Teletrabalho se consolida em gangorra emocional trazida pela pandemia

Imagem: Rawpixel

Por Vitor Nuzzi | Rede Brasil Atual

“De maneira geral estou trabalhando o mesmo número de horas, só que mais produtivo. O problema é que trabalho no meu quarto, então parece que nunca saio de fato do trabalho”, conta a engenheira ambiental V., de 27 anos, de Curitiba. “A ansiedade aumentou, com certeza. O trabalho tem muita pressão e a convivência com o time trazia mais leveza. O meu trabalho em si e desempenho não foram afetados, pelo contrário, estou mais produtiva. Porém sinto que minha saúde mental piorou.”

Para o professor universitário D., 42 anos, a duração do expediente não mudou tanto, mas a intensidade aumentou. No teletrabalho, além das aulas (virtuais), que não foram interrompidas, e das pesquisas para orientar, é preciso acompanhar o ritmo – acelerado – da filha de 4 anos. Ele se reveza com a mulher, também em home office, para cuidar da menina, da casa e trabalhar.

“A intensidade da minha jornada aumentou muito. Tem que ser uma jornada muito produtiva. Eu me sinto como um piloto de Fórmula Indy. Me sinto trabalhando mais porque eu nunca paro.” O depoimento do professor, que atua em uma instituição privada em São Paulo, foi interrompido por um chamado da filha.

O desafio do equilíbrio: Há mais de 8 milhões de pessoas, segundo o IBGE, trabalhando no sistema de home office ou teletrabalho. Uma tendência que já era crescente e irá se consolidar mesmo depois da pandemia. Neste momento, o desafio é se equilibrar – profissional, física e emocionalmente – entre o trabalho, questões domésticas e familiares, o impedimento de sair, a vida fora do lugar.

Mais que o modo de trabalho em si, a médica Maria Maeno aponta justamente a intensidade da jornada e as obrigações impostas em quantidade cada vez maior. “O mais importante é que as pessoas vão continuar tendo de atingir metas e entregar produtos em tempos muitos exíguos”, afirma.

Assim, todo mundo irá trabalhar “no limite superior”, como diz a médica e pesquisadora em saúde do trabalho. É a busca do aumento da produtividade aliada à avaliação de desempenho. “Sabem que as metas não vão ser atingidas, mas todo mundo vai tentar. Saber que isso pode resultar em uma avaliação ruim é uma pressão constante. O ponto crucial é o sistema de metas e os prazos frequentemente exíguos para as entregas de serviços.”

Regulamentação e brechas:home office, ou teletrabalho, foi regulamentado pela “reforma” trabalhista aprovada em 2017. A Lei 13.467 define a modalidade como “a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo”.

O comparecimento eventual ao trabalho, para alguma tarefa específica, não descaracteriza o regime. “Pela CLT, não pode haver distinção do trabalho realizado fora ou dentro das dependências da empresa, ou seja, não pode haver distinção de remuneração ou recebimento de benefícios, como plano de saúde e vale-alimentação”, observa Vitor Monaquezi Fernandes, sócio de Crivelli Advogados.

Segundo ele, o teletrabalho exige um aditivo ao contrato. “Neste pacto, deverá constar quais serão as atividades que serão realizadas pelo trabalhador. Deverá também constar com serão feitos os reembolsos ao empregado, caso ele tenha alguma despesa com equipamentos. Pois, apesar de estar trabalhando de casa, cabe à empresa fornecer todo o equipamento necessário.”

De aproximadamente 2.600 denúncias relativas à pandemia, o Ministério Público do Trabalho (MPT) recebeu 147 sobre teletrabalho. A maioria (139) refere-se a empresas que, mesmo podendo, não adotaram a modalidade. Em poucos casos, o empregador não quis ressarcir custos. A Procuradoria teve ainda um caso em que a empresa pressionou os funcionários para manter a câmera ligada durante todo o horário de expediente.

Carga horária cresce: O problema, para o advogado, são dois artigos da CLT. O primeiro (62) estabelece que empregados em regime de teletrabalho estão isentos de ter a sua jornada controlada e, consequentemente, não haverá recebimento de horas extras ou a fiscalização do intervalo para almoço. “Isso tem acarretado, na prática, um aumento significativo da carga horária de trabalho. Na minha opinião, isto não é nem um pouco razoável, pois com a facilidade de acesso à tecnologia é perfeitamente possível a empresa controlar os horários dos funcionários”, avalia.

A situação tem levado a atualizações no Direito do Trabalho, lembra Vitor Fernandes. Em alguns lugares, como na França, já existe o chamado “direito à desconexão”. A lei entrou em vigor em 2017. Recentemente, a Telefônica assinou acordo nesse sentido, após negociação com a UNI Global Union, entidade sindical que abrange 20 milhões de trabalhadores em 150 países.

