Trabalho infantil: a importância de sua erradicação para a efetividade constitucional

Somos desafiados a colaborar para a chegada de um novo tempo

Por Kátia Magalhães Arruda* e Maria Zuíla Lima Dutra**

O trabalho de crianças tem sido objeto de intensos debates nos últimos tempos, a despeito da previsão contida no artigo 227 da Constituição Federal ser muito clara, ao prescrever como dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar a criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito a vida, a saúde, a alimentação, a educação, ao lazer, a profissionalização, a cultura, a dignidade, o respeito, a liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Infelizmente, a prática de exploração das crianças pelo trabalho precoce é constatada ao longo da história do Brasil, sendo uma realidade desde a colonização, mantendo-se como herança da escravidão.

Estatísticas demonstram que crianças e adolescentes trabalham nas feiras, nos sinais de trânsito, atividades extrativas, na pesca, nas carvoarias, nas plantações, nas madeireiras, nos serviços domésticos, nas olarias, nas oficinas, nos lixões e em diversas outras situações de reconhecida insalubridade, sendo privadas do direito de brincar e estudar.

Polêmicas à parte, é incontroverso que a Constituição da República proíbe o trabalho de menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Logo o artigo 7º, paragrafo XXXIII, traz dois preceitos que não podem ser confundidos: o da ilegalidade do trabalho infantil e o da legalidade da aprendizagem.

Ao contrário do que poderia ser, a aprendizagem de jovens ainda é muito débil, embora haja obrigação de que, no mínimo, 5% dos empregados de uma empresa sejam aprendizes, somente 40% desse percentual esta sendo cumprido. O trabalho dos aprendizes, vinculado aos requisitos da CLT, não se configura, por óbvio, na definição e nas mazelas de trabalho infantil. No entanto, existem mais crianças e adolescentes sendo exploradas ilicitamente do que o número de aprendizes cujos direitos estão resguardados na Constituição e normas infraconstitucionais.

Se todo o percentual de aprendizagem fosse efetivamente cumprido, teríamos uma redução em torno de 60% do trabalho infantil, pois parte considerável desses meninos e meninas poderiam ter um contrato de aprendizagem legal. Como explicar, portanto, a atual apologia ao trabalho infantil, senão pelo preconceito e discriminação contra as crianças pobres?

As pessoas de classe média, em sua maioria, defendem que seus filhos façam graduação e pós-graduação, mas, em sentido contrário, defendem que os filhos dos pobres trabalhem fora da idade legal e sem preocupação se isso vai lhes causar defasagem escolar ou sub emprego no futuro. Dados mostram que mais de 70% dos brasileiros resgatados do trabalho escravo foram trabalhadores precoces, e que a remuneração desses meninos e meninas é baixíssima e continuará muito baixa ao longo de sua vida adulta.

Estamos falando de uma chaga social, que já foi erradicada em vários países, dentro de um processo de políticas públicas com educação de qualidade e inserção de valores lúdicos e agregadores, como lazer, cultura e esporte.

Há portanto uma clara distorção no debate atual sobre o tema! Não se trata de buscar exemplo de quem trabalhou na infância ou adolescência e conseguiu “vencer na vida”, e sim de como evitar que crianças sejam obrigadas a trabalhar para comer, enquanto perdem sua infância. Em 1990 o Brasil possuía quase nove milhões de trabalhadores infantis, hoje ainda possui mais de dois milhões, será que esses milhões terão belas historias para contar ou estão na luta dos atuais desempregados que vagueiam sem oportunidades em nosso país?

Afinal qual a proposta real que se apresenta diante desse problema? Fazer apologia ao trabalho infantil é como fazer apologia ao crime, romantizando-o e deixando de enfrentá-lo. Pior: desrespeita a Constituição Federal que de forma inequívoca traz um comando de proibição e rejeição da sociedade à exploração de crianças e adolescentes para o trabalho irregular, que mutila, desestrutura, e desorienta a vida da maioria dessas crianças afastando-as da educação e, por consequência, de bons padrões remuneratórios que poderiam lhes proporcionar uma vida melhor no futuro.

Somos desafiados a colaborar para a chegada de um novo tempo, conscientes de que a retomada dos valores faz-se imprescindível numa diretriz que não pode ficar alheia à solidariedade, à responsabilidade social e ao comprometimento ético-político. O momento em que vivemos exige que se opere uma nova ordem social totalmente comprometida com o respeito à dignidade da pessoa humana, previsto como essencial pela Constituição do nosso país.

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*KÁTIA MAGALHÃES ARRUDA – Ministra do Tribunal Superior do Trabalho e Doutora em Políticas Públicas
**MARIA ZUÍLA LIMA DUTRA – Desembargadora do TRT 8ª Região

Fonte: JOTA
Data original de publicação: 19/07/2019

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