Professora da UFF comenta a repercussão do Projeto de Lei que visa regulamentar o trabalho de transporte por aplicativo

Imagem: Uber/Divulgação

Por Flavia Manuella Uchoa de Oliveira | NUPST UFF

O número de plataformas digitais de trabalho quintuplicou em todo mundo na última década, segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2021. Em 2022, no Brasil, 1,5 milhão de pessoas trabalhavam para aplicativos, e, desse número, mais de 700 mil eram motoristas de aplicativo, segundo o IBGE. Esse tipo de ocupação cresceu 979% no Brasil, entre 2016 e 2021, principalmente pela alta taxa de desemprego

Em maio de 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em conjunto com representantes dos trabalhadores, das empresas e do Governo Federal, começou a debater a garantia de direitos mínimos aos trabalhadores de aplicativos. Como resultado dessas discussões, o presidente Lula assinou, em março de 2024, a proposta de Projeto de Lei que visa a regulamentar o trabalho de transporte por essas plataformas. O documento abrange quatro eixos principais (segurança e saúde, remuneração, previdência e transparência) e traz várias mudanças ao modelo atual desse tipo de trabalho: estabelecimento de carga horária máxima de trabalho, remuneração mínima por hora trabalhada, contribuição ao INSS, entre outros.

A proposta, no entanto, divide as opiniões: enquanto um polo acredita que deve haver o vínculo empregatício e benefícios trabalhistas, o outro defende que o trabalho não deve ser regulamentado pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A regulamentação defende que a liberdade para trabalhar em plataformas concorrentes permaneça, assim como a flexibilidade do trabalhador fazer seus próprios horários. Inicialmente, o PL cobre apenas os motoristas de aplicativo, mas há intenção de também regulamentar o trabalho dos entregadores. Nos próximos meses, serão feitas reuniões com o iFood e o Rappi para iniciar negociações.

Para comentar a proposta de regulamentação e seus desdobramentos para os trabalhadores de aplicativos, convidamos a professora e psicóloga Flavia Manuella Uchoa de Oliveira, que é também coordenadora no Núcleo de Estudos em Psicologia Social do Trabalho (NUPST/UFF):

O que constitui o trabalho por aplicativos e quem são esses trabalhadores?

De forma descritiva, o trabalho por aplicativos refere-se a uma forma de trabalho mediada por plataformas digitais, criadas por empresas de tecnologias da informação e comunicação, em que os trabalhadores oferecem serviços e conectam-se com clientes ou usuários. Não há regulação, nem regulamentação, sobre esse trabalho: sua jornada, sobre os ganhos advindos das atividades, nem da relação entre empresas mediadoras, responsáveis pelos aplicativos, com os seus trabalhadores. Essa modalidade de trabalho tem sido amplamente estudada pela sua íntima relação com a precarização do trabalho, a falta de proteção social, o desmantelamento dos direitos trabalhistas, a pobreza e a desigualdade.

Quem são os trabalhadores por aplicativo?

Embora muitos de nós utilizemos os aplicativos para trabalho no dia-a-dia, a representação mais imediata (e numerosa) de quem são esses trabalhadores são os motoristas da Uber e os entregadores da iFood. As pesquisas mais recentes, inclusive a publicada pelo IBGE no fim do ano passado sobre o módulo Teletrabalho e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, mostram o peso estatístico dessa representação: são homens, pretos e pardos, jovens adultos, moradores das periferias dos centros urbanos, com baixa escolaridade que têm suas trajetórias de trabalho atreladas à informalidade. Na pesquisa publicada em parte no artigo “Trabalho e viração em empresas-aplicativo: um panorama da uberização na cidade de São Paulo durante a pandemia” discutimos como esses trabalhadores são jovens que estão em busca de criar renda e responder à urgência de sobreviver. A dita flexibilidade de horário – que não se iguala a menor tempo de trabalho e que, na realidade concreta, é gerida pelos algoritmos das empresas – e o dito potencial de conseguir mais renda do que um salário fixo também entram nesse cenário do trabalho por aplicativo para esses jovens.

O que significa a “uberização” do trabalho e por que o número desse tipo de trabalhador vem crescendo muito nos últimos anos?

