities certamente trará muitas outras pragas sobre nós.

Carece de verdade e embasamento a fala do primeiro ministro australiano, Scott Morrison, que afirmou que a atual pandemia é um “evento que ocorre uma vez a cada 100 anos”. Pelo contrário, os últimos relatórios científicos preveem que se o desmatamento continuar no ritmo vigente, vamos amargurar de cinco a seis pandemias por ano. As redes de suprimento de commodities impulsionam esse processo em cada um de seus estágios. Os porcos na China e na Europa que podem estar incubando a próxima pandemia de influenza são alimentados com grãos de soja colhidos em plantações que estão liquidando savanas e florestas tropicais na América do Sul. Essas são, precisamente, as áreas em que novos agentes infecciosos, tais como o vírus Machupo (um arenavírus que se hospeda em roedores na Amazônia), emergiram nos últimos setenta anos. A destruição da floresta Amazônica, por sua vez, aceleraria o aquecimento global, levando à intensificação do derretimento do gelo Ártico, onde o antraz e outras doenças há muito adormecidas já estão sendo liberadas em razão do degelo de carcaças de cervos.

Entretanto, existem medidas que podemos tomar para evitar o cenário desse pesadelo. Tenho a convicção de que precisamos destruir a falsa divisão entre campanhas para segurança do trabalho, direitos de propriedade às populações originárias e conservação ambiental. Não devemos defender a biodiversidade apenas porque achamos macacos e pangolins fofos: devemos defendê-la porque não queremos que macacos e pangolins nos infectem com novos vírus terríveis. A melhor forma de fazer isso é reduzir o desmatamento e o comércio ilegal de animais selvagens através da implementação e manutenção de reservas ecológicas bem protegidas e de territórios indígenas.

É do interesse da saúde do trabalhador urbano apoiar a luta dos povos indígenas que vivem em florestas tropicais e outras regiões biodiversas, pois trata-se de prevenir que mais madeireiros e caçadores ilegais invadam essas áreas. Isso significa apoiar grupos indígenas que ainda resistem à incorporação aos regimes de extração capitalistas, que se recusam a trabalhar para o quinto cavaleiro. As greves por causa da COVID em depósitos urbanos e o combate de indígenas contra a mineração na Amazônia são dois lados da mesma luta pela saúde do trabalhador.

Também podemos construir solidariedade ao reconhecer que os últimos sete séculos de pandemias e conflitos trabalhistas afetaram tanto os trabalhadores pagos quanto os não-pagos, no Norte e no Sul globais. Cada onda de doença explorou as fraquezas infligidas pelo regime de trabalho correspondente à época, mas as crises resultantes também criaram as oportunidades de derrubar esses regimes.

Como observa Naomi Klein, os tecnocratas do governo, aliados com bilionários do Vale do Silício, estão usando a COVID-19 para inaugurar um “new deal das telas”, cobrindo as rachaduras do atual sistema ao forçar estudantes e empregados a aprender e trabalhar de casa, de plantão e sob vigilância permanente. Se o cavaleiro da Peste não atacar você nas ruas, o cavaleiro do Trabalho vai te pisotear sem que você tenha sequer saído da porta de casa.

Para reagir e inventar nossas próprias alternativas a esse romance cyberpunk medíocre, devemos atentar para as lutas do passado em múltiplos continentes. Podemos nos inspirar nos camponeses medievais da Inglaterra, nas comunidades Guarani do Paraguai, nos revolucionários do Haiti e nas costureiras de Nova York — em como eles lutaram tanto pelo direito de um trabalho melhor remunerado quanto pelo direito de não trabalhar de forma alguma em meio a surtos de doenças devastadoras.

A atual onda global de greves de trabalhadores que tentam proteger sua saúde em meio à pandemia do coronavírus, as lutas dos povos indígenas no Brasil para instalar postos de controle perto de suas comunidades para manter o isolamento social, juntamente com as demandas internacionais para desmercantilizar a assistência aos idosos, são a continuação moderna desta tradição global. Em vez de esquecer essas gerações passadas, podemos invocar a força das suas vitórias ao entrar em nossa própria batalha contra os cinco cavaleiros do apocalipse capitalista.”

Clique aqui e leia o artigo

Fonte: Jacobin Brasil

Data original da publicação: 30/03/2021

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »