Vítima de tráfico de pessoas e trabalho escravo: a rotina de abusos e multas de doméstica filipina em SP

Imagem: Unsplash

Por Amanda Rossi e Piero Locatelli | Repórter Brasil

“Na manhã de 14 de janeiro, o celular da trabalhadora filipina Christine (nome fictício) apitou com uma mensagem da patroa: “Abra o caderno de multas”, escreveu Nadya Alhameli, funcionária de alto escalão do consulado dos Emirados Árabes Unidos em São Paulo. “Sim, senhora”, respondeu Christine. Desde que fora trazida ao Brasil, em agosto de 2019, a filipina de 26 anos recebia ordens para anotar as punições que recebia: R$ 140 a menos por “dar uma resposta errada”, R$ 140 porque a comida não agradou, R$ 14 por um suposto erro ao lavar as roupas.

Em cinco meses, as penalidades alcançaram R$ 1.540, segundo Christine, que registrou o balanço das multas em mensagens trocadas com a patroa por celular. Esse era apenas um dos abusos que enfrentava na casa de Alhameli — um apartamento ao lado da Avenida Paulista, área nobre de São Paulo. O caso, revelado pela Repórter Brasil em maio, acaba de ser enquadrado como tráfico de pessoas para o fim de trabalho análogo à escravidão por auditores fiscais do trabalho do Ministério da Economia. No entendimento deles, Christine foi submetida a trabalho forçado e é considerada vítima de aliciamento, abuso de vulnerabilidade agravada por condição migratória e assédio moral e psicológico.

“Baseados nos depoimentos tomados, nas informações da trabalhadora e nas contradições da empregadora em resposta à fiscalização, concluímos que se trata de um caso de tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho análogo ao escravo”, diz Lívia Ferreira, coordenadora do projeto de combate ao trabalho escravo na Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo.

As multas eram descontadas da parte salário que Christine receberia no Brasil, e que nunca foi paga, segundo ela. Uma outra parte do pagamento era depositada diretamente dos Emirados Árabes Unidos na conta de sua mãe, nas Filipinas. Sem acesso a qualquer dinheiro, a trabalhadora dependia da patroa até para comprar produtos de primeira necessidade, como comida e absorventes. Não tinha folga, não podia sair do apartamento livremente, era vigiada por câmeras e chegou a sofrer agressões verbais e físicas, relata. Em 21 de abril deste ano, fugiu. 

Trabalhadores domésticos de missão diplomática estrangeira, como a filipina, também estão sujeitos à legislação trabalhista brasileira, que proíbe limitar a liberdade dos empregados de dispor do seu salário. O pagamento deve ser feito em moeda nacional diretamente para o trabalhador. Além disso, é proibido aplicar multas e descontá-las no salário do empregado. 

A defesa de Nadya Alhameli afirma que ela “repudia e nega as acusações direcionadas à Fiscalização do Trabalho”. Segundo suas advogadas, Tammy Mikaelian e Daniella Mikaelian, “a vinda [da trabalhadora] ao Brasil ocorreu por livre e espontânea vontade dela, seguiu todos os trâmites burocráticos e em plena conformidade com a lei, não havendo caracterização de tráfico de pessoas para fins de trabalho análogo ao escravo” (leia a íntegra da resposta). O consulado dos Emirados Árabes em São Paulo foi procurado por telefone e e-mail, mas não respondeu.

Além da fiscalização trabalhista, uma investigação criminal foi aberta contra a empregadora, que voltou para os Emirados Árabes, seu país de origem, no dia seguinte à fuga de Christine. A Procuradoria da República em São Paulo informou que o caso está sob sigilo, e não poderia se manifestar a respeito. O Ministério Público do Trabalho também afirmou que não vai se pronunciar até o final da investigação. A Defensoria Pública da União (DPU), responsável pela defesa da trabalhadora filipina, disse que não pode comentar o caso, que corre em segredo de Justiça. (…)

Trancada e sob câmeras: O caderno de multas começou a ser preenchido logo após a chegada ao Brasil, no dia em que Christine quebrou um copo, lembra a trabalhadora. Ao longo do tempo, a frequência e o valor das multas foi aumentando. “Tinha multa praticamente todo dia”, lembra a filipina, em entrevista à Repórter Brasil. Em algumas ocasiões, a patroa estipulava a multa à distância, em mensagem de WhatsApp, e exigia que Christine enviasse foto do caderno de multas preenchido.

Em dezembro do ano passado, as anotações mostram R$ 14 por “chulé” no sapato da patroa; R$ 70 por “motorista”, relativo a uma conversa entre Christine e o funcionário; R$ 19 por “arroz”; R$ 98 por “frango”; R$ 14 por “cozinhar cedo”, fazendo referência a uma bronca que a doméstica tomou por começar a preparar o café da manhã antes de acordar Alhameli. Já em fevereiro deste ano, as multas aplicadas por “roupas” somaram R$ 700 em um único dia.

A trabalhadora filipina também afirma que ficava trancada no apartamento quando a empregadora saía. Só deixava o local aos fins de semana, para acompanhar a patroa nas compras. “Eu só conhecia o supermercado e lojas.” Segundo Christine e testemunhas do consulado dos Emirados Árabes Unidos, Nadya Alhameli dizia que observava a empregada por câmeras quando não estava em casa. Fotografias do apartamento mostram duas câmeras: uma em frente à porta de entrada e outra na área de serviço. 

Christine disse ainda que não tinha acesso a seu próprio passaporte. A empregadora teria retido o documento no dia da chegada ao Brasil. Controlar documentos pessoais e, dessa forma, restringir o empregado ao local de trabalho também é indicador de trabalho forçado. Por não saber onde estava seu passaporte, Christine fugiu levando apenas sua identidade das Filipinas. (…)”

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Fonte: Repórter Brasil

Data original da publicação: 30/07/2020

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