Na minha perspectiva, a “uberização” do trabalho refere-se à tendência de organizar uma multidão de trabalhadores, uma massa marginalizada desde a fundação do mercado de trabalho brasileiro, por meio das tecnologias do controle do trabalho, dos tempos e movimentos dos trabalhadores, e do controle das informações geradas nas trocas entre consumidores e trabalhadores, embutidas nas plataformas digitais. Esse termo ganhou destaque na América Latina, em especial no Brasil, por fazer referência ao trabalho sob demanda que movimenta multidões que estavam colocadas na informalidade (ou sempre muito próxima dela). Diferentemente do termo “plataformização do trabalho”, a uberização remete à precariedade do mercado de trabalho brasileiro e latinoamericano, e à precarização do trabalho a partir de modelos de negócio como os da empresa de transporte Uber.

Em que categoria profissional se enquadra esse segmento de trabalhadores?

Na realidade, essa “nova” categoria de trabalhadores tem lastro na história da heterogeneidade do mercado de trabalho brasileiro, onde expressivas parcelas da população vão e voltam entre a carteira assinada e o trabalho por conta própria. Os taxistas e os motoboys são exemplos de categorias que circulam nas margens, são categorias que surgiram na expansão das cidades e sempre estiveram em espaços frágeis de regulação e de seguridade social. O que quero dizer é que há permanência de “categorias” que são incorporadas por estas tecnologias “disruptivas”. A permanência é a massa marginalizada no Brasil, uma “sociedade da viração” por excelência, em que há aderência massiva dos trabalhadores aos aplicativos. Esses aplicativos, embora prometam, não alteram a realidade de trabalho precária; do contrário, tomam conta dessa realidade, intensificando-a. A uberização é uma atualização da gestão do trabalho e de “nem tão novas” categorias a partir dessas tecnologias digitais da informação e da comunicação.

O que é o Projeto de Lei dos aplicativos? Por que e com qual intuito tem se discutido a regulamentação da categoria de trabalhadores de aplicativos?

O Projeto de Lei Complementar, que ficou recentemente conhecido como “PL dos Aplicativos”, é uma proposta legislativa que visa regulamentar a atividade dos motoristas por aplicativos. Não faz referência, nesse primeiro momento, a entregadores, por exemplo. Essa regulamentação tem sido duramente criticada por nós que nos dedicamos ao estudo do trabalho no Brasil. Essas críticas estão inseridas em um contexto mais amplo de desmantelamento das relações trabalhistas no nosso país, que tem como o principal marco a Reforma Trabalhista de 2017, sob o governo Temer.

O PL dos aplicativos busca regular a partir da precariedade. O projeto coloca o subemprego como a única alternativa para esses trabalhadores. A regulação é feita “por baixo”, sem que se discuta as reais condições de trabalho impostas aos trabalhadores, nem a seguridade social dessa multidão. Você cria essas figuras para negar o vínculo de emprego (e todas as garantias que viriam com ele), como foi o caso do MEI (Microempreendedor Individual), e altera por completo a garantia dos direitos sociais, sem que efetivamente se tenha uma nova assembleia constituinte.

Quais são as principais mudanças para os trabalhadores caso o Projeto de Lei seja aprovado?

Como mencionei, o PL dos aplicativos pode ser visto como uma regulamentação “por baixo”, que reconhece o subemprego para esses motoristas. Lá estão incluídas disposições sobre benefícios mínimos, como seguro de saúde e aposentadoria, o que, mais uma vez,  reconhece uma proteção social extremamente frágil para os trabalhadores. Compreendo que o PL contribui para uma maior desregulamentação do trabalho, enfraquecendo ainda mais os direitos trabalhistas e reconhecendo práticas abusivas por parte das empresas como formas legais de superexploração. O projeto perpetua a precariedade para as massas marginalizadas e tem o potencial de aprofundar a precarização das condições de trabalho para todos trabalhadores por aplicativos, submetendo-os a maior vulnerabilidade e baixíssima proteção social.

Nesse sentido, o PL  reflete uma tendência mais ampla de desconstitucionalização do trabalho, onde os direitos trabalhistas garantidos pela Constituição estão sendo progressivamente retirados do horizonte, representando uma ameaça à proteção social dos trabalhadores. As mudanças propostas contribuem para uma fragmentação ainda maior da legislação trabalhista, desfazendo conquistas históricas e deixando os trabalhadores mais vulneráveis. Por isso, é fundamental que essa questão seja colocada no debate público, garantindo que possamos pensar o mercado de trabalho brasileiro como um todo.