O diretor regional da UNI Américas, André Rodrigues, lembra que a entidade assinou seu primeiro acordo, chamado marco global, justamente com a Telefônica, em 2001, formando uma rede sindical internacional. “A gente pressionou muito para que houvesse uma mesa permanente de negociação global. E utiliza esse marco global para facilitar o diálogo entre o sindicato local e a empresa. Quando é necessário e quando o sindicato solicita, a gente participa diretamente”, relata.

Lei e acordo sobre desconexão: No ano passado, o direito à desconexão entrou na pauta a ser discutida com a Telefônica. Segundo André, o problema “era bastante recorrente e grave”, em várias empresas. “Uma das coisas que eles (chefes) mais reclamam é as metas que eles têm e devem impor aos subordinados. Então, começamos a fazer uma campanha mundial. E a Telefônica aceitou fazer essa conversa. E assinar como um anexo a esse acordo marco global.” A discussão envolve aproximadamente 50 mil trabalhadores.

Em fevereiro de 2019, com o acordo assinado, os sindicatos locais iniciaram seus processos de negociação, já concluídos na Espanha, na Argentina e no Chile – e em andamento no Brasil e no Peru. Basicamente, a empresa reconhece o direito de o funcionário não responder nenhuma mensagem ou e-mail de trabalho se estiver fora de sua jornada, em horário de descanso. Caso haja necessidade, deve haver um acordo, com notificação prévia à representação sindical. Na Argentina conta André, o acordo incluiu cláusula pela qual a empresa não pode, sob nenhuma hipótese, punir o funcionário ou impedir seu crescimento profissional pelo fato de não responder mensagens.

Regras para o retorno: Para este ano, previa-se a assinatura de outro acordo, justamente relativo ao teletrabalho, mas a pandemia atrapalhou o andamento das negociações. Em maio, firmou-se outro anexo ao marco global, estabelecendo normas gerais para o retorno ao trabalho: disposição no espaço, regras de saúde, segurança, exames, testes.

Por falar em acordo, o outro artigo que o advogado Vitor Fernandes considera preocupante (75) determina que o empregador deve instruir os empregados, “de maneira expressa e ostensiva”, quanto às precauções a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho.

“Veja que a lei diz deverá instruir, mas não fiscalizar”, observa. “Como a CLT trata do assunto de uma maneira muito genérica, o caminho tem sido os sindicatos buscarem a regulamentação mais específica em seus acordos e convenções coletivas.” Dessa forma, conseguem estabelecer normas que garantem mais proteção. “Estão sendo pactuadas regras como proibição de envio de mensagens em celular particular e de envio de e-mail/mensagens após determinado horário.”

Transformar facilidade em organização: A médica Maria Maeno também defende a pactuação. “Muitos bancários, por exemplo, estão bancando a banda larga, tiveram que providenciar um celular novo para o teletrabalho. Isso, no futuro, as empresas podem prover. Para a empresa, significa um gasto, mas não é algo crucial. O problema não está relacionado à informatização, mas ao sistema como um todo. Os avanços tecnológicos têm sido úteis nesta pandemia para diminuir o isolamento. Mas, ao mesmo tempo, são utilizadas para manter o trabalho o tempo todo na vida das pessoas, com intensificação do ritmo. A gente tem de usar essas inovações tecnológicas para a organização de pessoas e movimentos para alcançar condições de vida e trabalho melhores.”

Para o juiz do Trabalho Luciano Coelho, da 9ª Região, no Paraná, a questão da jornada exigirá abordagem diferente. “Claro que há risco para o empregado de acabar se conectando excessivamente. E também há risco para o empregador de o empregado dizer que está conectado e estar fazendo outra coisa. Acho que a boa fé das partes é a chave para o sucesso do sistema de home office.”

O psicólogo Cristiano Nabuco fala em “reinvenção”. O desafio, segundo ele, é como exercitar o direito à desconexão em um mundo tão competitivo. “Do jeito que estávamos vivendo não será mais possível. Estamos hoje de frente para o espelho, olhando para a nossa realidade como nunca olhamos.”

Desde março em quarentena, a engenheira V. conta que o trabalho em si não mudou muito, mas todas as reuniões passaram a ser virtuais. Nessa nova situação, houve treinamento para melhorar a comunicação. “O mais difícil foi aprender a fazer tudo on-line, e não ter mais a possibilidade de ir na mesa de um colega pedir ajuda.”

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Fonte: RBA

Data original da publicação: 02/08/2020

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