De acordo com a nova classificação determinada pelo Projeto de Lei, quem será considerado o “trabalhador autônomo por plataforma”?

O PL, como redigido em março de 2024, indica que o “trabalhador autônomo por plataforma” é “trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de empresa operadora de aplicativo, será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo por plataforma”. Está no no artigo 3 do projeto. Nesse artigo, o trabalhador será caracterizado como alguém que presta serviço por meio de plataforma digital e que tem a possibilidade de trabalhar para mais de uma empresa.

Essa nova categoria que a legislação pretende criar pode ser expandida para outras categorias, como uma forma de burlar a legislação trabalhista (a exemplo do MEI, que facilitou a “pejotização” do empregado)?

A criação dessa nova figura de “trabalhador autônomo por plataforma” abre precedentes para a expansão dessa classificação para outros trabalhadores por aplicativos.E sim, é uma forma de deturpar a legislação trabalhista. Foi assim com o MEI, mencionado anteriormente, que facilitou as fraudes no vínculo de emprego. Até hoje, estava sendo pedida urgência na votação do texto, impedindo maior movimentação e discussão pública sobre essa nova figura jurídica.

Quais impactos os trabalhadores de aplicativos teriam em seus ganhos nesse outro modelo?

O PL estabelece um valor mínimo para o pagamento dos trabalhadores e não um teto. Em teoria, esse valor mínimo, que inclui uma porcentagem do valor total da corrida para o trabalhador, destina-se a cobrir despesas como internet, manutenção do veículo e seguro. A definição de um valor mínimo poderia até oferecer uma base de remuneração estável para os trabalhadores, mas é importante questionar se esse mínimo proporciona uma renda digna para eles

Recentemente, um jovem entregador do Ifood foi baleado por um PM do Rio de Janeiro por cumprir a orientação do aplicativo e não subir para realizar a entrega. Como a nova legislação atua em casos como esse? Há algum artigo da PL que aborde questões relacionadas à segurança dos trabalhadores?

Questões relacionadas à saúde e segurança dos trabalhadores contam no PL porque tem de constar. É o mínimo numa legislação, já que que o Brasil é signatário de convenções internacionais, como as da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo, em relação à busca pela eliminação da violência da discriminação no trabalho. No artigo 5 do PL como redigido no último março, há disposições que exigem que as plataformas ofereçam medidas de proteção para os trabalhadores e usuários contra o mau uso da plataforma. Isso pode incluir políticas de segurança, mecanismos de denúncia e suporte em casos de incidentes. Já o artigo 7 estabelece diretrizes gerais para a eliminação da violência e discriminação no ambiente de trabalho.

Além disso, as empresas podem ser responsabilizadas legalmente se não cumprirem essas obrigações, sujeitas a penalidades e sanções. Em relação às orientações específicas dadas aos entregadores, como não subir em condomínios ou não entrar em determinadas áreas, essas medidas estão em discussão também no nível municipal e estadual, por isso, sua aplicação e alcance podem variar.

Segundo pesquisas realizadas pelo Ifood e Uber, há um argumento de que há uma aversão da categoria à CLT. Você concorda?

Bom, não se pode afirmar categoricamente que há aversão dos trabalhadores à CLT.

Se a pergunta está baseada na pesquisa encomendada pelas empresas Uber e iFood, e realizada pelo Datafolha, no início de 2023. É preciso cautela. Primeiro, não há relação direta com o atual projeto, isto é, não se pergunta sobre este PL aos trabalhadores. Portanto, não pode ser visto como contra o atual PLC, mas sim contra uma cenário de trabalho em que se tem “[…] vínculo de emprego para acesso aos benefícios trabalhistas previstos na CLT, mas as plataformas definem jornada e remuneração e os trabalhadores não podem recusar demandas em tempo real ou decidir quando dirigir/ fazer entregas sem autorização sob pena de demissão ou sanções”, pois é isso que pergunta a pesquisa. Ou seja, essa pesquisa apresenta aos trabalhadores opções de “cenários” de trabalho. Um cenário A em que o trabalhador tem mais garantias de “autonomia e liberdade” (não explicadas na pergunta) e um que a empresa exige e controla o trabalhador, para utilizar os verbos que eles utilizam no enunciado da pergunta.

No entanto, se usarmos essa hipótese da aversão como plausível, podemos pensar  em alguns fatores que poderiam explicá-la. Uma dessas possíveis explicações, que tenho buscado investigar, é a de como o “espectro do cativeiro” assola o mercado de trabalho em nossa região do mundo até os dias de hoje. Nossas relações de emprego reproduzem violências e hierarquias brutais, que estão na fundação do mercado de trabalho livre e na sua convivência com o sistema de escravização de pessoas. Por isso, em alguma medida, seria persistente a ideia de que “trabalhar para alguém” é uma das formas “mais aviltadas de trabalho”, para lembrar o que Lúcio Kowarick indicou no seu ensaio “Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil”. A perspectiva de criar renda e de ter alguma autonomia e controle sobre o trabalho, de ser reconhecido como um “empreendedor” – o que é prometido (mas não cumprido) pelo trabalho “por conta própria” nos aplicativos – faz sentido para grandes parcelas da nossa população. Essas parcelas já conhecem uma vida de “viração”, de condições precárias e de profunda insegurança. Na verdade, o que pode parecer mais distante é justamente o trabalho digno, sem a reprodução de violências, no emprego, com a carteira assinada.

Existe a promoção de um discurso de que os trabalhadores de aplicativo seriam empreendedores por trabalharem para si. Até que ponto esse discurso é real?

O empreendedorismo é uma “ferramenta” muito produtiva com a qual se busca reorganizar a força de trabalho desde os anos 1980. Esse foi propriamente meu tema na pesquisa de doutorado. Agora, se o discurso corresponde materialmente à realidade do trabalho, às condições objetivas de trabalho, aí já é outra história. Não há na literatura clássica dos Estudos do Empreendedorismo como se possa justificar que esses trabalhadores são empreendedores. Não há como igualar um trabalhador que busca dar resposta à urgência da sobrevivência com o empreendedor nos termos capitalistas. É perverso que se chamem as multidões de trabalhadores por aplicativo de empreendedores. Esse discurso é um movimento de utilização do signo do empreendedor capitalista para gerir a classe trabalhadora. Trabalhadores que já tinham de fazer por si mesmos, que já estavam colocados em situações degradantes, humilhantes no trabalho, mesmo no emprego. O empreendedorismo é um discurso vazio que cabe muita coisa para tentar desmantelar qualquer questionamento sobre a superexploração no trabalho.

Por isso, é importante refletirmos como sociedade o que definiremos como um horizonte digno de seguridade social e trabalhista. Pensar os futuros do trabalho e considerar outras alternativas que priorizem a dignidade dos trabalhadores. Isso envolve não apenas questionar as narrativas dominantes sobre empreendedorismo e autonomia, mas lutar por políticas que garantam direitos sociais e promovam uma distribuição mais justa da riqueza e do poder econômico. O mais importante é que nós comecemos a agir hoje para transformar essa realidade de superexploração do trabalho, por exemplo, exigindo uma proteção robusta para os trabalhadores por aplicativos. Talvez, essa exigência seja uma das principais tarefas do nosso tempo e teremos que lidar com os desdobramentos dessa transformação.

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Flavia Manuella Uchoa de Oliveira é professora adjunta do Departamento de Administração e no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense. Subcoordenadora do curso de MBA em Gestão de Recursos Humanos da UFF. Doutora em Psicologia Social do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu estudos pós-doutorais pela Universidade de Cardiff. É Editora Adjunta dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho; coordenadora no Núcleo de Estudos em Psicologia Social do Trabalho (NUPST); pesquisadora colaboradora do Laboratório de Estudos em Ação Clínica e Saúde da Universidade de Pernambuco (LACS-UPE); integrante do Laboratório de Estudos do Trabalho, Movimentos Sociais e Políticas Sociais (TraMPos) do Instituto de Psicologia da USP.

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Por Flavia Manuella Uchoa de Oliveira | NUPST UFF
Data original de publicação: 10/04/2024

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